(ENSAIO) - DI-VERSIDADE DE FORÇAS CRIADORAS - Manoel Ferreira
Dissemos
anteriormente “Nunca o sofrimento de um artista foi mais fecundo que essa
epilepsia transformada pela arte”. É que, na “aura” que antecede o desencadear
de um ataque, o próprio Dostoïévski sentira, como sente Michkin, a iluminação
sobrenatural de um reino que personifica “o acme da harmonia e da beleza”, que
infundiu nele “um sentimento até então ignorado e não pressentido de plenitude,
de medida, de reconciliação e de um fundir-se inspirado e iluminado na mais
suprema síntese da vida”[1]
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A
história de cada “alma” individual é dada... em Dostoïévski não de modo isolado
mas juntamente com a descrição das inquietações psicológicas de muitas outras
individualidades. Efetue-se a narração em Dostoïévski da primeira pessoa, na
forma de confissão, ou da pessoa do ator-narrador, seja como for, vemos que o
autor parte da premissa da igualdade de direitos das personagens coexistentes,
que experimentam inquietação. Seu mundo é o mundo de uma multiplicidade de
psicologias que existem objetivamente e estão em interação, fato que, na
interpretação dos processos psicológicos, exclui o subjetivismo ou o
solipsismo, tão própria da decadência burguesa.
No sonho de Raskolnikov, ri não só a
velha assassinada (é verdade que não é possível matá-la em sonho); riem pessoas
em algum lugar, no quarto, e riem cada vez mais alto e mais alto. Depois
aparece uma multidão, uma infinidade de pessoas na escada e lá embaixo; ele
está no patamar, a multidão sobe a escada. Estamos diante de uma imagem de
ridicularização pública destronante na praça do rei-impostor carnavalesco. A
praça é o símbolo do caráter público e no fim do romance, antes de ir à
delegacia de polícia confessar sua culpa, vai à praça e faz uma profunda
reverência ao povo. Esse destronamento público, que “pareceu ao coração” de
Raskolnikov em sonho, não encontra plena consonância em A dama de espadas.
As fontes de carnavalização de Crime e
castigo já não remontam às obras de Gogol. Aqui sentimos, às vezes, o tipo
balzaquiano de carnavalização, em parte sentimos também os elementos do romance
social e de aventura (Soulié e Sue). Mas, talvez a fonte mais profunda e
essencial da carnavalização desse romance tenha sido a Dama de espadas, de
Puchkin.
As fontes européias da menipéia em
Dostoievski são inúmeras e heterogêneas, as quais revelam a riqueza e a
diversidade da menipéia. Ele conhecia, provavelmente, a menipéia
polêmico-literária de Goethe, Deuses, Heróis e Wieland. Conhecia, tudo indica,
os “diálogos dos mortos” de Fénelon e Fontenelle (Dostoïévski foi excelente
conhecedor da literatura francesa).
A particularidade mais importante do
gênero da menipéia consiste em que a fantasia mais audaciosa e descomedida e a
aventura são interiormente motivadas, justificadas e focalizadas aqui pelo fim
puramente filosófico-ideológico, qual seja, o de recriar situações
extraordinárias para provocar e experimentar uma idéia filosófica; uma palavra,
uma verdade materializada na imagem do sábio que procura essa verdade.
A menipéia se caracteriza por um amplo
emprego dos gêneros intercalados: as novelas, as cartas, discursos oratórios,
simpósios, etc., e pela fusão dos discursos da prosa e do verso.
Para compreender as tradições do gênero
em Dostoïévski, são essencialmente importantes as menipéias de Diderot, livres
pela forma externa, porém típicas pela essência do gênero. Mas o tom e o estilo
da narração em Diderot (às vezes no espírito da literatura erótica do século
XVIII) diferem de Dostoïévski, evidentemente. Em O sobrinho de Rameau (em
essência, também uma menipéia, mas sem o elemento fantástico, o motivo das
confissões extremamente francas, sem qualquer indício de arrependimento, está
em consonância com Bobok).
Por sua profundidade e ousadia, Bobok é
uma das mais grandiosas menipéias em toda a literatura universal. São
característicos a imagem do narrador e o tom da sua narração. O narrador encontra-se no limiar da loucura. Afora isto,
porém, ele não é um homem comum como todos, ou seja, que se desviou da norma
geral, do curso normal da vida, ou melhor, temos diante de nós uma nova
variedade do “homem do subsolo”. Seu tom é vacilante, ambíguo, com ambivalência
abafadas e elementos de bufonaria satânica (como nos diabos dos mistérios).
No início do conto há um juízo sobre um
tema típico da menipéia carnavalizada, isto é, o juízo acerca da relatividade e
da ambivalência da razão e da loucura, da inteligência e da tolice. Em seguida
vem a descrição de um cemitério e de cerimônias fúnebres.
“Um talento tão
original, dizia-se... e eis no que resultou por fim... aliás há muito tempo era
de se prever...” ainda assim, não falta uma certa impostura; se se considerar
do ponto de vista da arte pura, pode-se mesmo aplaudir. É assim que, de
repente, os outros se tornam duas vezes mais inteligentes. Todavia, se é fácil
entre nós fazer perder a razão, não há nenhum exemplo de que a tenham
inculcado...
O mais
inteligente dos homens é, na minnha opinião, aquêle que se trata de imbecil ao
menos uma vez por mês, e já ninguém hoje é capaz disso! Outrora, a rigor, um
imbecil se convencia ao menos uma vez no ano de não ser senão um imbecil, no
presente – na-da, na-da, está acabado. Foram tão bem embaralhadas as cartas que
o homem inteligente não se distingue mais do imbecil. Fêz-se isso de propósito[2].
Lancei um olhar
para as sepulturas: era ignóbil. Água, e que água! Tôda verde... e, meu Deus,
sim, a todo instante o coveiro remexia, para as esvaziarr. Saí, ainda antes de
terminada a cerimônia, e perambulei do outro lado da grade. Pertinho há um
asilo; um pouco mais longe, um restaurante. Não é mau, esse restaurantezinho:
comi ali um pouco e deixei o resto. Não tardou muito a se encher de gente que
tinha assistido às exéquias. Notei muita animação e alegria comunicativa[3].
É através da literatura cristã antiga
(isto é, através do Evangelho, do Apocalipse, das Vidas dos Santos e outras)
que Dostoievski está vinculado da maneira mais direta e estreita às modalidades
da menipéia antiga. Ele esteve indiscutivelmente a par dos protótipos clássicos
da menipéia antiga. É bastante provável que tenha conhecido as menipéias de
Luciano, Menippo, ou uma viagem pelo reino de além-túmulo ou Diálogos no reino
dos mortos (grupo de pequenas sátiras dialogadas). Nessas obras, aparecem
diversos tipos de comportamento dos mortos no reino de além-túmulo, ou seja, no
inferno carnavalizado. É necessário dizer que Luciano – o Voltaire da
Antiguidade – foi amplamente conhecido na Rússia a partir do século XVIII e
suscitou inúmeras imitações, tendo a situação-gênero do “encontro no mundo de
além-túmulo” se convertida numa constante na literatura e até em exercícios
escolar.
É provável que Dostoievski conhecesse
também a menipéia de Sêneca, Apdokyntosys..., pois encontramos nele três
momentos consonantes com essa sátira: 1) é possível que a “alegria sincera” dos
acompanhantes do enterro em Dostoievski tenha sido inspirada por um episódio de
Sêneca: ao passar pela Terra em vôo do Olimpo para o inferno, Cláudio encontra
na Terra seus próprios funerais e se eonvence de que todos os acompanhantes do
enterro estão muito alegres (à exceção dos chicaneiros); 2) o jogo de cartas no
vazio, “de memória” talvez esteja inspirado no jogo de dados de Cláudio no
inferno, este também no vazio (os dados rolam antes de serem lançados); 3) a
descoroação naturalista da morte em Dostoievski lembra a representação
naturalista ainda mais grosseira da morte de Cláudio, que morre (entrega a
alma) no momento em que está evacuando.
Alguns pesquisadores detiveram-se em
aspectos isolados da obra de Dostoievski, que o aproximam da criação poética.
Segundo informação de Leonid Grossman, o estudioso holandês J. M. Meijer, num
informe lido no IV Congresso de Eslavistas, Moscou, em 5 de setembro de 1958,
estudou em Crime e castigo o processo de repetição de determinados tipos de
ação, muito semelhantes às funções da rima em poesia. D. S. Mirsky, em sua História
da literatura russa, refere-se de passagem ao fato de que O sósia está escrito
num estilo “intensamente saturado de expressividade fonética e rítmica”. V. I.
Vietlóvskaia mostrou que Aliocha de Os irmãos Karamázovi foi construído na base
da lenda popular russa sobre Aleksiei, homem de Deus, da qual existe um texto
em prosa e várias versões poéticas neste baseadas, e que Dostoievski se ateve
mais às versões poéticas.
Dostoïévski conheceu outra variedade de
menipéia através dos Contos filosóficos de Voltaire. Este tipo de menipéia foi
muito próximo de alguns aspectos da obra dostoïévskiana (Dostoïévski chegou
inclusive a esboçar a idéia de escrever um Cândido Russo).
Cândido confirmava ao pé da letra a
afirmação segundo a qual “l´esprit de Voltaire est um stylo”: efetivamente, é
um modo de ver, interpretar e representar o mundo e as coisas humanas, e a
língua que usa com tanta agilidade e elegância, só é o meio expressivo mais
adequado ou – teria dito Voltaire – mais natural: “numa sociedade [como aquela
do século XVII) que não conhece nem puritanismo nem religião, o humor a própria razão torna-se humor...”.
O romance de aventuras do século XIX é
apenas um ramo da poderosa e amplamente ramificada tradição do gênero, que
remonta a um passado remoto, às próprias fontes da literatura européia.
Consideramos necessário estudar essa tradição precisamente até as suas fontes.
Por sua natureza mesma, o gênero
literário reflete as tendências mais estáveis, “perenes” da evolução da
literatura. O gênero sempre conserva os elementos imorredouros da archaica. É
verdade que nele essa arcaica só se conserva graças à sua permanente renovação,
vale dizer, graças à atualização. O gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é
novo e velho ao mesmo tempo. O gênero renasce e se renova em cada etapa do
desenvolvimento da literatura e em cada obra individual de um dado gênero.
Nisto consiste a vida do gênero. Por isto, não é morta nem a archaica que se
conserva no gênero; ela é eternamente viva, isto é, é uma arcaica com
capacidade de renovar-se. O gênero vive do presente mas sempre recorda o seu
passado, o seu começo. É o representante da memória criativa no processo de
desenvolvimento literário.
A ironia com a qual Voltaire revire em
brilhante fantasmagoria o funesto grand guignol da vida humana e do mundo é o
contrário do cinismo, já que nasce da indignação e da urgência de entender; e
se Voltaire não quis conceder nada ao sentimento fácil de compaixão, foi porque
sabia que esta indignação devia transformar-se em inteligência, em reflexão
serena para poder ser profícua: para suscitar piedade e terror, já bastam o sublime
trágico e os romances lacrimejantes.
Não nos esqueçamos de que, em
Dostoïévski, os sonhos abrem espaço a conteúdos meramente artísticos, ou
revelam profunda insatisfação ao próprio comportamento moral. Também nos sonhos
a espiritualidade inconsciente encontra saída. Não se pode negar que em muitos
sonhos o núcleo emana do inconsciente espiritual.
Muitas pessoas, acreditando piamente
que se conhecem e persuadidas de que não têm indulgência consigo mesmas,
facilmente se acusam de orgulho, de egoísmo e de outros defeitos; mas quando a
descida ao seu inconsciente põe em plena luz estes aspectos de sua natureza,
reagem violentamente e se recusam a aceitá-los. Isso mostra que é realmente
imenso o abismo entre compreender (atividade da alma) e ter esperança e fé
(desejo da liberdade-redenção). Observamos este fato em nós mesmos e podemos
verificá-lo todos os dias nos outros. Pelo inconsciente nossa alma nos fala e
encontra como nos perscrutar e esmiuçar; encontra expressões e símbolos de uma
clareza impiedosa, dos quais o consciente não pode fugir, mas que, raro, aceita
imediatamente.
No início de uma análise psicológica, o
conhecimento vai pouco além do inconsciente pessoal; mas logo penetra no
inconsciente coletivo e, por ele, se abre a um conhecimento universal.
Na época em que lera Crime e Castigo, lembra-nos
que, diante da leitura desse sonho, tivemos a sensação que havia um turbilhão
de vozes, risos, e estes estavam dentro de nós, aumentando e aumentando no seu
decorrer, e tivemos de interromper por alguns segundos para recuperar o fôlego,
mas a sensação continuava, eram as nossas próprias vozes e risos.
Faz alguns dias que estivemos em
Curvelo. Andando na rua do Grupo Escolar Dr. Viriato Mascarenhas, pensamos em
escrever uma novela, a protagonista era viciada em comprimidos para dormir,
calmantes, havendo médico quem prescrevia o remédio, realmente ela necessitava.
Muito perto dali houve uma senhora, vítima de câncer, que constantemente tinha
de tomar morfina para aliviar as dores. Esqueceu-nos. Sonháramos recentemente
que alguém estava nos dizendo sobre todos os efeitos da droga, com detalhes
impressionantes. Ouvimos tudo; enquanto ouvíamos, uma sensação de que estava
escrito, era algo escrito, mas apenas ouvíamos a fala. Por vezes, distante,
aparecia-nos folhas de papel escritas. Acordando, tentamos nos lembrar de
alguma coisa que ouvíramos, mas não nos foi possível.
Lembra-nos Dr. Paulo César Carneiro
Lopes,
No sonho, a
imagem ainda é pré-conceitual, na arte não, ela é um confronto dessa imagem
primeira com o conceito como abstração. Assim é que Hegel define a arte como um
luzir sensível da idéia. Não se trata de idéia que vem disfarçada de imagem,
mas de uma imagem carregada de força própria. Trata-se de uma dinâmica onde a
sensação e o sentimento primeiro, geram uma nova imagem que aponta para um novo
conceito: a idéia[4].
A relação dialética da figuração e do
conteúdo espiritual, que buscamos “interpretar” e “analisar” o “luzir sensível
da idéia” – relação em que os dois elementos
da arte se tornam cada vez mais íntimos, entram em um acordo cada vez
mais harmonioso, fazendo com que a obra seja tanto mais perfeita quanto mais
seu conteúdo corresponder a uma perfeita interpenetração – determina as
diferentes formas de arte (Kunstformen), constituindo as três modalidades em
que a idéia do belo se diferencia. E, a esse respeito, a tese mais geral
defendida por Hele é a de que a arte simbólica busca realizar a união entre a
significação interna e a forma exterior, a arte clássica encontra essa
realização na representação da individualidade substancial dirigindo-se à nossa
sensibilidade, e a arte romântica, essencialmente espiritual ultrapassa essa
união.
Quando expusemos a teoria do sublime em
Schelling, observamos que a reflexão moderna sobre o símbolo é feita a partir
de Kant. Vimos, então, que, para expor as idéias da razão, que não podem ter
correspondente na intuição, a faculdade do juízo procede, segundo Kant, de modo
indireto, elegendo uma intuição que não tem com o conceito nenhuma semelhança
de conteúdo e valendo-se apenas do acordo entre as regras da reflexão sobre um
e sobre o outro. Vimos também que Schelling retoma da análise kantiana do
símbolo a noção de uma analogia interna ou estrutural, no nível das regras da
reflexão, interpreta como indício de uma afinidade mais essencial do que a
semelhança externa.
Dizer que o sensível é símbolo do
não-sensível significa dizer que ele revela, torna visível o não-sensível, o
que faz do simbólico o padrão universal de verdade e da arte o meio mais
perfeito de expressar a idéia. Em nosso artigo O visível do invisível, livro de
poemas ainda inédito da artista plástica e poeta diamantinense Martha Moura –
pedira-nos que lesse e fizesse o prefácio, talvez no final deste ano de 2007
publicasse, não importasse a época seria publicado, escrevemos
O verdadeiro artista é sempre “cômico”, pois que,
com engenhosidade e arte, delineia os “soluços profundos” da alma e do espírito
em busca do riso sincero, do sorriso humano que pro-jetam o presente no futuro,
traz o futuro para as nossas mãos feitas concha, quando nossa alma se eleva à
imensidão do céu e desejamos a real-ização de nossa vocação de homens, isto é,
a felicidade da Vida.
Refletindo
e meditando sobre o símbolo do visível e do invisível no aspecto cômico desta
obra dostoievskiana e de Hegel. Para este o símbolo implica uma exterioridade
entre o significante sensível e seu significado espiritual, está ligado a uma
contingência espiritualizada, sendo por isso uma expressão inadequada da idéia.
Daí que, diferentemente do que pensa Schelling, para quem o simbólico é a
essência da expressão artística, para Hegel, ele está ligado ao momento mais
inferior da arte; restringe-se a uma determinada época e a uma determinada
cultura: a Antiguidade oriental, cultura em que o sensível ainda não é
perfeitamente espiritualizado.
No universo artístico
monológico, a idéia, colocada na boca do herói representado como imagem sólida
e acabada da realidade, perde fatalmente seu valor direto, tornando-se o
momento da realidade, predeterminado por um traço desta, idêntico a qualquer
outra manifestação do herói.
Se no universo
monológico a idéia conserva a sua significação como idéia, ela se separa
inevitavelmente da imagem sólida do herói e artisticamente já não se combina
com ele: ela é apenas colocada em sua boca assim como poderia ser colocada na
boca de qualquer outro herói[5].
Os
princípios do monologismo ideológico encontraram na filosofia idealista a
expressão mais nítida e teoricamente precisa. O princípio monístico, isto é, a
afirmação da unidade do ser, transforma-se, na filosofia idealista, em
princípio da unidade da consciência. O período clássico se manifesta na evolução de Goethe e Schiller,
durante a transição do romantismo para o classicismo, circunstância que também
se apresenta na obra do poeta Friedrich Holdërlin[6],
do dramaturgo e autor de romances curtos Heinrich Von Kleist e nas narrativas
do humorista Johann Friedrich Richte (mais conhecido pelo pseudônimo de Jean
Paul).
Afirma
Schiller no Prefácio à Noiva de Messina que o coro da tragédia antiga jamais
voltou a ressurgir no palco depois do declínio dela. O coro serve-lhe para
declarar guerra ao naturalismo: “uma muralha viva que a tragédia edifica ao
redor de si para se isolar puramente do mundo real e preservar seu solo ideal”.
Com
o coro, Schiller queria realizar uma revolução radical; em nenhum outro lugar
ele é mais idealista do que aqui. Tudo superficial, o que foi dito contra a Noiva
de Messina; ele reproduziu a Antiguidade num sentido extremo, de modo muito mais
profundo do que foi reconhecido na época pelos eruditos.
O
poeta tem de abrir novamente os palácios, tem de trazer os tribunais de volta
para céu aberto, tem de restabelecer os deuses, pôr de lado toda obra
artificial malfeita no homem e ao seu redor. O coro realizava tudo isso.
O
coro purifica a poesia dramática, na medida em que separa a reflexão da ação, e
por meio dessa separação ele mesmo se arma com força poética. A linguagem
lírica do coro possibilita ao poeta elevar toda linguagem poética.
Schiller
reconheceu em quatro momentos principais a essência do coro em Sófocles. Sua
valorização do mesmo tem grandes conseqüências, e Tieck[7]
tinha razão quando dizia que A noiva de Messina havia desestabilizado o teatro
alemão:
[...]
nela, com toda arte do discurso, o inteiramente não-dramático, sim, o
impossível, é elevado a princípio fundamental do verdadeiro drama (ele
compreendia apenas o drama shakesperiano). Ação, caráter, motivos e
verossimilhança são tratados como tão incômodos e supérfluos quanto o nacional,
o tradicional”[8].
O
mundo poético é restaurado com o coro; a tragédia é depurada, na medida em que
a reflexão é banida do diálogo; ela é posta sobre coturnos por meio da
existência de um ser supranatural, altamente patético; ela suscita uma contemplação
estética involuntária, na medida em que não nos fundimos com o tema.
Em
Schiller a visão de mundo foi a mesma que em Sófocles. Ele fez do coro, pela
primeira vez, um meio de impedir o amálgama com o tema, a entrega fusional à
comoção orgiástica; agora, ele poderia lançar mão dos terríveis planos de fundo
como nenhum outro poeta dramático moderno ousara.
Schiller
reconheceu no coro a especificidade da tragédia grega, os italianos da
Renascença a viram na música que a acompanhava. Anteriormente, [havia] o coro
polifônico (madrigal) sem melodia e sem a possibilidade de se tornar um texto
ininteligível. Uma transformação da música no sentido dos gregos foi a solução
encontrada. Ponto Central em Florença a partir, aproximadamente, de 1580.
Pensava-se reencontrar a música perdida dos antigos. Queria-se uma música na
qual as palavras do texto fossem compreensíveis e os versos não fossem
destruídos.
Acerca
do artifício de seu poetar iluminou-nos Schiller por uma observação
psicológica, a ele mesmo inexplicável, mas que parece confiável, pois ele
confessa não ter tido, em si, uma série de imagens, com causalidade ordenada de
pensamentos, mas sim uma disposição musical! “Em mim a sensação não tem,
inicialmente, um objeto claro e assentado. Ele somente se forma mais tarde. Uma
certa sensação musical de espírito se antepõe, e somente a esta se segue a
idéia poética”. Se agora adicionarmos o fenômeno mais importante de todo o
lirismo antigo que em todos os lugares se apresenta como a união natural, e até
mesmo como a identidade do lírico com o músico, em contraposição ao qual se nos
figura o nosso lirismo mais moderno como uma imagem divina sem cabeça, assim
podemos, com fundamente na nossa metafísica estética, representada
anteriormente, explicar-nos da maneira seguinte o lírico: primitivamente, como
artista dionisíaco, unificou-se completamente com o Uno-Primitivo, sua dor e
sua contradição e produz a cópia deste como música, mesmo quando essa fora
denominada com razão uma repetição do mundo e uma segunda moldagem do mesmo;
hoje, porém, se lhe torna visível esta música, sob influência do sonho
apolínico, como uma visão comparativa do sonho[9].
No
aforismo 215, Capítulo IV, Da alma dos artistas e escritores, Humano, demasiado
humano, Nietzsche assim nos diz a respeito da música:
A
música dramática é possível apenas quando a arte sonora conquistou um imenso
domínio de meios simbólicos, com o lied, a ópera e centenas de tentativas de
pintura tonal[10].
A
imagem musical usada em Memórias do subterrâneo deriva diretamente de Fourier,
que acreditava ter descoberto uma “lei da harmonia social”, e cujos discípulos
gostavam de descrever as disposições das paixões no falantério por analogia com
a organização das teclas de um piano. (Essa última comparação é feita numa obra
muito popular de Victor Considérent, La Destinée sociale, cujo título
Tchernichévski conseguiu introduzir em Que fazer! na forma de um jogo de
palavras.
Além
disso, quando o homem do subterrâneo comenta que no Palácio de Cristal “todos
os atos humanos deverão [...] ser calculados de acordo com essas leis [da
natureza], matematicamente, como uma tábua de logarimos até 108 000, e
registrados numa tabela”[11],
não está cometendo nenhum exagero. Fourier havia com efeito se empenhado em
elaborar uma extensa tabela das paixões que, no seu entender, contituíam as
leis imutáveis da natureza (humana) e cujas necessidades deviam ser cumpridas
em alguma ordem social modelar.
Em
seu ataque ao ideal do Palácio de Cristal que implicaria a total eliminação da personalidade,
Dostoiévski combina a tabela das paixões de Fourier com o determinismo material
de Tchernichévski. A manifestação empírica da personalidade é o direito de
escolher um curso de ação, qualquer que seja ele; e não está envolvida nenhuma
escolha quando alguém é bom, racional, está satisfeito e feliz de conformidade
com as leis da natureza, que excluem a própria possibilidade da sua negação.
No
decorrer de toda a obra de Dostoievski, aparecem versos introduzidos em meio á
prosa, e aqui e ali percebe-se neles uma centelha poética. A linguagem poética
entra no texto em prosa, em forma de citação. Diversos estudiosos de
Dostoievski chamaram a atenção para a importância que adquirem nele as citações
como caracterização de personagens. Estas citações têm a sua função como
introdução de uma relação entre poesia e prosa.
Veja-se,
por exemplo, a importância que adquire em O idiota a leitura por Aglaia do
poema de Puchkin, O cavaleiro pobre, quer do ponto de vista da caracterização
do Príncipe, quer de como a moça o via, quer ainda de um ponto de vista de
mudança de tom, pela introdução do texto poético. Outras vezes, Dostoievski
apresenta versos atribuídos às personagens. E são particularmente felizes os
que são introduzidos por personagens ridículas, as palhaçadas em verso, as
paródias.
Viveu
outrora no seu burgo nobre
Um
cavaleiro austero e taciturno
Cuja
magnificência era ser pobre!
Como
sempre, uma noite, após o turno
Pelas
ermas ameias do castelo,
Se
estirou no seu tálamo noturno
E,
dormindo, sonhou sonho tão belo
-
Oh radiosa visão de eucaristia!
Que
artista ou poeta algum, em seu anelo
De
interpretar o enigma que envolvia
Essa
visão de uma tamanha essência,
Nunca
o fará em cor ou verso, um dia!
Sublimando
de vez sua existência,
Passa
a adotar um teor extraordinário:
Se
alguma tentação defronta, vence-a
Pois
usa agora apenas um rosário
Ao
invés do gorjal. E nem sequer,
Nas
contingências deste mundo vário,
Lançando-se
em batalha – onde as houver,
Sempre
o rosto escondido na viseira,
Ergue
o olhar para um corpo de mulher.
Com
seu sangue, conforme a leal maneira
Estas
três letras N. F. B.
Grava
no escudo oval, com mão certeira,
Contra
a Mourisma, em prol da sua fé,
Investe
então com alma corajosa
Sempre
que alguma pugna audaz, se dê,
Bradando:
“Lúmen Coeli, Sancta Rosa!”
Eis
a vida qual foi, deste Cruzado,
No
Oriente rubro e na África pasmosa!
Já
velho, regressou ao seu condado,
E,
sem reconher o que era seu,
Envolto
no marasmo do passado,
Um
dia em solidão plena morreu...[12]
Leonid
Grossman, em seu Dostoievski artista, mostra como o romancista enfatizou o
caráter poético de suas obra, ora dando-lhes o subtítulo de Gogol para As almas
mortas, poema, ora referindo-se a si mesmo como poeta, o que fazia com
freqüência, quase nunca se definindo como romancista ou escritor. “Um romance é
obra poética” – escrevia ele numa carta de 1866. O ensaísta lembra a vasta
cultura poética de Dostoievski e chegou a tratar do conflito entre o poema e o
romance, na ficção dostoiévskiana.
Numa
outra de suas numerosas obras sobre o romancista, igualmente importante para a
valorização de Dostoievski como artista e não como filósofo ou psicólogo, A
poética de Dostoievski, Grossman chega a aproximar-se mais do problema.
Referindo-se a uma carta ao irmão, onde Dostoievski conta que, ao escrever um
anúncio brincalhão para o almanaque dirigido pelo poeta Nekrassov, inspirou-se
no Lucien das Ilusões perdidas, de Balzac, o crítico acrescenta que ele tinha
em mente o primeiro artigo do personagem balzaquiano, no qual, segundo a
própria expressão de Balzac, “o pensamento nasce da colisão entre as palavras”.
Foi
Lessing quem se pronunciou de maneira mais peremptória a esse respeito, não por
acaso nas partes finais, conclusivas, de sua Dramaturgia de Hamburgo (1769). Segundo
ele, qualquer que seja a avaliação de sua época acerca da tragédia “ela não
pode se distanciar nem um passo da norma aristotélica sem que se distancie na
mesma medida de sua perfeição”[13].
Mesmo
Schiller, após a trabalhosa conclusão de seu drama histórico Wallenstein,
reconheceu a importância da Poética. Em
uma carta a Goethe, de 5 de maio de 1797, ele escreve:
Quase em nenhum lugar ele [Aristóteles] parte
de conceitos, mas sempre do fato da arte, do poeta e da representação; e se seus
julgamentos, segundo os princípios fundamentais, são verdadeiras leis da arte,
então devemos agradecer a este acaso feliz, de que naquela época havia obras de
arte que realizaram uma idéia através do fato ou tornaram representável seu
gênero em um caso particular[14].
Com
a poesia, a mais espiritual das artes, tem-se a total espiritualização do som,
que já não expressa o sentimento – como no caso das sonoridades musicais,
intrinsecamente sentimentais -, mas se torna palavra, palavra articulada, som
articulado, um simples sinal de uma representação concreta, de uma
interioridade espiritual, um simples sinal do espírito, um ponto concreto,
espiritual.
A
peculiaridade da poesia “reside na potência com que submete ao espírito e a
suas representações o elemento sensível, do qual a música e a pintura já haviam
começado a libertar a arte”[15].
Na
poesia, o elemento sensível da arte desaparece para tornar-se puro signo da
interioridade, por sua transformação em sinais destinados à expressão do
espírito. Nela, o conteúdo espiritual e o material sensível são a mesma coisa,
no sentido de um signo interior que revela a interioridade.
Se
Nietzsche pode distinguir com clareza entre a obra de Aristóteles e as suas
sucessivas interpretações, que “moralizam” a tragédia e tornam a Poética menos
uma reflexão e mais um manual prescritivo, ele segue, na sua interpretação, um
caminho discordante de Aristóteles. Esse caminho desembocará no Nascimento da
tragédia, onde podemos perceber uma teoria da tragédia antiaristotélica; o
livro representaria, no seu conjunto, “um projeto contrário à poética”[16]
Bernays,
embora aceite e dê continuidade à crítica de Goethe a Lessing, desacredita das
traduções que deram ao termo catarsis: nem “purificação” (Reinigung), como
dizia Lessing, nem “compensação” (Augsleichung), como o queria Goethe, seriam
traduções adequadas. Em seu lugar, Bernays propõe “descarga libertadora” (erleichternde
Entladung), crendo com isso ser mais fiel à letra e ao espírito do texto
aristotélico, ao reatar seu sentido com as origens médicas do termo.
A
percepção monológica da consciência domina também em outros campos da criação
ideológica. Em toda parte, os elementos de significação e valor se concentram
em torno de um centro: o agente. Toda criação ideológica é concebida e
percebida como a possível expressão de uma consciência, de um espírito. Até mesmo
onde a questão gira em torno de uma coletividade, da “diversidade de
forças criadoras”,
a unidade é ilustrada pela imagem de uma consciência: do espírito da nação, do
espírito do novo, do espírito da história, etc. Todos os elementos
significantes podem ser reunidos numa consciência e subordinado a um acento; o
que não é suscetível de situar-se nesse contexto é casual e secundário.
O primeiro momento é a lógica
fantástica do sonho, aplicada por Dostoïévski. Em Dostoïévski a imagem da velha
sorridente está em consonância com a imagem puchkiniana da velha condessa que
pisca os olhos no esquife e da dama de espadas que pisca na carta (aliás, a
dama de espadas é um duplo da velha condessa de tipo carnavalesco). Estamos
diante de uma consonância essencial de duas imagens e não de uma semelhança
externa casual, pois essa consonância nos é dada no fundo de uma consonância
comum dessas duas obras (A dama de espadas e Crime e castigo), consonância de
todo o clima das imagens e de um conteúdo ideológico: o “napoleonismo” no
terreno específico do jovem capitalismo russo; lá e cá esse fenômeno
histórico-concreto adquire um segundo plano carnavalesco, que se afasta para a
distância infinita do sentido.
Existe uma ressonância: o destino de
German diante do povo junto ao caixão da condessa. Em Boris Godunov, outra obra
de Puchkin, encontramos uma consonância mais completa com o sonho de
Raskólnikov. Temos em vista o tríplice sonho profético do Impostor (cena na
cela do mosteiro de Tchúdov):
Sonhei, que uma
escada íngreme
Levava-me
à torre; do alto
Eu via Moscou
como um formigueiro;
Embaixo a praça
fervilhava de gente
Que para mim
apontava rindo;
Sentia vergonha e pavor –
E, caindo precipitado, acordei...
Estamos diante da mesma lógica
carnavalesca da elevação do impostor, do destronamento público e cômico na
praça pública e da queda.
O espaço interno da casa e dos cômodos,
distantes dos seus limites, ou seja, do limiar, quase nunca é usado pelo
romancista, com exceção, evidentemente, das cenas de escândalos e
destronamentos, quando o espaço interno (a sala de estar ou o salão) substitui
a praça. Dostoïévski “salta” por cima do espaço interno habitável, arrumado e
estável das casas, apartamentos e salas, espaço distante do limiar, porque a
vida que ele retrata está fora desse espaço.
Raskólnikov vive essencialmente no
limiar: seu quarto apertado, “caixão de defunto” (aqui um símbolo carnavalesco)
dá diretamente para o patamar da escada e ele, ao sair, nunca fecha a porta
(isto é, é um espaço interno não-fechado). Nesse “caixão” é impossível viver
uma vida biográfica, podendo-se somente sofrer crises, tomar as últimas
decisões, morrer ou renascer.
O limiar, a ante-sala, o corredor, o
patamar, a escada e seus lanços, as portas abertas para a escada, os portões
dos pátios e, fora disto, a cidade: as praças, as ruas, as fachadas, as
tavernas, os covis, as pontes, a sarjeta – eis o espaço desse romance.
Dostoïévski mostra que Raskólnikov está
longe de dominar as reações “irracionais” de sua consciência. Nas seis semanas
passadas, cheias de “monólogos em que zombava de sua própria incompetência e
indecisão”, na verdade ele se debatera num estado psicopático que o narrador
chamou de monomania – um estado que Dostoïévski descreve com sua habitual
capacidade de retratar personagens acometidas de distúrbio mental.
Nas páginas iniciais, há abundantes
provas de desequilíbrio mental de Raskólnikov, o que fez com que sua percepção
da realidade externa enfraquecesse.
Esta perda é ilustrada por uma série de
detalhes incisivos. O isolamento auto-imposto de Raskólnikov é comparado ao de
“uma tartaruga em sua carapaça”. “Mesmo o rosto da criada que lhe servia e às
vezes olhava pelo seu quarto causava nele cólera e convulsão”. O narrador
explica que “no estado de espírito em que ora se encontrava” (isto é, nas seis
semanas passadas) ele começava a sentir um prazer masoquista pela desordem
esquálida de seu cubículo miserável, considerando esse desmazelo “até agradável”.
Como acontece muitas vezes em
Dostoïévski, o ódio de Raskólnikov por si mesmo diante de sua própria
impotência transforma-se, assim, num ódio sádico pelos outros (até mesmo pela
cordial criada camponesa Nastássia, que obviamente sente pena do faminto ex-estudante
e procura ajudá-lo à sua maneira). Ele agora ficou exasperado demais para
reagir à bondade com outro sentimento que não seja a raiva; além disso, sua
monomania concentrou todas as suas emoções no desejo de matar, estimulando
ainda mais toda a latente desumanidade agressiva de seu egoísmo.
Raskólnikov está doente tanto
psicológica quanto fisicamente, está sofrendo de uma febre alta que só faz
aumentar o “eclipse da razão e o “abatimento da vontade” a que se acreditara
imune. Torna-se claro até que ponto se auto-iludira no passado; e, já que não
conseguiu dominar sua consciência moral “ordinária”, obviamente não conseguirá
também alcançar o autodomínio apático que teoricamente flui de sua doutrina.
A ironia dramática usada nesse capítulo
recebe uma confirmação sensacional na cena do assassinato, a qual chocou os
contemporâneos de Dostoïévski pela crueza e pelo profuso realismo de sua
descrição.
Na maior parte dessa cena de crime
brutal, o narrador permanece próximo ao ponto de vista de Raskólnikov e
transmite com maestria a natureza quase hipnótica de seu comportamento. A certa
altura nota que “o medo tomou conta dele mais e mais” e acrescenta que
Raskólnikov teria desistido se pudesse ter percebido toda a “desesperança” e a
“hediondez” de sua situação.
Freqüentemente levantaram-se dúvidas
sobre se o romance respondeu realmente às questões que se apresentaram a
Raskólnikov. Uma outra nota, que recebeu o título de “a principal anatomia do
romance”, é citada com freqüência para provar a natureza irresoluta de
Dostoïévski nessa questão crucial; mas ela prova justamente o contrário,
“Depois da doença etc. É absolutamente necessário estabelecer firme e
claramente o curso das coisas e eliminar o que está vago, isto é, explicar de
uma maneira ou de outra todo o assassinato e tornar claros o seu caráter e suas
relações”.
A locução de uma maneira ou de outra
pareceria confirmar as piores suspeitas sobre a falta de clareza de
Dostoïévski; mas uma nota escrita à margem, fechando uma chave na palavra
“assassinato”, diz: “orgulho, personalidade e insolência”. Não podia ser mais
específico: temos aqui as forças desencadeadas em Raskólnikov pelo amálgama
ímpio típico, na época, da ideologia radical russa – um desejo altruísta de
minorar a injustiça social e o sofrimento, associado a um desprezo sumamente
bazaroviano pelas massas.
A consciência moral de Raskolnikov
ergue-se em revolta, mas ele já não consegue reprimi-la através da casuística
de sua lógica utilitarista; na verdade, foi ao crime em si que essa lógica o
conduziu. O que emerge, ao invés disso, é o excessivo egoísmo justificado por
essa lógica e agora plenamente liberado em sua monomania. Quando os dois homens
que visitaram Aliona Ivánovna batem na porta fechada atrás da qual está
Raskólnikov, com o machado na mão, “ele se achava numa espécie de delírio”.
As
idéias radicais, idênticas em sua lógica utilitarista àquelas expressas na cena
do bar, atuam continuamente para reforçar o egoísmo inato do caráter de
Raskólnikov e transformá-lo muito mais numa pessoa que odeia seus colegas do
gênero humano do que numa que os ama. Se isso acontece, não é apenas porque
suas idéias agem contra os estímulos instintivos de sua sensibilidade moral e
emotiva; essas idéias transformam-no momentaneamente em alguém cuja consciência
moral cessa de atuar como parte de sua personalidade.
Não que seu objetivo moral seja
insincero; mas porque tomamos consciência de que, ao furtar-se a cumprir seu
propósito, Raskólnikov deve reprimir em si mesmo os próprios sentimentos morais
e emotivos dos quais esse objetivo havia derivado no começo. Assim, o que
acontece nessas cenas ilustra a maneira como as idéias de Raskólnikov estiveram
afetando sua personalidade; e lançam uma luz bastante clara sobre o que esteve
ocorrendo dentro dele em termos de emoção desde quando passou a sofrer-lhes a influência.
Se examinarmos a fábula do romance,
deixando de lado por ora seu siujet (termo com que os formalistas russos
designam a manipulação artística da estrutura narrativa, ou seja, a ordem pela
qual essa estrutura se desenvolve para o leitor), percebemos que as idéias
radicais começaram a influenciar Raskólnikov mais ou menos seis meses antes de
terem início os acontecimentos do romance. Foi nessa época que escreveu seu
funesto artigo “Sobre o Crime”, no qual reformula e amplia as reflexões de
Pissarev sobre Bazárov e divide as pessoas em duas categorias: as “ordinárias”
e as “extraordinárias”.
Os analistas continuam a afirmar que
existe oposição fundamental entre as idéias expressas na cena da taberna e as
apresentadas no artigo; e é verdade que é atribuído um peso diferente às duas
versões da mesma doutrina básica. Primeiro, Dostoiévski enfatiza os objetivos
humanitários e altruísticos de Raskólnikov; depois, é a personalidade
napoleônica que vem à tona. Mas esta se harmoniza com a forma pela qual Dostoiévski
lida com seu siujet, sua técnica de história de mistério com revelação gradual,
que instrumenta o processo de autodescoberta gradativa de Raskólnikov.
Os dois aspectos da doutrina estão
presentes em cada um dos casos; somente a ênfase é que muda quando Raskólnikov
consegue entender como a tentação de encarnar uma personalidade napoleônica
agiu em oposição a seus propósitos egoístas.
Este momento atrás da porta, em que o
egoísmo de Raskólnikov atinge um extremo autodestrutivo de ódio por alguém e ele
quer desafiá-lo, será usado de novo como um flashback e transforma-se em
leitmotif. Representa todas aquelas forças emotivas que, incitadas por sua
teoria e depois liberadas no crime, se libertaram agora de suas amarras morais
anteriores.
As duas partes antitéticas da
personalidade de Raskólnikov, mantidas juntas anteriormente pela dialética
afiada como uma navalha de sua casuística, haviam-no persuadido de que era
possível conciliar assassinato e moral.
Como diz Engelgardt,
Dostoievski
representa a vida da idéia na consciência individual e na social, pois a
considera fator determinante da sociedade intelectual. Mas não se deve
interpretar a questão de maneira como se ele tivesse escrito romances de idéias
e novelas orientadas e sido um artista tendencioso, mais filósofo do que poeta.
Ele não escreveu romances de idéia, romances filosóficos segundo o gosto do
século XVIII mas romances sobre idéias. Como para outros romancistas o objeto
central podia ser uma aventura, uma anedota, um tipo psicológico, um quadro de
costumes ou histórico, para ele esse objeto era a “idéia”. Ele cultivou e
elevou a uma altura incomum um tipo inteiramente específico de romance, que, em
oposição ao romance de aventura, sentimental, psicológico ou histórico, pode
ser denominado romance ideológico. Nesse sentido a sua obra, a despeito do
caráter polêmico que lhe é peculiar, nada deve em termos de objetividade à obra
de outros grandes artistas da palavra: ele mesmo foi um desses artistas;
colocou e resolveu em seus romances problemas antes e acima de tudo
genuinamente artísticos. Só que a matéria que manuseava era muito original: sua
heroína era a idéia[17].
Enquanto objeto de representação e
dominante na construção das imagens dos heróis, a idéia leva à desintegração do
mundo do romance em mundos dos heróis, mundos esses organizados e formulados
pelas idéias que os dominam. A multiplicidade de planos do romance de
Dostoievski foi revelada com toda precisão por Engelgardt:
O princípio da
orientação puramente artística do herói no ambiente é constituído por essa ou
aquela forma de atitude ideológica em face do mundo. Assim como o domintante da
representação artística do herói é o complexo de idéias-forças que o dominam,
exatamente do mesmo modo o dominante na representação da realidade circundante
é o ponto de vista sob o qual o herói contempla esse mundo. A cada herói o
mundo se apresenta num aspecto particular segundo o qual constrói-se a sua
representação. Em Dostoievski não se pode encontrar a chamada descrição
objetiva do mundo exterior; em termos rigorosos, no romance dostoiévskiano não
há modo de vida, não há vida urbana ou rural nem natureza mas há ora o meio,
ora o solo, ora a terra, dependendo do plano em que tudo isto é contemplado
pelas personagens. Graças a isto surge aquela multiplicidade de planos da
realidade na obra de arte que, nos continuadores de Dostoievski, leva amiúde a
uma singular desintegração do ser, de sorte que a ação do romance se desenrola
simultaneamente ou sucessivamente em campos ontológicos inteiramente diversos[18].
Em nenhum romance de Dostoievski há
formação dialética de um espírito uno, geralmente não há formação, não há
crescimento exatamente como não há na tragédia (nesse sentido a analogia dos
romances de Dostoievski com a tragédia é correta). Não ocorre, em cada romance,
uma oposição dialeticamente superada entre muitas consciências que não se
fundem em unidade do espírito em processo de formação, assim como não se fundem
espíritos e almas no mundo formalmente polifônico de Dante. No melhor dos
casos, como ocorre no universo de Dante, elas, sem perder a individualidade nem
fundir-se, mas combinando-se, poderiam formar uma figura estática, uma espécie
de acontecimento estático, à semelhança da imagem dantesca e uma rosa mística
(as almas dos beatificados). Nos limites do próprio romance não se desenvolve,
não se forma tampouco o espírito do autor; este, como no mundo de Dante,
contempla ou se torna um dos participantes. Nos limites do romance, os
universos das personagens estabelecem entre si inter-relações de
acontecimentos, embora estas, como já dissemos, sejam as que menos se podem
reduzir às relações de tese, antítese e síntese.
[1] FRANK, Joseph. Dostoïévski os anos milagrosos. Trad.
Geraldo Gerson de Souza. Edusp. São Paulo. 2003. pág. 414.
[4] LOPES, Paulo César Carneiro. Utopia cristã no
sertão mineiro – uma leitura de “A hora e vez de Augusto Matraga” de João
Guimarães Rosa. Vozes. 1997. pág.21.
[5] BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de
Dostoïévski. Trad. Paulo Bezerra. Forense-Universitária. Rio de Janeiro. 1981.
pág. 66.
[6] Hölderlin,
Friedrich (1770-1843), um dos maiores poetas líricos alemães, cuja obra
situa-se entre escola clássica e a romântica.
Destacam-se as poesias líricas Der Archipelagus e Der blinde Sänger (O
cantor cego), o romance Hyperion (2 volumes, 1797-1799) e a tragédia em verso A morte de
Empédocles.
[7] Trata-se do escritor
e poeta berlinense Ludwig Tiech (1773-1853), autor,
dentre outros, do famoso “Der blonde Eckbert”.
[8] NIETZSCHE, Friedrich. Introdução à tragédia de
Sófocles. Trad. Ernani Chaves. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed. 2006. pág. 69.
[9] NIETZSCHE, Friedrich. A origem da tragédia. Trad.
Marcio Pugliese. São Paulo. Madras. 2005. págs.41-42.
[10] NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. Trad.
Paulo César de Souza. São Paulo. Companhia das Letras. 2005. pág. 132.
[12] DOSTOIÉVSKI, Fyodor Mikhailovitch. O idiota. Trad.
José Geraldo Vieira. São Paulo. Martins Claret. 2004. págs. 280-281.
[13] NIETZSCHE, Friedrich. Introdução à tragédia de
Sófocles. Trad. Ernani Chaves. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed. 2006. pág. 18
[14] Idem, idem.
[16] NIETZSCHE, Friedrich. Introdução à tragédia de
Sófocles. Trad. Ernani Chaves. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed. 2006pág. 19.
[17] BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski.
Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro. Forense-Universitária. 198l. pág. 17.
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