(ENSAIO) - BUSCA DA DIALÉTICA DA HISTÓRIA - Manoel Ferreira
Temática extremamente complexa e
“aberta”, mas em que, no referente a uma série de pontos fundamentais, não
podem haver, na opinião de Sartre, quaisquer dúvidas: a) os conflitos, as
hegelianas negações das negações, são o motor da história; b) a dialética é o
princípio e a lei do movimento histórico; c) o marxismo, tendo elaborado os
pontos anteriores numa perspectiva integralmente humana e da qual foram
afastados fatores metafísicos, é a única hermenêutica válida da história.
Contudo, razões teóricas e
histórico-culturais fizeram com que o marxismo não tenha fundamentado
adequadamente a sua própria interpretação da realidade enquanto realidade
histórico-humana, em vez disso tendo cristalizado a noção dialética como motor
humano da história numa teoria ontologicamente dogmática da própria dialética.
O que transformou essa última em algo de não humano e, portanto, de não
inteligível.
Se um retorno a anteriores teorias da
dialética (como a hegeliana) não pode obviamente ser proposto, não menos
insatisfatórias são certas novas leituras contemporâneas nas quais muitas vezes
se descurou, em nome de uma recuperação do humano e do concreto (pensemos hoje
o “hiperempirismo de Gurvitch), o não menos essencial momento da unidade e
totalidade da história.
Mister é elaborar uma correta noção de
dialética, liberta dos seus vários condicionamentos ontológicos, naturalistas,
etc. Trata-se de evidenciar o fundamento e as condições da dialética histórica,
assim como os modos do seu desenvolvimento (histórico) unitário onde se
evidenciam as condições de sua inteligibilidade.
Tal não exige uma nova interpretação
concreta do desenvolvimento histórico do homem, antes exige a distinção a nível
formal dos modos constitutivos de tal desenvolvimento, com a dupla finalidade
de os livrar de todos os equívocos e mal-entendidos que os cobriram, assim
demonstrando a sua compreensibilidade.
Sartre não hesita em afirmar ser o seu
objetivo o de “determinar as condições formais da História”, ou ainda o de
“lançar as bases dos prolegômenos a toda a antropologia futura”. Convém
acentuar que, até aqui, o kantismo da Critique de la Raison Dialectique é muito
mais aparente do que substancial. Ao contrário de Kant, Sartre propõe-se fixar
os fundamentos e os limites não já dos do conhecimento mas sim da realidade
histórica humana no seu movimento formalmente considerado.
Critique de la Raison Dialectique surge
sobretudo (exceptuando embora todas as diferenças relativamente ao autor da Fenomenologia
do Espírito) como uma obra dominada pela teoria de Hegel; ele mostra
(hegelianamente) o movimento teleológico unitário da práxis humana, considerada
nas sucessivas fases ou figuras paradigmáticas da sua evolução.
A Critique de la Raison Dialectique marca
a adesão de Sartre ao marxismo. Não se compreende bem essa adesão, não se
compreende seu alcance nem sua natureza, se forem omitidas duas coisas.
O marxismo a que adere, para começar, é
um marxismo hegelianizado, visto, lido, e devolvido, através das categorias do
hegelianismo: pensa-se no marxismo de Lukács em História e consciência de
classe (1923); pensa-se no marxismo “humanista”, ou seja, hegeliano, contra o
qual Althusser, no início dos anos ´60, engaja seu trabalho, mas de que fazia,
já em 19561, uma maravilhosa “terra inexplorada”, transbordante de
alternativas epistemológicas desconhecidas.
Quando se lê que ser “marxista”, para
esse segundo Sartre, é sustentar que “a pluralidade dos sentidos da História
não pode se descobrir e se colocar por si, senão sobre o fundo de uma totalização
futura, em função desta e em contradição com ela”, quando se ouve dizer que
nosso “ofício teórico e prático”, nossa “tarefa histórica, no seio desse mundo
polivalente”, “tornar cada dia mais próxima” essa “totalização” e “aproximar o
momento em que a História só terá um único sentido e tenderá a se dissolver nos
homens concretos, que a farão em comum”2, não se pode não pensar que
ele diz “Marx” quando, no fundo dele mesmo e de sua língua, é, evidentemente
“Hegel” que ele pensa.
Ao se aproximar da prática e da
história, Sartre procura também precisar o posicionamento e a tarefa ideológica
e política da literatura engagée. Deve ela, em primeira instância,
distanciar-se da burguesia (que, no entanto, a gerou) aproveitando a sua crise
atual e a sua falta de unidade ; deve dedicar-se a uma infatigável obra de
crítica radical e de denúncia dos abusos e das mistificações; deve mostrar a
situação alienada do trabalho no mundo capitalista; e deve, finalmente, pôr em
evidência a crise dos princípios e dos valores burgueses.
No sentido da realização deste projeto
utilizará situações extremas e exemplares em obras que “irritem e inquietem”.
Deve, acima de tudo, antes de nada, alinhar sempre ao lado dos oprimidos : “não
estamos mais com aqueles que querem possuir o mundo mas com aqueles que o
querem transformar”2
Tudo isso parece aproximar objetivamente a
literatura comprometida da situação e os projetos do proletariado. E, com
efeito, Sartre encara a classe operária com um interesse novo e mais
participativo:
“Nós dirigimo-nos à classe operária, que poderia
hoje, como o pôde a burguesia de 1780, constituir para o escritor um público
revolucionário [...]. Para (o operário) oprimido, a literatura como
negatividade poderia refletir o objeto da sua cólera. Produtor e
revolucionário, ele é tema por excelência de uma literatura da práxis. Temos em
comum com ele o dever de contestar e de construir; ele reclama o direito de
fazer história no momento em que nós descobrimos a nossa historicidade. Não nos
familiarizamos ainda com a sua linguagem, nem ele ainda com a nossa. Mas
sabemos já os meios para o conseguir; é necessário, como o mostrarei mais
adiante, conquistar os mass-media, o que não é demasiado difícil [...]. eu não
acredito na ´Missão´ do proletariado [...]. Ele é feito de homens justos e
injustos que podem ser desviados e que são muitas vezes enganados. Mas não se
deve hesitar em dizer que o destino da literatura está ligado ao da classe
operária”3
Sartre parece persuadido de que se
possa miraculosamente elevar acima das classes ou dos partidos em conflito. Os
políticos, todos os políticos, têm tendência enquanto tal para utilizar
determinados meios, valorizando-os apenas em relação à sua comodidade de ação:
“Quem pode demonstrar ao governo, aos partidos e aos cidadãos o valor dos meios
empregados, senão o escritor?” 4
A concepção do homem de cultura
como funcionário da humanidade está
organicamente ligada a uma teoria do empenhamento intelectual como atividade
pedagógica e metapolítica. Demiurgo destituído de interesses práticos
imediatos, o escritor deve dirigir-se à “comunidade inteira”, deve “revelar ao
público as suas próprias necessidades”, deve educar e congregar em conjunto
“burgueses de boa vontade, intelectuais, operários não comunistas” 5
Na
ausência de uma percepção da estrutura classista da sociedade e das suas
implicações, na sua concepção universalista e a - classista do intelectual
comprometido, no privilégio concedido à ação puramente intelectual e na sua
rejeição moralista das “mãos sujas” dos políticos, Sartre revela todos os
limites burgueses da sua própria concepção de empenhamento. Num momento de
sinceridade, ele indicará o público a que de fato se dirige a literatura
comprometida (“o nosso público. O nosso único público...”) como sendo a burguesia
“destroçada, sem futuro, sem garantias, sem justificação”, os burgueses de
“consciência infeliz”, lúcidos e desorientados, que procuram “razões para viver
e ter esperança, uma ideologia nova” 6
Se
ainda em As Mãos Sujas7, peça de teatro, a teoria do engajamento
leva Sartre a teorizar (se bem que com algumas ambigüidades) a necessidade para
o homem de não perseguir objetivos abstratos de pureza moral, em Le Diable et
le Bom Dieu8 ele parece rejeitar essa dimensão de escolha pessoal,
arbitrária e absoluta que fora característica de tantos dos seus personagens
anteriores, assim como da filosofia delineada em O Ser e o Nada e no próprio
artigo Qu´est-ce que la Litérature?.
Goetz,
o personagem principal descobre a vaidade do gesto solitário e absoluto seja
ele bom ou mau, e descobre o seu próprio condicionamento histórico-social de
raiz (“tu serves os poderosos, Goetz, faças o que fizeres...”), decidindo por
isso atuar em conjunto com outros homens, ou melhor, com uma classe determinada
de homens, tendo em vista obstáculos e objetivos determinados.
Goetz
foi vítima da “generosidade” dos outros, a ponto de não poder mais suportar ser
amado, nem mesmo por uma mulher. Conheceu e suportou esta forma de amor que se
finge dedicar a um ser unicamente para fugir de si próprio. “O que vou fazer
com o amor que me dedicam?”, diz ele a Catherine. “Se você me ama, é você quem
terá todo o prazer... eu não quero que se aproveitem de mim”. Desse modo, chega
ele a não poder suportar que lhe dêem seja o que for, nem que um ser seja ele
quem for, se dê a ele. Os seres, como as coisas, temos de tomá-los à força.
Mesmo de Deus, uma eventual indulgência lhe causa horror; “Ele não me perdoará,
não importa o que eu faça”. Finalmente, a violência em relação aos outros é, a
seus olhos, o único meio de não ser violentado, utilizado, tratado como objeto
pela “bondade” dos outros.
Goetz,
tendo optado por fazer o Bem, não vai tardar a declarar: “O bem se fará contra
todos”. Contra os camponeses, em primeiríssimo lugar, e contra Karl, seu antigo
criado de quarto, que os incita à revolta: “Eu estou me lixando para o amor.
Conrad era duro e bruto, mas seus insultos me ofendiam menos que sua bondade”.
Reencontramos o mesmo desespero que encontramos em Hugo, que, desligado de seu
ambiente burguês, não conseguia se adaptar ao meio proletário”.
Não
importa. Goetz os amará, mesmo contra a vontade deles. Explicam-lhe que, ao
doar suas terras, ele provocará em toda a Alemanha a revolta dos camponeses
contra os senhores e que os camponeses, não estando ainda em condições de
enfrentar vantajosamente o poderio dos senhores, correrão o risco de ser
exterminados. Mas, para Goetz, o problema não é este: ele quer ser Deus ou
ninguém. “Eu me lanço à batalha do Bem e pretendo ganha-la imediatamente e sem
derramamento de sangue... Não farei o bem em pequenas parcelas”.
Se
Goetz é um impostor, é que nasceu na impostura, e o mundo, desde que ele
apareceu, tornou-lhe impossível toda atitude sincera. Se trapaceia, é porque é
falso. Se seu amor é voltado para si próprio e se ele desconhece a modéstia, é
que nunca foi amado, senão por caridade: por homens que, tomando-o por um
crápula, se vangloriavam de amá-lo apesar de tudo. Desse modo, foi ele logo
atingido pelo olhar dos outros até o mais profundo de seu ser, olhar sob o qual
ele se sentia, ao mesmo tempo, objeto de desprezo e de pretexto para atitudes
nobres. A falsidade nele não é fruto de um capricho: é uma situação imposta,
pois que ele não foi, certamente, falso “por natureza”, como Mathieu temia
sê-lo, mas foi a sociedade que, desde a infância, o enganou, recebendo-o em seu
seio só para fazê-lo sentir a todo momento que ele não pertencia àquele
ambiente.
Afora isso, o fato mesmo da
adesão, sua maneira de apresentá-la e de apresentar sua necessidade, enfim, a
célebre fórmula sobre o marxismo “insuperável filosofia do nosso tempo”,
testemunham uma adesão primeira à maneira hegeliana de contar a história das
idéias.
Sartre sempre tomou muito cuidado de
precisar que Marx não era mais nem menos insuperável do que o foram Descartes
ou Locke, no tempo deles, pois há sempre, em cada época, um pensamento que se
torna o “húmus
para todo pensamento particular”
e o “horizonte
de qualquer cultura”, e ele
permanecerá tal horizonte, conservará esse papel de filosofia reinante e
insuperável, “enquanto o momento histórico” de que é “expressão” não tiver sido
“superado”.
Essa idéia de uma filosofia reinante, a
hipótese segundo a qual cada época teria uma filosofia dominante a resumir seus
debates, a abraçar a maior parte de suas questões, enfim, a exprimir seu
“espírito”, não é a hipótese hegeliana por excelência? não é, precisamente, a
prova de que Sartre só raciocina agora enquanto hegeliano, a partir das
categorias e dos modos de periodização do hegelianismo.
O problema da extensão da dialética se
concentra em dois pontos: a dialética na História e a dialética na natureza.
Deve-se reconhecer que os cientistas conseguem estabelecer dialeticidade em
certos setores da natureza; e então é que começa o problema: a natureza,
pergunta-se, manifesta em si mesmo caráter dialético, ou cabe ao cientista
instaurar metodologicamente a dialeticidade?
Por outro lado, a assertiva de que a
natureza conserva um estatuto de exterioridade em relação a si mesma parece
pressupor, mais uma vez, a consciência. Afirmar que a natureza permanece
exterior a si só se entende a partir de um conceito, digamos, unívoco de
interioridade: a interioridade como sinônimo de consciência; dizer que a
natureza é exterior a si própria redunda no mesmo que dizer que ela não tem
consciência, e aqui também o argumento permanece negativo.
Na Critique, pergunta Sartre se se deve
negar a existência de ligações dialéticas no seio da Natureza inanimada, e
responde: “De forma alguma. Em verdade, ainda não estamos, no estado atual dos
nossos conhecimentos, em condições de negá-lo ou afirmá-lo”9
Os marxistas asseveram que o fato de
que há dialeticidade cientificamente constatável em alguns setores da natureza
autoriza a inferir que a natureza, toda ela, é dialética.
Para Sartre, os marxistas e mesmo um
Gurvitch (exemplo de um pensamento não comprometido com a esquerda política), a
última palavra sobre o assunto pertence à ciência da natureza; à pesquisa
científica caberá decidir em definitivo sobre a questão.
NOTAS
1 SARTRE, Jean-Paul. Le Reformisme et ses fetiches, Les Temps
Modernes, n. 122. fevereiro de 1956, retomado em Situations VIII, p. 111-112
2 SARTRE, Jean-Paul. Qu´est-ce que la
Litérature?, in Situations, II. P. 313
3 ibid. P. 276-277
4 – Em dizendo “Convidamos todos a serem responsáveis com
nosso Patrimônio, é o nosso Orgulho, é a nossa Verdade, é a nossa Esperança”,
obviamente referíamo-nos a que não acreditamos mais em orgulho, verdade,
esperança. Em
dizendo “ (...)responsáveis com nosso
Patrimônio, é o nosso Orgulho, é a nossa Verdade, é a nossa Esperança”, em Caminhos de Luz nas Trevas
referimo-nos a que não há mais da parte da comunidade diamantinense modo de
acreditar no orgulho, verdade, esperança, senão na responsabilidade com o
Patrimônio Histórico e Cultural, senão na busca de uma interiorização das artes
e da cultura, no engajamento não só da parte de intelectuais, escritores,
historiadores, empresários, personalidades, autoridades, 0 mas de toda a
comunidade.
5
– SARTRE, Jean-Paul. Qu´est-ce que la Litérature?, in Situations, II. P. 257 e
292
6 – ibid. p. 275.
7 – As Mãos Sujas, a sua peça mais
celébre, nasce da oposição política de um realista e de um idealista. Um chefe
revolucionário colabora com os seus adversários, uma facção do seu próprio
partido considera essa tática inoportuna e encarrega um jovem idealista de o
assassinar. Este livre reflete principalmente as idéias de Sartre sobre o
problema da liberdade.
8 – Jean-Paul Sartre medita, em O
diabo e o bom Deus, por forma exemplar, o destino dos homens do seu tempo, que
procuram, ansiosamente, novos horizontes para o mundo em que vivemos.
9
- In Marxisme et Existencialisme,
Controverse sur la Dialectique, Paris, Plon, 1962, p. 10
10 SARTRE, Jean-Paul. Critique de la raison dialectique. p. 129
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