CINZAS DO ÓCIO - Manoel Ferreira
Antes até que não seja por inteiro
entendido, gostaria de apresentar o sentido em que me ocupo para falar a
respeito das cinzas do ócio, conhecimento, inclusive, que irá proporcionar
esclarecer mistérios e enigmas que,
porventura, estejam envelando, mas isto é apenas uma estratégia, um modo de
tripudiar as inteligências, tudo está muito claro, muito específico.
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Há momentos em que não se é possível
apresentar argumentos que invalidem as desconfianças, as hipóteses, não são
desconfianças, não são hipóteses, são as verdades mais nuas e cruas, algo assim
muitíssimo interessante é que são os débeis que primeiro percebem e vêem, é a
oportunidade que têm em mãos de mostrar não são débeis, não são dementes, são
inteligentes, são perspicazes, são sábios, e não há quem consiga isto negar ou
negligenciar, para todo o sempre será, mesmo que ninguém aceite ou endosse por
delicadeza e gentileza
Se é verdade que se pode acreditar a
fênix renasce das cinzas, pode-se também acreditar, sabendo como irei
apresentar, que o sentido em que me inspiro é relevante, assaz importante para
haver insinuado no espírito com louvores à sua beleza, e ter a alguém dito como
é esplendoroso entregar ao fogo tamanhos encantos, e ainda lhe encarecer a
constância e a coragem.
Encarecer a constância e a coragem de
que ou de quem?! Se de imediato não revelo o que estou entendendo por ócio, o sentido dicionarizado,
o sentido que os ignaros e imbecis normalmente entendem, estando sim
equivocados, mas o equívoco alimenta e protege as intenções mais perspicazes, é
que estaria de um modo covarde e suspeito agindo, entregando o riso aos ouros,
se assim posso dizer, referindo-me a perder a graça de durante toda a leitura
quem lesse, quem ouvisse, quem não importa, estar a buscar o que entendo,
estaria enganado quanto ao seu, o sentido que atribui à palavra “ócio”, estaria
equivocado, mas isto seria assumir o equívoco, e este protege as intenções mais
perspicazes, seria um cínico, seria um falso, seria um homem vil e estúpido.
Obrigaria a este leitor/ouvinte a reler, se obra, pena, não houve a gravação na
emissora de rádio; lendo a obra, não conseguiu ainda destrinçar, deslindar, não
conseguiu ainda livrar-se do sentimento de que é a sua imagem ali refletida.
Tendo demonstrado nestas ainda poucas
linhas do prazer e deleite que será chegar ao fim, começa-se e não vê terminar,
um espetáculo de linguagem, de estilo, de forma, de conteúdo, de inteligência e
perspicácias, sem deixar de lado a
sabedoria,com que o tema do ócio fora desenvolvido, um requinte de construção e
numa linguagem até certo ponto suave e meiga, dócil e compassiva, sem esconder
interesses espúrios, sem tripudiar e sem dissimular, algo assim muito
translúcido.
Então, se apresentasse de imediato o
sentido que estou entendendo aqui por esta preciosidade de intenções e desejos,
de êxtases e volúpias, aquando estando a buscar compreender a condição humana,
os sentimentos mais sutis nas vilezas e hipocrisias, ninguém iria desejar roer
primeiro as suas carnes frias, refiro-me aos vermes. Tendo demonstrado a
sensação do fogo por causa da linguagem e por vaidade, falo longamente, de modo
a fazer-me amar um pouco a vida e chegando até a inspirar alguma benevolência
por aquilo que me falta.
Linguagem até certo ponto suave e
meiga, dócil e compassiva... Linguagem que queima as entranhas, as dores e
sofrimentos atrozes, um medo sem limites e uma vontade enorme de ultrapassar os
limites, revelar-se por inteiro, mas há algo que lhe falta para esta
ultrapassagem, para este conhecimento de tão tamanha negligência, tão grande
sentimento de culpa e responsabilidade, tanta vileza e mal-caratice. Afinal de
que mesmo está dizendo? O que é tão horroroso assim? O que há de demência? Que
atitude é esta, enfim, que torna qualquer homem um nada, até dele próprio é
capaz de rir, um idiota completo e absoluto, um “bobo-da-corte” como se é
costume dizer. Não revela, e quem sabe nem revelará, encherá sua lingüiça,
mostrará seus argumentos de estilo e criação, e ninguém saberá. Fica a critério
de cada um deslindar seus mistérios, suas dores mais ocultas, suas cicatrizes,
seus pitis e achaques.
A alegria de um homem venturoso seria
uma ofensa sem precedentes, aliás, a título de uma ironia aos senhores doutos
quem de imediato intuem e percebem os pormenores mais sutis, inclusive
lembrando de que até o presente instante não apresentei o que entendo por
ociosidade, não sendo mesmo uma idiotice, mas figurará como a única frase de um
único parágrafo ao final, como entendo que alguém, lendo, terá sua volúpia e
êxtase de retornar ao início, relendo, e fará isto inúmeras vezes por causa dos
deleites espirituais e sensíveis de seu espírito e de sua alma, entrega-se a
contemplar os arbustos que, apoiando-se um no outro, fortalecem-se contra a
tempestade.
Isto de acariciar a serpente até que
ela haja engolido o coração não é atitude, não é desejo de alguém, além de
estar sendo engolido, enquanto acaricia, ouviria os risos de quem assiste à
cena, e isto seria intolerável de assumir, tem de assumir, ficará no mundo
apenas a imagem do imbecil que estava sendo. Não acredito também noutra coisa,
se haveria alguém quem tenha horror à própria existência e apega-se a ela. Não
há quem algo neste nível assumiria assim de mão-beijada, como diz o vulgo e os
doutos, nestes assuntos são mestres, doutores, com extrema facilidade, até
mesmo desconfiando se houve algum equívoco outro.
Jamais falaria de minhas desgraças, dos
sofrimentos de toda a minha vida, do que fui obrigado a passar com algumas
pessoas, os traumas e conflitos que habitam a minha alma. Esta ridícula
fraqueza de se abrir com as pessoas sobre coisas muito íntimas é quem sabe um
dos pendores mais funestos: não creio haja algo tão tolo quanto carregar
continuamente um fardo que sempre se quer lançar por terra. Expor-me no mercado
literário, isto nunca. Se se revela possível agora dizer algo que exista nesta
entrelinhas, se for verdadeiro, direi com todas as letras, inclusive sugerindo
que a palavra seja separada em sílabas por hífens, assim fica bem explícito o
tom e a densidade da voz com que é pronunciada, com que é escrita:
“Ver-da-dei-ro”, como o fiz com alguém em uma correspondência, preocupando-me
em escrachar com a ortografia, assim suscitaria que estivesse bêbado, na
verdade escrevi bem confortável à mesa de minha residência: “Ca-na-lha”.
Cada palavra que pronuncio neste
monólogo, para mim, quem está sentado à cadeira de sofá em sua alcova, domingo
à tarde, algum resto de sanduíche de pão com queijo, chapado, um copo de suco
de limão capeta, adoro, que sabor mais sutil e provocante; para quem porventura
estivesse a ouvir-me, uma conversação que acumula prodígios sobre prodígios, a
alma inteira coando na ponta da língua, atenções perspicazes da audição,
fulgurantes os olhos que contemplam as
palavras, que as lêem, sem o suco de limão-capeta, quase ninguém suporta,
conheço alguém que chupa como se estivesse chupando qualquer outra fruta,
estrala a língua de tanto prazer. Há gostos para tudo. Sou eu quem chupa,
estralo a língua de tanto prazer.
Referia-me a apresentar o sentido do
termo “ócio”, não me tendo ainda dignado a fazê-lo, pois que está sendo
construído nas entrelinhas das palavras, está se revelando em todo o seu êxtase
e volúpia, desejando servir a ambos os lados, ter um reino no céu e outro no
inferno, livre acesso de um para o outro, nestas ou naquelas circunstâncias e
situações, mas suscitando muitos sofrimentos contidos na alma, o desejo de
liberdade plena e absoluta, de sobrevoar com a imaginação todos os horizontes,
todas as montanhas verticais que se erguem como muralhas, só sendo possível
desce-las por perigosos precipios, mesmo assim é uma aventura esplendorosa,
exigindo apenas perspicácia e destreza, qualquer deslize não sobrará nem a alma
para registrar os fatos e acontecimentos.
Se está sendo elaborado desde o início,
se este sentido já se encontra delineado e burilado, restando apenas que a
última palavra seja falada, justificaria sim que o fizesse. Daí em diante,
falado, seriam sim as interpretações, cada um chegando a este ou aquele ponto
de vista, passando os anos, os séculos, os milênios, estas e aquelas
interpretações, e sempre suscitando outras... Talvez tenha sido esta a intenção
com este monólogo ou conversação, não sou quem isto decide, talvez tenha sido
este o interesse em permanecer não dizendo o que entendo por este termo “ócio”,
e com ele sendo capaz de suscitar nos íntimos muitos mistérios e segredos, e se
ele se dispõe a averiguar será com quem se encontrará, o encontro será consigo,
a imagem refletida no espelho é dele próprio.
Se encarecido a constância e a coragem
de que ou de quem? Seria sim necessário apresentar a que esteja porventura
desejando suscitar, mas é a bem da verdade que a busca insaciável de conservar
a tensão do mistério, a tensão dos encontros e desencontros, prendendo a
atenção de quem ouve ou de quem lê até ao final. A constância e a coragem disto
elaborar e burilar com arte e engenhosidade. Encarece a constância e a coragem
tal atitude, tal perspicácia com a linguagem, com a destreza em colocar as
palavras em seus devidos lugares, suscitando interpretações muitíssimo
variadas, um mergulho profundo nas melancolias, nostalgias, nas idéias tristes
e desconsoladoras. Torna-se alguém quem conhece os liames de sua sensibilidade,
os interstícios da criação, da intuição, da percepção. Nos espíritos onde
florescem as artes, os homens são devorados de mais inveja, de mais cuidados e
inquietações do que experimentaria alguns outros de suas misérias e cinismos.
Até havia me esquecido do sentido que atribuo ao termo “ócio”,
interrompi-me por um instante, tomei o último gole de suco de limão-capeta.
Surgiu-me que “ócio” significa:
“trabalho mental ou ocupação suave, agradável”.
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