MISTÉRIO DE TÁCITAS PENAS - Manoel
Acordei
hoje com a macaca, leitor – de tão inspirado com os instintos satíricos à flor
dos dedos, com os dedos à flor dos instintos, de mal intencionado com os
instintos à flor dos dedos, a reciprocidade re-velando o ácido satírico, mais
mordaz, astuto e perspicaz que o crítico, ademais para completar a mesclidade,
com a galhofa à flor da pele, vice-versa; assim é a macaca com que acordei
nesta manhã ensimesmada, de friozinho agradável, se em São Paulo, “êta cidade por que nutro um carinho todo
especial, ensinou-me a re-visar e re-visitar a vida”, sairia de casa e iria
passear na Avenida Paulista, sentindo no íntimo as delícias da imagem dos
contrastes e paisagem dos contrastes e beleza, dando bem para o leitor imaginar
ou adivinhar o que poderá ad-vir, boa coisa não será, visto que já conhece o
sangue que corre nas minhas veias satíricas.
Não
cuide, deste já, você, com efeito, irá cair na gargalhada altissonante, quiçá a
humanidade inteira ouvirá e, assustada, curiosa por tanto estardalhaço,
desejará saber o que está acontecendo - contando-lhe, seguirá as gargalhadas,
dizendo e esgoelando para todos os cantos do uni-verso e do mundo alguém lhe
despertou das tragédias, sofrimentos, dores, para o riso, gargalhada,
felicidade, alegria e contentamento de
estar tirando sarro de tudo e de todos, séculos e milênios, carências, fomes e
sedes -, fará os mortos todos ressuscitarem para participarem, o mundo todo
gargalhando com os meus bons dias, sentir-me-ei orgulhoso e satisfeito, desejo
tanto isso, mas pode ser que não aconteça. A frustração será inevitável,
prometi com as primeiras tácitas palavras, estilo e linguagem ,escusos termos,
gargalhadas, e acabo não cumprindo as intenções.
Começar
deste modo só em momento de divino espírito jocoso, uma vez em três décadas;
manter este clima até ao crepúsculo da última palavra é que são elas,
dificílimo, qualquer deslize a presença do insólito e ridículo, exige mais os
instintos que a intuição e inspiração, é mandar todo o resto às oitavas
maravilhas do inferno, en-fiar a pena papel adentro.
Já
andava sorumbático de tanto cheirar o infinito, eternidade, imortalidade, em busca de seus ares frescos, puros,
divinos, perfeitos, para umas reflexões do além, não do bem e do mal, isto lá
era com Nietzsche, comigo é além dos confins e cancelas do uni-verso e dos
horizontes, temeroso de ele passar a cheirar a mim em busca dos odores da
con-(t)-igência, e saber desde toda a eternidade que são fétidos e não vão de
modo algum dar uma imagem de uma espiritualidade humana, mas a condição de um
jegue no estábulo sujo e infecto; só cheirei vulgaridades, asnadas,
preocupando-me o leitor retirar as suas ad-mirações e louvores, elevando-me à
nona categoria dos imbecis. Josefina dizendo: “Bem, aposente a pena, antes que
seja crucificado com ela; mais vale a aposentadoria no auge da glória que a
continuidade e o fracasso na velhice, a morte no esquecimento”.
Não
sei se diga de soslaio, o olhar no viés do cinismo e ironia. De soslaio! Não
sei se diga sem perceber, veio-me de supetão!. De supetão! Fato é que me lembrou
o pé de porco de Cabo Rego, o maior orador de nossa comunidade, as
conseqüências drásticas e resultados benéficos que propiciaram, resolvendo ser
por um instante Cabo Rego, indo comer um feijão tropeiro com lingüiça no
mercado municipal, não esperava merda líquida hoje pela manhã. O remendo do
poema pode ser pior, sempre o foi, mas cabo Rego não inventou a doutrina do
nariz metafísico, sugeriu apenas a limpeza interior dos políticos como um
princípio de a lei contra a corrupção que estava sendo votada naquele plenário
da Câmara Municipal dar resultado.
Se uma
coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na
realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas experiências
paralelas a única necessária é a da opinião, não da realidade, que é apenas
conveniente. Tão depressa fiz este achado especulativo, como dei graças a Deus
do favor especial, e determinei-me a verificá-lo por experiências; o que
alcancei, em mais de um caso, que não relato, por ter estado numa dor de barriga
daquelas, sentado no vaso sanitário, resultado do feijão tropeiro com lingüiça
que comi no botequim na praça do mercado municipal, não sabia se cuidava de
tampar as narinas com as mãos em concha ou se das idéias que me surgiam aos
borbotões, acabei fazendo as duas coisas com dificuldades, mas não quero
misturar as coisas, merda líquida com idéias metafísicas, duas coisas que não
combinam nem no infinito, e também por não vos tomar o tempo.
Não
pode adivinhar o que me deu idéia para duas novas doutrina; foi nada menos que
a bola da lua, essa insigne e magnificente bola luminosa, inspiração dos
corações apaixonados, a fazerem juras de eterno amor acompanhado de fidelidade
e lealdade, de promessas de felicidades por toda a vida, dos poetas românticos,
a mergulharem profundo nas dores e sofrimentos, angústias e desesperos do verbo
amar, dos desejos de felicidades eternas, mas na realidade as infelicidades
perenes a habitarem-lhes a alma, que, posta no cabeço de uma montanha ou no
píncaro de uma torre, dá claridade a uma campina inteira, ainda a mais
dilatada. Uma tal bola, com tais quilates de luz, não existiu jamais, e ninguém
jamais a viu, viu-a, mas tudo que se diz ao espaço é ilusão de ótica, dizem até
que as nuvens não existem, no espaço tudo é vazio; mas muitas pessoas crêem que
existe e mais de um dirá que a viu com os seus próprios olhos que a terra há-de
comer.
Para
compreender a eficácia do meu sistema, basta ad-vertir que os grilos não podem
nascer do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção da lua nova, e por outro
lado, o princípio da vida futura não está em certa gota de sangue de vaca; não
me lembra o nome de dois homens, sei terem sido varões bem astutos, com tal
arte souberam meter estas duas idéias no ânimo da multidão, que hoje desfrutam
a nomeada de grandes físicos e maiores filósofos, e têm consigo pessoas capazes
de dar a vida por eles. Quem me dera as musas me agraciassem com a arte de
misturar merda líquida com idéias metafísicas e, assim, mergulhar bem fundo no
mistério do espaço sideral, ser considerado perfeito gênio, ninguém em toda a
história da humanidade imaginou que merda líquida e idéias metafísicas
misturadas desvendassem tal mistério!
Para
elucidar um pouco o que imaginei para a segunda doutrina num dos momentos mais
difíceis no vaso sanitário – em verdade, deu-me na teia sair segurando a calça
pela casa a fora, abrindo a porta da sala de visita, descendo os degraus da
escada, abrir o portão, por não estar suportando tanta catinga, tinha de cuidar
da alma, o corpo já estava podre; não o fiz, seria preso pela polícia, com uma
atenuante, ela na radiopatrulha, eu na frente com a calça na mão -, relacionei
a merda líquida com a virtude, o saber com as idéias metafísicas, concluindo
daí que ambas têm duas existências paralelas, uma no sujeito que a possui, e
por não suportar os seus odores finos e refinados, tem necessidade de
expeli-los, livrar-se deles, outra no espírito de quem os re-fletem, meditam,
elucubram ou con-templam numa busca destrambelhada, des-enfreada de compreensão
da vida, da morte, do real e da realidade. Se puser as mais sublimes virtudes e
os mais profundos conhecimentos em um sujeito solitário, remoto de todo contato
com outros homens, é como se eles não existissem. Se puser as mais puras idéias
e as mais abismáticas verdades delas mesmas em um sujeito que vive enfiado em
rebanhos por todas as horas do dia, nem por um átimo de segundo se lhe vê
afastado deles, convive com Deus e o diabo, sente-se amado, idolatrado,
querido, é como se as puras idéias nada fossem senão idiotices. Os frutos da
macieira, se ninguém os gostar, valem tanto como as plantas venenosas, e, se
ninguém os vir, não valem nada; ou, por outras palavras mais intransigentes,
não há espetáculo sem espectador.
Ontem,
enquanto comia o tropeiro com lingüiça no botequim da praça do mercado
municipal, estando a cuidar nestas coisas, considerei que, para o fim de
alumiar um pouco o entendimento, tinha consumido longos anos de vida e
existência, e, aliás, nada chegaria a valer sem a existência de outros homens que
me vissem e honrassem; então cogitei se não haveria um jeitozinho, com o de
todos os brasileiros para todos os problemas sociais, políticos, econômicos,
existenciais, individuais, de obter o mesmo efeito, poupando tais trabalhos, e
ontem posso agora dizer que foi o dia da regeneração dos homens, pois me deu a
doutrina salvadora. Marieta, uma amiga de longos anos, aproximou-se de minha
mesa, cumprimentou-me, sentou-se, conversamos um pouco, assuntos triviais, mas
apreciei bastante haver-me interrompido, pois que o haver consumido longos anos
para entender poucas coisas da vida deu-me nos nervos.
Não
sei se o leitor já observou com percuciência a quantidade de narizes inchados
há em nossa comunidade, sessenta por cento das pessoas tem-lhe bem inchado, tanto
que lhes tomam metade e mais da cara, e não só a põem horrorível, senão que é
molesto carregar tamanho peso. Proponho – eis a minha nova doutrina – extrair
os narizes inchados, para alívio e melhoria das pessoas, nenhum deles consente
em prestar-se ao curativo, preferindo o excesso à lacuna, e tendo por mais
aborrecível que nenhuma outra coisa a ausência deste órgão. Há muito venho estudando sobre este fenômeno
e reconheço não haver mal em desnarigar as pessoas, antes é vantajoso por lhes
levar o mal, sem trazer fealdade, pois tanto vale um nariz disforme e pesado
como nenhum; não alcanço, contudo, persuadir, convencer os infelizes ao
sacrifício.
Tenho
um segredo excelente para eliminar o órgão. Perguntar-me-á o leitor qual seria
ele, fale sério, pois que também o seu nariz é bem inchado, não tem dinheiro
suficiente para uma plástica com Ivo Pitangui, quem sabe a minha invenção
seja-lhe benéfica. O segredo, leitor, é nada menos que substituir o nariz
inchado por um nariz aquilino, mas de pura natureza metafísica, isto é,
inacessível aos sentidos humanos, e contudo tão verdadeiro ou ainda mais do que
o cortado.
Imagino
o assombro de todos os meus leitores seja imenso, não sem razões, e não menor a
incredulidade de alguns, não digo de todos, sendo que a maioria não sabe que
acredite, pois se lhe repugna a metafísica do nariz, cede entretanto à energia
de minhas palavras, ao tom alto e convencido com que exponho e defino o remédio
para esta epidemia de narizes inchados em nossa comunidade. Um tanto envergonhados
do meu saber, não queiram ficar-me atrás, declaram que há bons fundamentos para
uma tal invenção, nova doutrina, visto não ser o homem todo outra coisa mais do
que um produto da idealidade transcendental; donde resulta que posso trazer,
com toda a verossimilhança, um nariz metafísico, e jurar ao povo que o efeito é
o mesmo.
Imagino
as pessoas, curadas do inchaço do nariz e supridas, olhando uns para os outros,
e não vendo nada no lugar do órgão cortado; mas, certos e certíssimos de que
ali está o órgão substituto, e que este é inacessível aos sentidos humanos, não
se dão por defraudados, e tornam aos seus ofícios. Nenhuma outra prova desejo
da eficácia de minha doutrina e do fruto dessa experiência, senão o fato de que
todos os desnarigados continuam a prover-se dos mesmos lenços de assoar.
Tenho
o nariz inchado, e você leitor pode estar pensando que a minha doutrina do
nariz retirado seja devido aos meus complexos e tristezas, um modo de me
conformar com este peso que trago na cara, mas não o cortaria de modo algum,
como poderia eu chegar a esta nova doutrina se não fosse a catinga da merda
líquida devido ao feijão tropeiro com lingüiça que comi no botequim na praça do
mercado. Meu nariz possui os seus valores inestimáveis, reconheço.
Não
cuide o leitor que essa conclusão tenha nascido daquilo que se costuma dizer:
“pimenta nos olhos do outro é refresco”, pois que o nariz metafísico não
obstrui em nada o sentir odores os mais diversos, desde os mais indesejáveis
aos mais aspirados. A diferença do leitor e eu é simples: seu nariz, metafísico
ou inchado, é para sentir odores, o meu inchado serve para com os odores
desagradáveis inventar doutrinas novas e eficazes.
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