Em verdade, os advérbios muitas vezes são
incapazes de manifestar os sustos e espantos com as nossas coisas peculiares e
particulares, com as coisas da vida e do mundo. Qualquer esforço será em vão.
Ou engolimos o sapo a seco, ou vamos con-viver continuamente com as angústias de
nossas incapacidades e limites. Não engulo a seco, não con-vivo, mas aprendi a
protelar, dizendo-me algum dia ser-me-á possível com-preender, não será mais
limite.
A paciência não é o meu forte, sou impaciente
com todas as coisas, estou consciente de a impaciência ser em mim neurose.
Jamais consigo encontrar algo de que necessito no momento, pode estar à minha
frente que não vejo, fosse cobra me picaria. Há razões bem específicas para
isto, estou ciente delas, não importa aqui entrar nos méritos delas; posso
dizer apenas ser trauma isto de não encontrar as coisas quando delas estou
necessitando. A tensão, medo de que sou tomado nestes momentos são imensos. Não
adianta ficar procurando por tempo indeterminado, não vou achar, vou é me
enervar, ficar tenso. É deixar para depois, quando não mais estiver
necessitando.
Há quase três meses, e não é exagero, não é
enfatização, venho espremendo os miolos à cata de uma palavra. Seria até
justificável me não lembrar dela por não ser de origem portuguesa, ser de origem
inglesa, o que se torna muito mais difícil. Escrevo e falo a língua inglesa,
embora não a exercite mais como no passado, afastei-me dela. Nem mesmo a
tradução dela me vinha à mente. Não é justificativa. Mas ficar três meses
esperando lembrar-me de uma palavra apenas é absurdo, e para isto não há
justificativa, explicações plausíveis. Lendo tanto como o faço, nalgum momento
poderia haver encontrado, mas não, em lugar algum a vi registrada, não a ouvi
pronunciada por ninguém.
Indubitável haver o tempo devido para todas
as coisas, saltos mirabolantes não são possíveis, há-de se esperar que
aconteçam e os resultados sejam benéficos. Até mesmo para lembrar de uma
palavra existe o tempo devido, a situação devida. Estive por longo tempo
desejando escrever algo a respeito das “bem-aventuranças” de modo irônico,
sarcástico, cínico, desejava uma sátira. Tentei várias vezes, mas todos os
esforços deram em nada. Escrevi; contudo, não era o que desejava. Se fosse me
angustiar, arrancar tufos de cabelo por isto, nada escreveria, tudo o que
escrevesse seria ridículo. Antes dessa sátira, teria de escrever outros textos
até despertar a sensibilidade em todas as suas dimensões, até se re-velar
mesmo. Andava pela rua rumo a uma loja para adquirir um celular e, abrindo um
livro, abri exatamente na página de uma sátira com as “bem-aventuranças”.
Adquiri o celular. Fui tomar uma cerveja. Consegui fazer uma boa anotação, não
parava um instante de escrever. Restava-me apenas trabalhar. Fi-lo no outro
dia, mas não tinha ainda alcançado o que desejava, as intenções estavam bem
longe de ser o que almejava. Estava satisfeito com o resultado obtido. Se
forçasse, poderia acabar de vez com o texto. Dei por terminado. Duas horas
depois, veio-me o que esperava para a satisfação plena da sátira das
“bem-aventuranças”.
Ontem mesmo, intitulei este que seria o
primeiro novo texto desta edição, ficando minutos a fio sem encontrar única
palavra que desse início. Às vezes acontece de escrever um parágrafo e só mais
tarde ser-me possível dar continuidade, mas há algum tempo não fico tempo
indeterminado sem única palavra para iniciar. Não adiantaria forçar,
arrancar-me de dentro única, pois não saberia dar continuidade. Jogaria
paciência no computador para passar o tempo.
Faz agora no Dia das Mulheres nove anos que
conheci minha esposa, e nunca mais nos afastamos, casamos quatro meses depois. Todos os anos comemoramos no
mesmo barzinho em que nos encontramos, jantando, tomando uma cerveja. Neste ano
cai numa segunda-feira, e neste dia o barzinho não abre suas portas para
receber os clientes. Tínhamos de escolher outro. Havia dito à esposa que, ao
in-vés de comemorarmos no dia 08 de março, poderíamos fazê-lo no dia 05, mas
não no barzinho em que nos conhecemos, devido estar por acontecer evento social
de aniversário da cidade, e, além de eu não participar de nada nela, faz anos
que me afastei de tudo que lhe diz respeito, não suporto multidão, fico
insuportável, tenso, nervoso, nem mesmo eu consigo tolerar-me. Poderíamos ir a
outro, fomos lá outras vezes comer pizza, gostei do lugar, calmo, tranqüilo.
Durante o dia, tive dor de cabeça, e ela hesitava de irmos. À tardinha, a dor
de cabeça escafedeu-se. Liguei, dizendo-lhe não haver mais razão para adiarmos
a comemoração do aniversário de nosso encontro. Aceitou.
Enquanto jogava paciência no computador,
esperava-a para sairmos. O texto ficaria para depois. Demorou um pouco. Como
não conseguia ganhar única partida – creio que à insatisfação por não encontrar
única palavra que desse início ao texto -, desliguei o computador, fechei o
escritório.
Num encontro com ex-colega de colégio há duas
semanas na Padaria Bel Pão, minutos antes de viajar, falou-me de ex-colega
nosso a quem não via há trinta e cinco anos. Nunca mais ouvi falar dele.
Participou sua mudança para São Paulo logo após nos graduarmos. Muito
dificilmente me lembrava dele.
- Oídes mora em São Paulo – disse ao José
Arnaldo – Não mais tive notícias dele.
- Não. Faz alguns anos que voltou a Curvelo.
É advogado. Seu escritório é na casa dele.
- Da próxima vez que voltar aqui, vou tentar
entrar em contato com ele.
Algumas vezes pensei olhar na lista
telefônica o número, mas não o fiz. Enfim, fi-lo. Consegui falar com a sua
esposa, estava na hora do almoço, tão logo terminasse teria uma audiência no
fórum, desse-lhe meu número, entraria em contacto comigo. Caso não o fizesse
até à noite, é que o dia havia sido atarefado, se quisesse, ligasse à noite por
volta das nove horas, com efeito o encontraria em casa. Enquanto esperava a
esposa terminar de se produzir para sairmos, liguei para Oídes, conversamos
muito, lembrando-nos de nossos tempos de estudantes. Ele era verdadeiramente um
gênio em Contabilidade, inteligentíssimo, não tirava menos de nove em todas as
disciplinas, mesmo assim os dez superavam todos os nove. Não me lembrava se ele
conseguiu tirar dez com a professora de Português, era realmente osso duro de
roer, além de não saber nem Literatura nem Língua Portuguesa, tudo dela era
decorado, tinha sua fama, e aprovada pela diretoria, pois difícil ser aprovado
com ela. Oídes só conseguiu tirar um dez com ela em dois anos de estudos.
Ficamos conversando por uns vinte minutos. Marcamos encontro para a próxima vez
que retornasse a Curvelo, que seria no dia 10.
Terminando o telefone, comentei o que são as
coisas da vida: sonhei reencontrar-me com o mestre Jaime França e não pude
fazê-lo por haver falecido. Fiquei trinta e cinco anos sem me encontrar com
Oídes, nunca mais tive notícias dele, poucas foram as vezes de que dele me
lembrei, e num encontro fortuito com José Arnaldo fiquei sabendo Oídes haver
retornado a Curvelo. Ir-nos-íamos reencontrar. Éramos bons amigos. Estava feliz
com o futuro encontro, seria uma felicidade imensa para mim. Lembrei-me de uma
frase: “tudo no mundo são compensações”.
Di-lo, e a esposa retrucou, dizendo: “Seu amigo ainda é novo. Não fosse
agora o reencontro, sê-lo-ia noutra ocasião”. Com efeito, tem ele cinqüenta e
dois anos, ainda jovem, tenho eu cinqüenta e três. Teríamos muito tempo na vida
para nos reencontrar.
Chovia. Era mesmo bem interessante, nunca
houve única vez que fomos ao Tarantela, barzinho onde estávamos indo para
comemorarmos nosso encontro, que não estivesse chovendo. Sempre ando às
pressas, resultado de haver morado longos anos em capitais, Belo Horizonte, São
Paulo, e a esposa anda sobremodo devagar, bicho-preguiça anda mais rápido que
ela, o que me deixa irritado.
- Bicho-preguiça anda mais rápido que você –
disse-lhe rindo.
- Não me compare.
- Não a estou chamando de preguiçosa.
Digo-lhe que bicho-preguiça anda mais rápido.
Na calçada do Seminário, pisei em falso,
quase cai. Atravessamos a rua. No jardim, de cabeça baixa, a palavra por que
vinha há três meses veio-me espontaneamente. Pronunciei-a em voz alta – creio
que para não a esquecer mais. A esposa ouviu.
- O que você disse?
- Behaviourismo...
- O que é isto?
- É uma corrente da psicológica.
- O que significa?
- Comportamento. Teorias do comportamento.
- Ah, sim...
- Você não vai acreditar, querida, mas faz
uns três meses que venho desejando lembrar-me desta palavra. Tentei muitas
vezes, tudo em vão. Sabe quando a palavra está na ponta da língua, mas é
impossível dizê-la. Pois é... Nem me lembrava agora dessa procura, da ansiedade
em que estive por encontrá-la, veio-me.
- Tudo tem o seu devido tempo.
- Sim. Claro. Não mais me esquecerei dela.
Continuamos andando rumo ao Tarantela para a
nossa comemoração de nove anos de encontro. Não falamos mais na palavra, no seu
sentido, o que esta corrente psicológica professa. O assunto era o ex-colega
Oídes, a sua genialidade, a inveja que outros colegas tinham dele. Menos eu.
Nunca tive inveja de qualquer coisa em minha vida, “nem de quem se lembra com
facilidade de uma palavra todas as vezes que necessita”, ainda brinquei.
Fora uma comemoração indescritível. Pedi ao
garçom que tirasse algumas fotos nossas. Seriam para colocar num álbum. Antes
de chegarmos ao Tarantela estiou, estava uma noite bem agradável, friozinho
gostoso. De repente, um pé dágua. Ficamos presos, esperando passar, embora
houvéssemos levado sombrinha.
- Você já percebeu que não há única vez que
vimos a este barzinho não fiquemos presos por causa da chuva.
- Verdade – respondi.
Felizmente não levou muito tempo para
diminuir, quando voltamos para casa.
Estava pensando em escrever algo para minha
esposa em homenagem ao nosso encontro, aos nossos nove anos de vida juntos.
Deitado, antes de dormir, fiquei procurando um título para o novo texto. Não o
encontrei. Virei para o canto. Dormi. De madrugada, levantei-me para ir ao
banheiro, tomar um copo de leite frio, quando me veio as primeiras palavras de
meu texto. Guardei-as bem no íntimo. Outras vezes aconteceu, mas no outro dia,
não me lembrei mais delas.
Só quando me sentei no computador para
escrever é que me veio que não precisaria de outro título para escrever a
homenagem à esposa. Usaria este mesmo. Não digo que tenha ficado minutos a fio procurando única
palavra para iniciar, porque este título estava reservado para este propósito,
tinha é que viver algumas circunstâncias para que fosse escrito, tais circunstâncias
começaram na busca das palavras, prolongaram-se no jogo de paciência, no
telefonema ao ex-colega Oídes, a caminhada rumo ao barzinho, a pisada em falso,
a lembrança do termo “Behaviourismo” no jardim público frente ao Seminário, a
comemoração inesquecível, as fotos, a chuva que nos deixou preso, o retorno, a
busca de outro título, acordar pela madrugada
e as primeiras palavras haverem se revelado, o sono, o momento que abri
o caderno para escrever, pois que há mistérios na arte que quaisquer vãs
filosofias são incapazes de elucidar.
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