LIBERTAS QUAE SERA TAMEM - Manoel Ferreira .
LIBERTAS QUAE SERA TAMEM
Manoel Lemos
Com efeito,
todo ente gerado, antes de vir à luz, antes de ser cidadão, é filho de sua mãe,
e até certos termos é avô da geração futura que virtualmente traz em si.
Pediram-me que
escrevesse crônica sobre alguma figura típica de nossa comunidade, existem
várias, escolhesse sobre quem poderia fazê-lo – seria até interessante se
entabulasse conversa com alguém mais idoso, os idosos conhecem e muito as
figuras típicas, histórias, lendas, mitos, são arquivos vivos nesta
concernência; se não quisesse registrar ipsis litteris o que ouvisse, poderia
recriar; estão estas crônicas por serem contadas -, e nela inscrevesse a minha veia satírica.
Pedido difícil de realizar, pois não é sempre que a veia satírica se me revela,
e tenho medo de me meter numa esparrela, acabar sendo tachado de engraçadinho,
a graça não existir, existir o ridículo. Dissera a quem me sugeriria que há
pouco tempo comecei de escrever crônicas, estou muito verde ainda, talento até
que pode haver algum, mas é no tempo que isto será desenvolvido; esperasse o
tempo, nele as coisas se revelariam verdadeiras. Ficou em mim o seu pedido.
Sou homem
inquieto demais, estou sempre querendo dar saltos, queimar etapas, embora saiba
ser impossível isto.
Vou
experimentar escrever sobre mendigo para inovar, deixando de lado por algum
tempo os militares da polícia militar, dos vereadores da Câmara Municipal, é
neles que encontro ridículos puros, atitudes destrambelhadas, para mim são as
verdadeiras figuras típicas, para não dizer são os palhaços que, sabendo
re-presentá-los com categoria, arrancam risadas altissonantes até dos imbecis
quanto mais dos mais inteligentes, das inteligências incomuns, destas, então,
as compreensões são em verdade divinas, encontram temas inusitados para
conversarem sobre o passado e as gerações futuras da política, da polícia
militar. Digo experimentar porque mendigo é digno de dó, pena, e não objeto de
risos e gargalhadas – por vezes seus comportamentos e atitudes são dignos deles
por seus comportamentos ridículos. Arrancar risos dos leitores com
comportamentos de mendigos soa-me desumano, injusto, enquanto dos militares e
vereadores soa-me divino e digno devido à prepotência que em si mesmos trazem,
da importância que ostentam por onde andam, do orgulho que sustentam. Ninguém
tem coragem suficiente para mostrar-lhes em ações de despautérios e disparates:
aquela coisa de amanhã podem precisar deles e não terão apoio por lhes haver
denegrido a imagem diante da comunidade.
O inusitado está aí; os leitores apreciam estas coisas, apreciam ler
crônicas assim.
Não vou tentar arrancar risos de ninguém,
falando de mendigo. A intenção é que não seja esquecido, fique na história
através de minha crônica.
Moreno, magro,
barbicha encarapinhada, assim como seu cabelo. Banho só de vez em quando
parecia ter tomado. Quando passava à porta de minha residência, estando eu no
alpendre ou no portão, ficava olhando admirado como podia existir sujeito tão
feio, estranho, como podia mãe sofrer nove meses para dar a luz a homem como
ele, naquela época eu ainda não sabia que a natureza é caprichosa e irônica;
talvez não tenha tido mãe, nasceu do nada, apareceu no mundo. Jamais consegui
saber quem o fazia passar pela limpeza do corpo. Talvez até fosse ao córrego
Santa Maria, tomava banho na lagoa e trocava de roupa; não era muito longe,
depois da Ponte Leão, era só embrenhar-se pela mata.
Terno surrado,
camisa branca, quando limpa, e enorme gravata vermelha. Na mão direita, não
mudava, trazia pasta preta, cujo conteúdo eu ficava curioso por saber, que lhe
conferiu a alcunha de “Mané da Pasta”. Se chamava Manoel ou Manuel eu não
sabia. Mané é gente atoleimada, boba, besta, idiota. Andava por todos os cantos
da cidade carregando a pasta, em passos lentos, cabeça baixa como quem refletia
sobre a vida e suas intempéries, o mundo e todos os problemas, dores,
sofrimentos, tragédias de toda ordem. Indo para o mercado municipal, muitas
vezes uma turba de moleques atrás dele, chamando-lhe pela alcunha,
ameaçava-lhes correr atrás, engrolava alguns palavrões, mas continuava andando,
carregando sua pasta. Voltando de lá, ninguém lhe corria atrás, saltava a linha
de trem de ferro, subia a Afonso Pena, virava a primeira rua à direita, que
naquela época era também continuidade da rua da zona.
Na praça do
Fórum, que um prefeito dos mais desmiolados destruiu para construir a praça da Fonte Luminosa, era
embelezar o centro da cidade, havia o “footing” dos jovens, lá estava Mané da
Pasta tentando arranjar namorada. As moças costumavam andar em rebanho –
notando a presença dele, trocavam de lugar, não queriam ficar ao redor, iam
para o centro da praça, pois ele logo se fazia presente. Não pronunciava
qualquer palavra, era apenas um ad-mirador da beleza delas, lançando olhares
apaixonados para quem estava ao seu lado, às vezes dava uma piscadinha para
elas.
Estava eu sentado
no portão de minha residência, no final de uma tarde, com um livro em mão,
estava lendo Helena, olhando os transeuntes indo e vindo, saltando a linha da
estrada de ferro, quando olhei para o lado da rua General Carneiro, vinha ele
andando no caminho da roça entre a valeta
encostada à cerca de minha residência, nela escorria a água da chuva, e
a linha, e, aproximando-se de mim, tive medo dele, mas qualquer coisa era só
correr para dentro do quartinho de costura de Tiquitita, nada me aconteceria,
pedindo-me resto de comida. Entrei, dizendo a Tiquitita que Mané da Pasta
estava pedindo esmola, resto de comida, estava com fome. Tiquitita largou a
roupa que estava rematando para uma freguesa. Fomos à cozinha. Fez um prato de
arroz, feijão, cenoura que sobraram do almoço. Desse-lhe, podia levar o prato.
E também tirou um paletó que fora de um seus irmãos num baú – este baú tenho-o
até hoje, nele guardo algumas pastas contendo minhas matérias de jornal -,
desse-lhe também. Retornando ao portão, estava ele agachado no meio da linha.
Aproximou-se de mim, uma carinha de quem iria matar a fome que estava com ela.
Disse-lhe que poderia levar o prato. Agradeceu-me. Virou-se de costas para mim,
abriu a pasta, enfiou o paletó nela, o prato colocou-o no chão. Apanhou-o e
voltou à linha de trem de ferro, sentou-se no trilho, com a mão comia às
pressas, quase até sem mastigar, de vez em quando olhando para mim com uma
carinha de agradecido. Terminando, abriu a pasta, enfiou nela o prato sujo
junto com o paletó.
Depois desse
dia, sempre que estava eu à porta, passando, olhava-me, e seguia, esperava que
me pedisse mais alguma coisa, não o fez outra vez. Nunca pude entender a razão
disso. Talvez não o tenha feito por haver sentido que tive medo dele da
primeira vez, não me faria medo mais. Umas duas vezes, nem cheguei a terminar
de lhe dirigir a palavra, dizendo-lhe que esperasse um pouco, iria trazer-lhe
café e pão, apressava os passos, em questão de segundos virava a esquina da
Afonso Pena em direção à rua da zona ou descia, andando na calçada da casa de
Emílio Durães. Sumia.
Por alguns dias
incomodou-me bastante não ver Mané da Pasta passando à porta de minha
residência. Tiquitita disse-me que talvez tivesse pegado o trem, ido para outra
cidade. Mendigos chegavam nos trens e iam embora. Devido a estes trens, a
cidade vivia entupigaitada de mendigos, pessoas absolutamente estranhas,
esquisitas. Não era explicação, pois que desde que comecei a me entender por
gente sempre via Mané da Pasta pelas ruas, quando saía com alguém de minha
família, ele não havia aparecido, ele era de nossa cidade, e não iria embora,
já estava velho, aqui viveu, aqui mendigou, ganhou seus trocados, ganhou seus
pratos de comida, pão e café das pessoas.
Algum tempo
depois, soube que ele havia sido atropelado; foi Rosinha quem mo disse,
retornando da Praça do Mercado. Havia sido internado no Hospital Santo Antônio.
Desejei que se recuperasse logo, passasse à porta de minha residência, estava
acostumado com sua figura típica, com ele carregando sua pasta, que nunca soube
o que nela trazia dentro. Por dois ou três dias, orei e pedi a Deus que lhe
desse melhoras. Não fui atendido por Deus. Rosinha chegara a casa, tendo ido à
praça do mercado municipal para comprar aviamentos de costura, dizendo que Mané
da Pasta havia morrido. Disse inclusive que respeitaram a sua figura típica:
ele foi enterrado de paletó e gravata. Não me esqueci de sua pasta. Perguntei a
Rosinha sobre a pasta, se também colocaram a pasta dentro do caixão. Laurentina
disse algo de que nunca me esquecera: “filho, ninguém leva nada deste mundo;
Mané da Pasta não levou sua pasta”. Mesmo que ninguém levasse, Mané deveria ter
levado a sua pasta, enfim era a sua alcunha, como iria se apresentar a Deus no
céu, estava sem a sua identidade.
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