(ENSAIO) - TEMPO E VERDADE NO DISCURSO POÉTICO - Manoel Ferreira
O que se observa em
Dostoïévski é uma busca pertinaz dos meios mais adequados de expressão e uma
seriedade nessa busca. N. K. Mikhailovski, que deu, em seu famoso artigo Um
talento cruel (1882), uma apreciação sobremaneira improcedente, negativa, às
vezes tendenciosas dos contos e novelas de Dostoiévski da primeira fase,
percebeu, no entanto, a importância deles, como algo que trazia in nuce
toda a obra futura.
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nesta velha miuçalha podem-se encontrar os prenúncios de todas as ulteriores
imagens, quadro, idéias e processos artísticos e lógicos de Dostoiévski ·.
A verdade da realidade
aparece quando ela é vista sob o signo do tempo. Não acreditamos que Dostoiévski
anule o tempo. O que ele anula é a sucessão linear dos acontecimentos. Como
elemento importante desse processo, está a superação da estrutura do conto, tal
como foi teorizada por Edgar Allan Poe: “uma sucessão de acontecimentos,
narrados em função do desfecho, o que torna possível a “unidade de efeito”.
Há inúmeras cenas na obra
dostoïévskiana que são claramente cinematográficas. Tirando um exemplo, a cena
em que Michkin, O idiota, está diante do cadáver de Nastássia Filipovna. Vimos
Nastássia em todas as cenas da obra, desde o seu encontro com Michkin até
aquele instante em que ela está morta.
Uma
pesada cortina verde, que devia ter servido para outro fim, pendia de viés, separando
a ala da alcova de Rogójin. Estava escuro. As noites brancas, do verão de
Petersburgo, já se iam alterando, e se não houvesse lua cheia teria sido
difícil distinguir qualquer coisa nessas peças com janelas tapadas por
cortinas. Em todo o caso podiam distinguir o rosto um do outro, embora mal. As
faces de Rogójin estavam pálidas como de costume. Os seus olhos cintilantes
continuavam a vigiar o príncipe, com um brilho seco[1].
O cinema foi capaz de
efetivamente fazer aflorar essa dimensão essencial, a temporalidade. Não é o
cinema que cria o evento, mas este é que ocorre à nossa vista. Faz-se presença.
O cinema respeita o ritmo e a disposição das coisas. É o que faz com que suas
imagens sejam reais. Imagens únicas, essenciais. Este distanciamento, a
não-interferência no fluxo da realidade filmada, no cinema contemporâneo, em que
podemos sentir o escoar do tempo.
Para Tartóvski – autor de
Stalker (1979) e O sacrifício (1986), dentre outros filmes – é que, no cinema
atual, nos faz sentir o tempo. Para ele, o tempo é a própria condição de
existência da imagem. O cinema, antes de mais nada, é a possibilidade de
apreender um fenômeno na sua duração. A imagem, para ele, torna-se
verdadeiramente cinematográfica quando não apenas vive no tempo, mas quando o
tempo está vivo em seu interior, em cada um de seus fotogramas.
A verdade da realidade
aparece quando ela é vista sob o signo do tempo remete à questão inicial do
valor da verdade daquilo que se apresenta como real. Por que o narrador está
mais próximo da realidade quando dela se afasta? Por que a aderência à
linearidade exterior do vivido representa o distanciamento da verdade, ou da
verdadeira realidade? Certamente porque a verdade aparente dos momentos vividos
na exterioridade cronológica dos eventos não situa as vivências na duração.
Em obras mais tardias, o
discurso do narrador não apresenta tons novos e quaisquer diretrizes
substanciais em comparação com o discurso das personagens. Em linhas gerais, a
narração se desenvolve entre dois limites: entre o discurso secamente
informativo, protocolar, de modo algum representativo, e o discurso do herói.
Mas onde a narração tende para o discurso do herói ela o apresenta com acento
deslocado ou modificado (de modo excitante, polêmico, irônico) e somente em
casos raríssimos tende para uma fusão monoacentual com ele.
Contemplava
a fermentação de meus remorsos, as torturas do meu espírito e a irritação de
minhas rugas, até que a dôr se convertia numa espécie de ignobil prazer
maldito, mas real e tangível. Sim, em prazer, prazer! Faço questão de relatar
essa experiência para saber se outros conheceram êsse prazer singular.
Escutem-me: o prazer, justamente, consistia numa intensa consciência de
degradação, em que me sentia descer até o último degráu do envilecimento, em
que não havia outra solução e em que, se ainda me tivesse sido concedido bastante
tempo e fé para me transformar num homem melhor, certamente não haveria querido
dar-me a êsse trabalho[2].
Ao cientista, quando
prepara um trabalho, coloca-se o problema de realizá-lo: qual a marcha
expositiva mais adequada, com que minúcias devem ser explorados os caminhos
abertos? Dentre as várias soluções possíveis uma será escolhida, sem que por
isso as outras sejam consideradas más; será perfeitamente viável pensar o mesmo
universo de pensado, pensamento – o mesmo trabalho científico, portanto –
exposto por outro modo. Podemos dizer que a relação entre os significados e a
camada material que os suporta, a linguagem, é de ordem puramente convencional
e mecânica. Importa a significação intelectual, o sentido “dialético interior”,
“dialéticas-moventes” não a maneira pela qual é visada.
No discurso poético, a
situação é outra; a relação entre as camadas verbal e significativa deixa de
ser arbitrária, ganha necessidade. A maneira de significar significa. No
sentido rigoroso da palavra, poesia é uma tomada de medida, somente pela qual o
homem recebe a medida para a vastidão de sua essência. O homem se essencializa
como o mortal. Assim se chama porque pode morrer. Poder morrer significa: ser
capaz da morte como morte. Somente o homem morre e, na verdade, continuamente,
enquanto se demora sobre esta terra, enquanto habita. Seu habitar se sustenta,
porém, no poético. Hölderlin vislumbra a essência do “poético” na tomada de
medida através da qual se cumpre plenamente o levantamento da medida da
essência humana.
Como diz Lacoue-Labarthe:
Holderlin pensa a hybris sagrada de Antígona a partir da blasfêmia. No
concernente à prosa poética a musicalidade da prosa, tecida com as linhas da
sensibilidade e da ambigüidade, se transforma na poética que nela habita interiormente,
tornando-se poética da prosa, e realizando a musicalidade, através da qual se
re-presenta e dedilha “[...] a lira nos momentos em que analisa a essência dos
seres e das coisas em torno de si”, conforme a orelha de Ópera do Silêncio, de
Newton Vieira.
O tempo nessa “orelha”
pensado e in-terpretado são os tempos idos e vindouros, o homem mergulhado “nas
profundezas éticas tão esquecidas quanto fundamentais no mundo contemporâneo”.
A verdade do discurso poético, nessa perspectiva de interpretação e análise que
fazemos, são as situações e circunstâncias no quotidiano, o que mesmo vivemos e
experimentamos, recriadas e criadas em busca de tecer o lirismo, musicalidade e
beleza na prosa, que nos identifique, real-ize o nosso reconhecimento no que
fazemos.
Qual é o tema central desse
comentário de Holderlin? A consciência e sua relação com a inconsciência. Isso
aparece em fórmulas como: “É um grande recurso da alma que trabalha em segredo
esquivar-se da consciência no grau mais elevado da consciência...” ou “No ápice
da consciência, ela sempre se compara com objetos que não têm consciência, mas
que assumem em seu destino a forma de consciência”[3]
.
Neste sentido, a mais alta
consciência é a da finitude. Consciência que Antígona adquire no momento em que
se dá frente a frente com a morte.
Enquanto no discurso
científico o vocabulário e a ordem expositiva são instrumentais, justificados
apenas pela fidelidade com que simbolizam um conteúdo mentado que deles
independe, no discurso poético a convenção se desfaz e refaz individualizada. É
justamente esse “luzir sensível da idéia” na camada sensível tornada
significativa, que os estetas têm localizado seu domínio. Será falsa, em
estética, a reflexão que não partir dessa totalidade como de um dado originário
de nossa experiência. A tarefa de cada indivíduo singular consiste em nada mais
senão na própria purificação espiritual e corporal.
Acreditamos, hoje,
abertamente, no tangente à “estética”, não mais exatamente o que Kant vinculava
a essa palavra quando denominou a doutrina do espaço e do tempo uma “estética
transcendental” e entendeu a doutrina do belo e do sublime na natureza e na
arte como uma “crítica do juízo”. Acreditamos que a “estética” nasce na
experiência concreta da vida em suas situações e circunstâncias, dores e
sofrimentos, e a busca da consciência, do viver quem estamos no mundo, diante
do mundo, dos homens, das coisas e dos objetos, é na ambigüidade que se realiza
a linguagem e o estilo.
O ponto de virada parece
encontrar-se em Schiller, que transformou o pensamento transcendental do gosto
numa exigência moral, formulando-o como um imperativo: Comporta-te
esteticamente!
Nos seus escritos
estéticos, Schiller alterou a subjetivação radical, através da qual Kant havia
justificado o julgamento do gosto e sua reivindicação por uma validade
universal transcendental, tornando uma pressuposição metódica em uma
pressuposição de conteúdo.
Quando Schiller proclamou a
arte um exercício da liberdade, reportou-se ele mais a Fichte do que a Kant. O
jogo livre da capacidade de conhecimento, sobre o qual Kant fundamentara o a
priori do gosto e do gênio, entendia Schiller antropologicamente, com base na
doutrina dos instintos de Fichte, no qual o instinto lúdico devia produzir a
harmonia entre o instinto da forma e o instinto da matéria. O cultivo desse
instinto é a meta da educação estética.
Onde a arte domina, aí
passam a valer as leis da beleza e são ultrapassadas as fronteiras da
realidade. É o “reino ideal”, a ser entendido contra todas as limitações, até
mesmo contra a tutela moral do estado e da sociedade. Vincula-se certamente com
o deslocamento interno na base ontológica da estética de Schiller, o fato de
que também seu extraordinário princípio, nas Cartas sobre a educação estética,
se modifique na execução. Torna-se
conhecido que uma educação pela arte torna-se uma educação para a arte.
No lugar da verdadeira
liberdade ética e política, para o que a arte deve nos preparar, desponta a
formação de um “estado estético”, uma sociedade de formação que se interessa
pela arte. Com isso, também a superação do dualismo kantiano do mundo dos
sentidos e do mundo ético, que é representado pela harmonia da obra de arte e
pela liberdade do jogo estético, transforma-se obrigatoriamente num novo
antagonismo.
A conciliação do ideal e da
vida através da arte é, meramente, uma conciliação particular. O belo e a arte
emprestam à realidade somente um brilho efêmero e transfigurado. A liberdade da
índole humana, à qual ambos elevam, só é liberdade num estado estético e não na
realidade.
Celebra as núpcias bíblicas da estética verbal. Põe cumplicidade
entre forma e fundo, significante e significado[4].
O conceito da realidade, a
que Schiller opõe a poesia, já não é mais, certamente, kantiano. Porque Kant
parte sempre do belo natural.
O panteão da arte não é uma
atualidade independente do tempo, que se apresenta à pura consciência estética,
mas o fato de um espírito histórico que se concentra e se congrega. Também a
experiência estética é uma forma de compreender-se. Todo compreender-se se
completa, porém, em algo diferente do que aí se compreende, e inclui a unidade
e a mesmidade desse diferente.
Certamente, o carrasco principal era eu, tinha plena consciência
de toda a nojenta baixeza de minha imbecilidade e de minha ruindade: mas já não
me podia controlar[5].
Uma vez que encontramos no
mundo a obra de arte e em cada obra de arte individual um mundo, este não
continua a ser um universo estranho em que, por encantamento, estamos à mercê
do tempo e do momento. Nele, mais do que isso, aprendemos a nos compreender, e
isso significa que suspendemos a descontinuidade e a pontualidade da vivência
na continuidade da nossa existência. O que importa é chegar a um ponto de
partida, com relação ao belo e à arte que não pretenda a imediaticidade, mas
que corresponda à realidade histórica do homem.
A simultaneidade e
disparidade dos fatos, tão comuns na obra de Dostoiévski, a concentração em
determinados momentos, a aceleração a que alude Bakhtin – “... a velocidade é o
único meio de superar o tempo no tempo” – tudo isto nos parece líquido e certo
em relação à obra de Dostoiévski. Mas anulará acaso o fato de que Dostoiévski
também colocava suas personagens no tempo e não apenas no espaço, mas com uma
concepção de tempo completamente estranha na época (embora tivesse os seus
precursores, entre os quais Santo Agostinho); leia-se, por exemplo, em
Confissões, Livros XI, O Homem e o tempo: “A um aceno da vossa vontade, os
instantes voam”, e que se aproxima de certas concepções modernas. Há relatividade,
há indeterminação, mas o tempo não é anulado. É um tempo próprio, o desordenado da vida subjetiva
torna-se muito mais importante que a repetição dos minutos no relógio.
Lembremo-nos de um artigo
de Sartre a respeito da temporalidade em O som e a fúria de Faulkner:
Parece que Faulkner capta, no próprio âmago das coisas, uma
velocidade congelada: ele é tocado por jorros fixos que empalidecem, recuam e
se atenuam sem se mover[6].
Ligado ao problema da
criação, Agostinho investigou a noção de tempo, revelando grande penetração
analítica. O tempo é por ele entendido como constituído por momentos diferentes
de passado, presente e futuro; o que significa descontinuidade e transformação.
Conseqüentemente, a criação do tempo coincide com a criação do mundo[7],
ele é a estrutura fundamental do próprio mundo. Ao contrário, Deus, o ser por
excelência, que é, foi e será, está completamente fora do tempo, é imutável e
eterno. Em outros termos, o mundo, sendo uma mescla de ser e não-ser, carrega
dentro de si um processo de transformação que o faz caminhar do ser para o
não-ser, ou vice-versa. Esse processo constitui a sucessão temporal de passado,
presente e futuro, o que acontece, evidentemente, com Deus, único e verdadeiro
ser e, portanto, eterno.
Os hiatos de narrativa, em
“O Sr. Prokhartchin”, são bem significativos.
Falar do tempo é descrever
toda a insegurança ontológica. Conforme Heidegger, a explicitação do tempo,
situação, situa-o “como horizonte da compreensão do ser”, a partir da
temporalidade como componente do ser. Analisar o tempo é observar o homem em
sua maior contradição: a tensão entre permanência e transitoriedade, poder e
impotência, vida e morte. A título de ilustração, há o belíssimo e genial
início de Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso:
Sim,
que é o para sempre senão a última imagem deste mundo – não exclusivamente
deste, mas de qualquer mundo que se enovele numa arquitetura de sonho e de
permanência...[8].
Os saltos, a indeterminação
temporal, a condensação de muitos acontecimentos num tempo reduzido, no final
de “O Senhor Prokhartchin”, nada disso tira ao conto o seu caráter de uma
narrativa bem fixada no tempo. As alusões a uma realidade histórica
determinada, a certa realidade social, como é o caso de “Repartições
Suprimidas” – que é provável Dostoiévski tenha destruído, não se sabendo o
porquê de tê-lo feito – não tiram à obra o seu caráter de generalidade, não a
reduzem ao folclórico e regional. São, todavia, um balizamento temporal que
nada poderá anular. Indo muito além do “ensaio fisiológico”, de seu tempo, com
aquele apelo imediatista ao social, Dostoiévski nos introduz numa realidade
complexa e fluida, interrompida, cheia de hiatos, um mundo próprio e
surpreendente, o mundo das grandes crises, dos grandes momentos e das grandes idéias.
O “ensaio fisiológico”
desenvolveu-se na década de 1840, como um gênero característico da “escola
natural” russa. Caracterizou-se pela descrição “daguerreotípica”, como se dizia
na época, da vida da população pobre das cidades. Ao mesmo tempo, esta descrição, apesar de
todos os reclamos de objetividade, tinha excelente caráter de protesto.
Embora a designação de
início tivesse uma conotação pejorativa, dada pelos inimigos dessa tendência,
seus seguidores acabaram assumindo o apelido e desenvolvendo o gênero. V. G.
Biélinski foi um grande defensor desta tendência, assim não poderia ter deixado
de elogiar tanto a novela Pobre gente, garantiu a Dostoievski o início de sua
grande e universal carreira.
Freqüentemente, Gogol era
apontado como o seu grande iniciador, mas a crítica moderna mostrou à saciedade
que a “realidade gogoliana” está impregnada totalmente de fantástico e
deformação[9]. Em vários trabalhos que escreveu, V. Vinagrov
apresenta, porém, a própria “escola natural” como um fenômeno complexo e rico e
insiste em suas razões gogolianas.
Entre os contos de Gogol, o
mais universalmente conhecido é “O Capote”, “de onde saiu toda a nova
literatura russa”. É a história de Akaki Akakievitch, o ingênuo e modesto
“conselheiro-titular” (um dos títulos mais ínfimos da complicada hierarquia
russa) que, em sua pobre existência puramente vegetativa, tem uma única
ambição: possuir um bom capote bem quente. À custa de economias e privações
consegue-o por fim, mas, no mesmo dia em que o estréia, é assaltado por ladrões
que o levam. Sua queixa à polícia só lhe traz novos aborrecimentos. Não
resistindo a tamanha desgraça, o pobre Akaki Akakievitch morre dentro de poucos
dias.
E
São Petersburgo ficou sem Akaki Akakievitch, como se ele nunca tivesse vivido
lá. Desapareceu para sempre um ser a quem ninguém protegia, ninguém amava, e
que não interessava a ninguém, não conseguindo sequer atrair a atenção do
naturalista, que não deixa de fixar num alfinete uma simples mosca a fim de
examiná-la ao microscópio; um ser que, tendo suportado humildemente os gracejos
de uma repartição, desceu para o túmulo sem nenhum acontecimento notável.
No
entanto, embora pouco antes da morte, apareceu-lhe, ao menos por um momento, o
visitante luminoso, sob a forma de um capote, e alegrou-lhe um minuto da pobre
vida; mas em seguida se abateu sobre ele a desgraça, não menos terrível que
quando se abate sobre as cabeças dos poderosos do mundo[10].
A história de Akaki
Akakievitch não termina aqui, como se poderia pensar. Gogol, que nesta segunda
fase de sua atividade mistura cada vez mais o grotesco ao trágico, relata que o
morto volta ao mundo sob a forma de fantasma a despojar de seus capotes os
transeuntes, entre estes o chefe de polícia, que não lhe quisera dar ouvidos.
Seu descendente mais direto é Diévuchkin, o infeliz protagonista de Pobre Gente,
de Dostoiévski.
O herói de Diário de um
louco, Gogol, é também um parente próximo, se não uma primeira encarnação, de
Akaki Akakievitch. É igualmente um
ínfimo “conselheiro-titular”; apenas, a sua ingenuidade se desvia para a
loucura. Todos perceberão fácil o que há de crítica sensata às instituições
sociais nas elucubrações desse louco, e saberão admirar a arte com que o autor
passa gradativamente de cômico ao patético até chegar às notas pungentes do
fim.
Por
toda parte aparece um homem da corte ou um general. Por toda parte, tudo o que
há de melhor no mundo é para fidalgos da corte ou generais. Encontra-se um
pequeno tesouro, pensa-se atingi-lo com a mão – mas vem um fidalgo da corte ou
um general, e o arrebata. O Diabo os leve. Eu também desejaria tornar-me um
general. Não para obter a mão dela e o resto, não; queria ser general apenas
para ver como eles me cortejariam, como me fariam toda espécie de cerimônias e
salamaleques, e para depois lhes dizer que escarrava em ambos. O Diabo os leve,
a esses idiotas[11].
A desilusão de Biélinski
com as obras posteriores a Pobre Gente parece muito a ver com o afastamento
delas do “ensaio fisiológico” puro e simples.
Foi Mikhail Bakhtin quem
deu um passo decisivo para a melhor compreensão do mundo das grandes crises,
dos grandes momentos e das grandes idéias. Mas comparando-se a obra de Bakhtin
com os textos de Dostoïévski, fica-se com a sensação de que o grande crítico
permite uma compreensão melhor do próprio tempo na ficção dostoïévskiana,
embora a sua enorme necessidade de aprofundamento e amplificação.
Se analisarmos “O Senhor
Prokhartchin” à luz do que se convencionou chamar os diferentes tempos que há
numa narrativa não linear, vimos que Dostoiévski maneja, e com genialidade,
justamente esta diversidade. Não se trata apenas de maior ou maior condensação
temporal, do retardamento ou concentração da ação.
O
homem aspira à beleza, descobre-se e a aceita sem outras condições, pelo
simples fato de ela ser a beleza; perante ela prosterna-se e a adora, sem
perguntar para que serve e que proveito traz. Talvez, o inefável mistério da
criação artística consiste no fato de essa imagem da beleza que ela realiza se
tornar imediatamente um ídolo fora de todas as contingências.
O tempo na pensão, o
cotidiano, é a princípio lento e monótono, e o narrador retarda freqüentemente
a marcha dos acontecimentos com sua intromissão: “Observemos aqui”, “Neste
ponto o biógrafo confessa”, “Não vamos explicar o destino de Siemión Ivânovitch
pela sua disposição francamente fantasista”, etc. Já o tempo no sonho é um
tempo veloz, a condensação temporal é dada não apenas pelo fato de aparecer um
cocheiro a quem Prokhartchin deixara de pagar cinco anos antes (é o que
Mendilow chama de time-shift, deslocamento temporal), mas também pela maior
velocidade, na sucessão dos acontecimentos. E, depois que Prokhartchin passa
pelo sonho e pela alucinação, tudo no conto adquire um ritmo mais veloz. Não
aparecem mais as intromissões do narrador, os acontecimentos como que se
precipitam, um clima de alucinação é transposto também para a realidade
empírica. E os próprios fatos narrados como reais fazem parte de uma realidade
tão absurda, que o sonho anteriormente descrito parece menos alucinado que o novo
cotidiano.
Na realidade, o tempo de
Prokhartchin é muito diferente do tempo dos inquilinos. O simples fato da
diferença de idade já estabelece um distanciamento essencial, pois o tempo,
obviamente, não tem o mesmo valor para um homem de sessenta e cinco anos e um
rapaz de vinte e dois. Ademais, há um ritmo peculiar na vida daquele homem, com
a regularidade do levantar-se diariamente, de ir à repartição, de tomar as suas
parcas refeições e ficar deitado atrás dos biombos, um ritmo bem diferente
daquele de quem sai, bebe, joga baralho.
Os três diferentes
Prokhartchins que aparecem na história (além do Prokhartchin defunto, com sua
personalidade própria e muito expressiva) têm cada um seu próprio tempo,
medidos não pela sucessão das horas no relógio, mas pelos acontecimentos, ora
mais, ora menos concentrados (a vida cotidiana, o sonho, a insônia). A loucura
e o delírio acarretam condensação. O tempo de Prokhartchin e o tempo dos
inquilinos tornam-se menos separados justamente quando o clima de loucura projeta-se
de Prokhartchin sobre o ambiente. Isso pode ser constatado particularmente no
diálogo com Mark Ivanovitch. A contaminação deste pela loucura de Prokhartchin
é, em grande medida, uma assimilação por ele do tempo em que o interlocutor
vive.
[1] DOSTOÍÉVSKI, Fyodor Mikhailovitch. O idiota. Trad.
José Geraldo Vieira. Martins Claret. São Paulo. 2004. pág. 667
[2] DOSTOÏÉVSKI, Fyodor Mikhailovitch. O espírito do
subterrâneo. Trad. Rosário Fusco. Epasa. pág. 143.
[6] SARTRE, Jean-Paul. Situações I. Trad. Cristina
prado. Pref. Bendo Prado Jr. São Paulo. Cosac Naify. 2005. pág. 94.
[7] Lembrar aqui do conto A árvore de natal na casa de
Cristo de que a aparição da voz chamando o menino e a morte da criança acontece
no mesmo tempo, coincidem.
[8] CARDOSO, Joaquim Lúcio. Crônica da casa assassinada.
2º edição. Editora Nova Fronteira. 1979. pág. 9.
[9] Em Diário de um Louco aparece o problema crucial de
toda a obra de Gogol: o mal, o diabo em sua verdadeira natureza humilhante e
invejosa, que aniquila o homem e o enlouquece.
[10] HOLANDA, Aurélio Buarque de e RONAI, Paulo. Mar de Histórias. Antologia do conto
mundial. Vol. 3. O romantismo. 4º ed. Edição Nova Fronteira. 1999. pág. 123
[11] GOGOL, Nikolai. Diário de um louco in Mar de Histórias
Antologia do conto Mundial. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai.
4º edição. Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro. 1999. pág. 140.
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