RISOS DILACERADOS E SACRIFICADOS - Manoel Ferreira
Creio em poucas coisas, leitor amigo.
Se cresse em muitas, não é que fosse considerado um imbecil de botinha de
grife, fosse tachado de um idiota por meus contemporâneos e conterrâneos, a
opinião das pessoas não me diz respeito algum, fosse consciência delas, teriam
de provar-me até me persuadirem, sentindo-me obrigado àqueles exames de
consciência que me legariam mudanças radicais, mas é que são muito poucas
coisas a acreditar, e não julgue que mais uma vez estou denegrindo a imagem de
nossa modernidade, desde toda a eternidade foram poucas, e as verdadeiras menos
ainda.
Em que acredito neste momento em que,
apesar de não haver dormido um minuto sequer durante a madrugada, meus olhos
estão vermelhos, encontro-me indisposto, estou aqui escrevendo os meus
cumprimentos nesta manhã. O que fiz nesta madrugada? Assisti à televisão para passar o tempo, não
tomei da pena, a razão é que não me encontrava inspirado - não é verdade, houve
inspiração, mas não pensei que daria frutos deliciosos, era muito pequena,
tinha de esperar a aurora se manifestar, viria inteira e perfeita. O presente
são os raios de sol que castigam tudo neste mundo, calor infernal. Do jeito que
o calor está será o dilúvio dos raios de sol que arrasará o mundo, morreremos
todos torradinhos, ou quase tudo, se devo crer nas notícias que ouço, restará a
estrutura física do mundo.
Creio em você, leitor, não
especificamente nos seus sonhos e quimeras de re-novação, nos seus ideais de
novos horizontes sociais, políticos, econômicos, na sua esperança de paz,
harmonia entre os homens, nas suas leituras assíduas de crônicas e sátiras, que
infestaram os tablóides de nossos tablóides – se o maior cronista de nossa
história, José Maria Antunes, quem sonhara com isto de divulgação das artes
crônicas nos tablóides, diria com toda empáfia que o besteirol foi implantado
neles, o que está havendo é simplesmente interesses espúrios de imortalidade e
sucesso, não há cronistas, há ridiculistas -, que podem dissipar-lhe das verdades
incontestáveis, dos dogmas insofismáveis, mas na sua consciência de a cidade
dos pés juntos será o nosso destino, e ainda assim é por um dever de finesse,
não sabendo quem seja você, nada sabia eu de sua estirpe, laia, nem se é
merecedor de algum crédito, de medalha de honra ao mérito.
Presumamos que sim. Já é um modo de
você deitar suas dúvidas e inseguranças ao chão, querer com todos os ímpetos
ser meu amigo, trocarmos dedos de prosa sobre as verdades ensandescentes,
aprender comigo como as lançar ao inferno dos sete pecados capitais; as pessoas
que não o conhecem, nunca o viram mais gordo ou mais magro, não sabem de sua
sensibilidade, desejos, não possuem qualquer noção de seus ideais, de imediato
o rejeitam, discriminam, sussurram em
todos os ouvidos não lhe darem qualquer crédito, não passa de um tranqueira.
Você já prestou atenção ao quanto o nosso povo é criativo, a todo momento
substitui os vocábulos, criam outros. O vocábulo “caguincho” foi usado por
tempo ilimitado, foi mudado para “traste”, foi mudado para “canalha”, agora
estamos no tempo de “tranqueira”, observemos quanto tempo vai durar, até que é
mais decente, possui um quê de interessante nele.
Creio em seu avô, representante idôneo
das verdades passadas, as que, mesmo, abriam as portas do paraíso celestial,
uma vez que é seu neto, e se já é morto, do céu lhe envia de espírito beijado,
batizado, as mensagens de como expelir a fumaça dos tempos retrógrados e tragar
a dos tempos atuais, sem levar os pulmões ao câncer, mas lhes incentivando a
sentir o ar puro e sublime das montanhas de todos os desejos de salvação. Creio
mais no seu avô que em você mesmo, porque o verbo que se tornou carne dele já
está dissipado, o corpo já é dissidido, o que restou é apenas o espírito do
verbo.
Vivam os mortos! Abaixo os mortos! Os
mortos não nos levam os relógios! A vida que era deles não é mais pêndulo que
retine nos ouvidos com a passagem dos segundos, causando em nós os insones
verdadeira agonia por vir a aurora nascer e se livrar dela, ao topo dos desesperos,
devido aos medos do esquecimento por nada haverem construído que lhes legasse
valores e virtudes, devido ao nada da morte que de nada precisou no mundo para
ser a morte. Morram os vivos! Vivam os mortos!
Pode você, caríssimo leitor, avaliar
com precisão o meu estado de alma, a disposição em que estou. Francamente, se
esta chuva que cai fina e serena há dois dias e meia, que vai refrescando o
verão, são as águas de março que fecham o verão, fosse, não digo um dilúvio
catarinense, paulistano, carioca, mas uma calamidade semelhante aos tempos de
Noé, eu aplaudiria dos mais recônditos e interstícios de minha alma, contanto
que me ficasse fresca e serena a esperança de outra realidade, que me ficasse o prazer dos poetas, e pudesse
enxergar sem me utilizar do pincenez o naufrágio dos outros.
Ouso aqui imprimir com tinta fresca e
forte de que sofro, dizendo ser a primeira vez que escrevo com esta pena: sofro
de TPM. Não sou bicha incubada, não psicossomatizei isto para realizar a minha
preferência sexual, meus desejos de ser mulher, nada tem a ver com isto. TPM
significa tão somente: “Tudo para mim”.
O egoísmo é superior é superior a
qualquer desejo ou vontade de harmonia entre os homens. Se não pensar em mim,
como posso sentir os outros? Há muito adquiri o hábito de pensar em mim,
mergulhar nas minhas entranhas, e o resultado fora satisfatório, larguei mão do
egoísmo, que acontece quando não são conhecidas, e daí pude aproximar-me dos
homens, estou aprendendo a ouvir-lhes no íntimo, saber-lhes as dores e
conflitos e dores, dizer-lhes algumas palavras de esperança e fé, mesmo assim
ainda penso muito em mim, conhecer-me ainda mais para que disponha-lhe minha
vida, carregue-lhes a cruz, morra nela, em nome do questionamento da Vida, de
sua busca sincera e verdadeira.
Hoje há aqui, em nossa comunidade,
grandes naufrágios de alguns salvamentos. Falo por metáfora, aludo às eleições
próximas para prefeitos e vereadores. Recompõe-se a intendência, e os primeiros
naufrágios decretados já estão, são os intendentes antigos. Com todo o respeito
devido à lei, não entendi com clareza a razão que determinou a
incompatibilidade dos intendentes que
acabaram. Só se foi política, matéria estranha às minhas cogitações, não cogito
política, cogito artes e cultura, contra ela, devido ao nojo e náusea que dela
sinto; mas indo pelo juízo ordinário, não alcanço saber a incompatibilidade dos
antigos intendentes. Se eram bons, e fossem de novo eleitos, continuaríamos a
gozar das delicias e êxtases de uma excelente legislatura municipal. Se não
prestavam para nada, não seriam reeleitos; mas supondo que o fossem, quem pode
impedir que o povo queira ser mal governado? É um direito anterior e superior a
todas as leis. Não declinarei o nome, mas leitor, tendo vindo à redação para
adquirir exemplar de meu tablóide, perguntou-me ansioso a que eu atribuiria
isto de ser sempre o péssimo intendente que ganha as eleições municipais, só
houve uma vez na nossa história que o melhor intendente que ganhara as
eleições. Respondi-lhe ao avesso de sua pergunta, mas o satisfiz mais que se
respondesse a que fizera. Disse-lhe que o péssimo intendente só entra na
política, candidata-se às eleições, porque ele sabe que o seu cargo estará
garantido, o povo gosta de mal intendentes, não quer ser bem administrado,
porque não poderia mais reclamar das administrações chinfrins e ridículas, povo
sem reclamações não é povo, é elite. Hoje impedem-me de meter um pulha na
intendência, amanhã proíbem-me andar com o meu colete de ramagens, depois de
amanhã decreta-se o figurino municipal. Quem pode entender tais disparates?
Assim é que se perde a liberdade, torna-se escravo.
Entretanto, leitor, na minha opinião
foi ótimo que Manezinho das Flores se incompatibilizassem com Eleuzer Batista;
não incompatilizados, era quase certo que seriam eleitos, um por um, ou todos
ao mesmo tempo. Dizem que Manezinho das Flores se incompatibilizou com Eleuzer
Batista porque o primeiro estava apoiando a candidatura de Jacinto Sobrinho,
sua plataforma política versa apenas em lotear o espaço que o fim da Estrada de
Ferro Central do Brasil deixou, e Eleuzer Batista está pensando que o melhor
será abrir uma avenida unindo bairros distantes ao centro comercial, isto irá
crescer o comércio, desenvolver o município. Tenho outras informações sobre a
incompatibilidade, não oficial, ao contrário desta, trata-se de uma verba que o
prefeito em exercício recebera, verba para a construção da avenida, está
pensando em devolvê-la ao deputado que a concedeu, e Manezinho das Flores é
contra, Eleuzer a favor.
Fala-se muito em eleições farsantes,
corruptas, violentas, a bico de pena, a bacamarte, a faca e pau. Nenhuma destas
palavras é nova aos meus ouvidos, são novas ao seu ouvido, leitor, mas de agora
em diante não o são mais, pois que estou a lhe dizer. Conheço-as desde a
infância. Crespas são deveras; na entrada deste século era forçoso mudar de
método ou de nomenclatura. Ou o mesmo sistema com outros nomes, ou estes nomes
com di-versa aplicação. Nada mudou ainda. Como em todas as coisas, há uma parte
verdadeira na acusação, e outra falsa, mas eu não sei onde uma caba, nem onde
outra começa, peço a quem souber venha até à minha redação e me esclareça isto,
ficar-lhe-ei in totum agradecido. No que tange à fraude, que certamente terá
nestas eleições que se iniciam, sem negar os seus méritos e proveitos, acho que
algumas vezes podem dar canseiras inúteis e fúteis. Quanto à violência, sou da
família de Stendhal, quem escrevia com o coração nas mãos: Mon Seul defaut est
de ne pás aimer le sang.
Deixemos a política de lado, que
Ferluci entenda os políticos. Em termos de política, o melhor que se faz é
esperar os próximos despautérios e disparates, o povo insatisfeito, o município
cada vez às portas do abismo, esperando outras eleições que darão na mesma.
Voltemos ao que eu creio. Já disse que
creio em você, leitor, creio em seu vovô. Enveredei-me pela política a fora
para dizer que não creio nela, não creio nos políticos, são todos farinha e
gatos do mesmo saco; tinha de mostrar em que não acredito para enfatizar o em
que o faço. Neste ínterim quase me foi esquecido dizer oura coisa em que
acredito.
Acredito que esta segunda década do século que ora inicia-se trará a
equivalência dos jantares e dos apetites, em tal perfeição e dignidade que a
sociedade, para escapar à monotonia e dar mais sabor à comida um sistema de
jejuns voluntários. Depois da fome, o amor. O amor deixará de ser esta coisa
corrupta e supersticiosa; reduzido à função pública e obrigatória, ficará com
todas as vantagens, benefícios, sem nenhum dos ônus. O Estado alimentará as
mulheres e educará os filhos, aposentará os homens, dando-lhes oportunidade de
entupigaitarem a pracinha principal para falar da vida alheia, dos bons velhos
tempos de outrora, de não mais precisarem ralar a vida inteira para criar e
educar os filhos, ter sido a grande idéia do Estado, não haverá mais filho
revoltado com os pais, se houver revolta deles será com os rumos do Estado.
Nisto eu creio, leitor, impiamente, para lhe ser mais do sincero, mesmo que
dilacerando os meus risos, sacrificando os meus ideais e utopias.
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