RAIOS PERPENDICULARES DE CANÍCULA - Manoel Ferreira
O sol
flutuava como bola de fogo, tão quente, tão quente – quem suporta calor de
trinta e cinco graus na sombra, debaixo das árvores na calçada? Ninguém. A rua
deserta de chão batido, nos fundos do bairro Bela Vista, o asfalto não havia lá
chegado, até o presente momento nada dele, já era para tê-lo, enfim é o bairro
mais populoso de Curvelo, conforme me disseram são dezessete mil habitantes,
cinco vezes maior que Inimutaba, re-fletia os raios perpendiculares de
canícula. Àquela hora da manhã, nove horas, vinha Zefina no seu andar cambaio.
Estatura mediana, descabelada, roupas desbotadas, remendadas, rasgadas,
descalça, olhos pretos fincados nas orbitas, corpo grosso e sem contornos,
braços curtos, mãos calejadas na lida com a enxada, capinando lotes baldios,
pernas roliças.
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Aquela
mulher irrequieta, apesar de idosa, sessenta e cinco anos, lá vinha subindo a
rua – estava eu sentado numa tora de tronco de árvore à soleira de minha
residência, fumando um cigarro de palha, olhando as idas e vindas dos
transeuntes -, as mãos nas cadeiras, gingando e rodopiando sobre as pernas como
um pião no final do impulso, depois da ladeira cansativa, quase pondo o coração
pela boca. A testa suava de molhar o lenço de linho encardido e precisar
torcê-lo. A velha não se cansava. Todos os dias, no início da manhã, saía de
casa para a sua via-sacra familiar (chamava de via-sacra a série de visitas que
fazia todos os dias, a todas as casas dos filhos e filhas, num total de sete,
um a um, desde os fundos da Bela Vista ao seu início frente à igreja de Nossa
Senhora de Fátima). À noite, rematava sempre as visitas pela casa de Caim, ao
lado de um açougue frente à igrejinha, aliás, era o filho mais novo, a rapa do
tacho de Zefina, e por isso o predileto. Uma verdadeira grossura, o Caim, ou
antes, uma inocência angelical. Um riso idiota, resfolegado, alto, estridente,
de jegue aos zurros. As histórias de Zefina eram escabrosas, típicas do seu
natural de mulher grosseira, meio filha de jagunço, meio filha de escrava na
casa grande.
Quando
Zefina me encontrava à porta de minha residência, passando o final de semana
com os meus familiares, descansando da semana cansativa da universidade na
capital, abria a boca larga e sem único dente, dando-me um tapão no abdome,
expandindo-se na sua alegria simplória: “quando você formar, vai lá em Morro da
Garça destrinchar minha herança”. Tinha, dizia, uma herança encravada do avô,
em Morro da Garça. Eu ria: “destrinchar herança”. O termo é interessante, se se
pensar com categoria: há heranças que precisam mesmo ser destrinçadas. E ela
ria também, dizendo que eu gostava de destrinçar herança.
À
noite, quando ao pé da televisão, a família acompanhava, contrita, a novela do
“rato”, O Sheik de Agadir, protagonizada por Henrique Martins, a velha dava
palpites e se intrometia nas cenas, dizendo o “rato” era mulher, e não homem,
como os telespectadores pensavam, e estava certa, só no final o mistério foi
re-velado, reprovando personagens ou tomando-lhes o lugar para agir assim e
assim. Acabando a novela, todos se voltavam para ela e suas histórias.
Sentada
a um canto do fogão de lenha, num banquinho, com as pernas abertas, quem
olhasse, entre o dia quinze e vinte de cada mês, via um tufo atrás da calcinha,
era a toalhinha que colocava para embeber o sangue da menstruação, os braços
descansados sobre as coxas, contava suas histórias da infância no meio dos
jagunços, das escravas, dos coronéis, e ria ela mesma, de um riso falhado,
gutural, qual um serrote no miolo da madeira.
Tinha
duas histórias prediletas, que sempre repetia a pedido de Caim. Às vezes, Zefina reclamava, dizendo haverem
tantas outras histórias interessantes - porque aquela tinha de ser incluída?
Gosto não se discute, e para agradar ao seu filho predileto contava. Era um
modo de se lembrar de sua comadre que havia participado sua mudança para Várzea
da Palma, e muito pouco a via, só mesmo quando Zizinha vinha a Curvelo.
-
Conta, mãe, aquela dos bagos de feijão, pedia Caim, já ensaiando o riso e
antegozando os lances da narrativa.
- Uma
vez eu ia com a comadre Zizinha dos lados da Passaginha para o Santuário de São
Geraldo. Não tinha uma rua ainda. Era um campo de vegetação rasteira por onde
passava carroça e carros-de-boi. Era tudo mato ali. A comadre Zizinha estava
cheia de quatro meses e tinha desejos de tudo que via. Não é que num dado
momento que fui pegar tamarindo, estava ela com desejo, num entrocamento de
trilhas, quase que eu piso num monte de bosta de gente.
E
gargalhava de interromper a história.
-
Monte de quê, mãe? – conferia, interessado, Caim, a rir, aquele riso de atoleimado,
idiota.
- Isso
mesmo que você ouviu, seu bocó!, retrucava Zefina, um monte de merda de gente.
E
voltava a gargalhar e todos também riam.
Depois
prosseguia, com muitos gestos e micagens.
-
Voltemo pra casa, Zizinha chupando tamarindo. Cheguemo, sentemo no banco do
alpendre. Pedrinho, menino de cinco anos, filho dela, era endiabrado com seu
estilingue com bagos de feijão. Zizinha sentou, abriu as pernas, tava sem
calcinha, chupava o tamarindo com gosto. Pedrinho olhava o fundo das pernas da
mãe, estilingue na mão, pratinho de bagos de feijão do lado. Colocou um. Mirou
bem. Atirou. Zizinha deu um pulo daqueles, a semente do tamarindo rodopiou no
ar, foi cair debaixo da rede.
- E,
então, mãe? – perguntava Caim já pronto para soltar sua risada estridente.
- Quê
menino depravado é você, Caim!
- O
que aconteceu, mãe?
-
Zizinha gritou: “Quê é isso, Pedrinho?”
- Mãe,
Zezinho tava fazendo careta pra mim.
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