VERNÁCULO PARA O SILÊNCIO - Manoel Ferreira
Não sei mesmo de
que adiantaria isto de datar porque daqui a alguns meses se me perguntar o que
estive a pensar, quais foram as idéias, os sentimentos, as emoções, o que me
perpassou o íntimo neste instante, e de algum modo tentei expressar, não serei
capaz de dizer, embora retorne a leitura, lembrando-me que deixei de registrar
as palavras no diário, cocei a cabeça, escrevi esta frase, interrompi para
cofiar o bigode, enquanto pensava o que iria registrar em prosseguimento, não
me lembrando disto, pensando apenas que desejei ligar o aparelho de televisão,
deitando-me no sofá-cama, colocando os pés no móvel, mas acabei voltando ao
quarto, onde repousava um pouco, terei
vivido outras situações, enfrentado estes e aqueles problemas, sentido outros
prazeres, alegrias, contentamentos, serão outras as dores, os desejos. Não sei.
Retornando a leitura, apenas a consciência de que fora neste dia, à tarde, por
volta das sete horas da noite.
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Isto levando em
consideração o haver datado. Não o houvesse feito, não me lembraria mais o dia
em que isto registrei. Então, para que esta data? Não creio que seja necessária
a data, poderia estar escrevendo a respeito do meu quotidiano sensível,
intuitivo, de inspirações, desejos, vontades, sem datar. Apenas por formalidade
de sentido: um diário suscita de imediato as datas referentes aos registros, às
anotações. Não há como explicar isto de haver decidido datar, em outras
agendas, preenchi umas três ano passado, sem isto de datar.
Acho
interessante abrir uma pasta no computador, lendo o dia do mês, mês e ano,
outro estilo diferente do de estar a intitular apenas, intitulo mas em seguida
vem a data. Causa-me prazer, deleite, por estar familiarizado com os dias,
meses, apesar de que não possa mais responder pelas idéias, pensamentos, o que
me perpassava o íntimo, como fora criando as imagens, as idéias, os
pensamentos, os sentimentos, emoções. Tenho consciência de uma quotidianidade.
Se retorno a alguma agenda, abrindo-a, sei tratar-se de um diário, foge-me
quando o fiz, e isto me deixa uma sensação estranha de ser um diário emocional,
sensível, intuitivo, mas não me lembra as situações em que estive envolvido, se
a janela do quarto estivera aberta, se estava chovendo.
Há pormenores
que omito, sem mesmo saber o porquê de está-los a omitir, e, agora, já que
nisto estou pensando, devo dizer que, tendo estado a chover por vários dias, os
degraus da escada estão escorregadios, e por causa disto tomei uma queda,
batendo as costas no degrau, surgindo um hematoma, e um dia após esta queda
comecei a sentir uma dor insuportável nas costas, passando todo o final de
semana com dores atrozes, e como não suporto dor, tenho consciência de que
aumento de alguma forma, um ato de rebeldia por ela não responder aos meus
desejos, aumento-as, então, o que é sobremodo estranho, sem dúvida intensificando.
O que importa à dor se ela está intensa ou se não está, está amena e aguda,
importa a mim se está intensa, se não está, sou eu quem a sente, a dor não se
sente. Estranho. Contudo, sinto-me um pouco abalado por estes três dias de
dores, tomando remédio, passando uma pomada para dores, uma irritação se
limites.
Teria alguma
razão para não dizer explicitamente, dizer através de imagens, de metáforas, de
anacolutos, eufemismos, símbolos, signos. Por isto é que não me lembra o que
estivera a fazer, o que estava acontecendo aquando registrei isto ou
aquilo.
Interrompi-me
por umas duas ou três semanas, sentia-me enfastiado, insatisfeito, desejava
expressar-me de outra maneira, renovar isto e aquilo, e não estava conseguindo fazê-lo.
A partir de uma interrupção, aquando retornasse alguma coisa seria diferente,
haveria uma inovação. Registrando agora, após todo este tempo, desligado do
diário, sem ao menos tomar-lhe em mãos, folhear, abrir numa página ou outra,
ler algum parágrafo, surgiu-me isto de que não me refiro a uma situação
concreta deste quotidiano, a de hoje é que ainda estou a recuperar-me da dor,
tendo, logo às seis da manhã, dirigi-me ao hospital, plantão, consultando-me,
sendo prescritos uma injeção e comprimidos de dor; esta é a situação concreta
que estou vivendo, sentindo-me abalado por estes três dias de aflição,
ansiedade, desejando a todo custo o desaparecimento da dor, e como não responde
ao meu desejo, um ato de rebeldia é justamente aumentá-la – talvez
inconscientemente eu sinta que, aumentando-a até não mais poder, a resposta
será o seu desaparecimento, o que de antemão e revezes sei não ser possível.
Tudo bem... Não
sei se há diferença assim tão relevante nisto de datar, registrar concretamente
o que está acontecendo, identificar o estado de espírito em que me encontro
devido a uma dor somática, ah, sim, a doutora por quem fui atendido dissera que
a dor não é em conseqüência da queda na escadaria, os nervos estão muitíssimos
contraídos, duros, procurasse me lembrar se não tivera alguma raiva, um ódio
por uma palavra, por uma ofensa ou humilhação; não me lembra a terminologia
psicológica que usara a doutora, definindo a dor que sentia. Comentou até que
seria necessário, se conseguisse saber destes pormenores, conviver com o
fenômeno, libertar-me, e para isto seria necessário um tratamento terapêutico.
O ódio e a raiva estão na minha consciência, não afeta as pessoas, afeta a mim
unicamente.
Olhei-a
surpreso. Estava sim consciente de que ódio e raiva são manifestações minhas,
não afetam a ninguém. Estivera sempre consciente disto.
Mostrei sempre
indiferença a esta ou aquela agressão, humilhação. Dizia-me por me importar com
as opiniões, pontos de vista. Não sabendo que não me sinto bem, sinto-me
aborrecido, com raiva, com ódio. Acumulou-se tanta coisa dentro de mim que não
houve alternativa para a consciência de minha sensibilidade senão uma dor
física. Ouvi casos de mulheres grávidas que, por esconder de si mesmas suas
angústias, tiveram eclampse.
Não sou homem
que negligenciei a psicologia, refuto a análise, a terapia, pensando que só
alguém desestruturado, ensandecido, desequilibrado necessita destes
tratamentos. Estou sim disposto a fazer tal tratamento. Sei bem que não suporto
dor, ataques, ofensas, humilhações, raivas, ódios podem acontecer a qualquer
momento, não desejo outra vez ter de sentir tanta dor, algo insuportável, de
repente, após um segundo de desaparecimento, uma pontada dilacerante,
reiniciando todo o processo. Se não gosto de dor, evito-as. Evitar esta só com
um profissional, só com um terapeuta.
Interessante
isto!... Enquanto estive registrando na agenda tudo isto, não senti nenhuma
pontada, apenas um medo de a qualquer momento retornar, tendo de enfrentá-la
por um tempo sem estimativa de interrupção, por mínima que fosse. A não ser
este medo, acompanhando-o outro, o de alguma modo estar criando para que
retorne. Felizmente, não retornou ainda, podendo até acontecer daqui a algum
tempo, aquando não estiver mais registrando nesta agenda, acreditando que
demorará a retornar, pois que encontrei um modo de ir transformando-a, e a
mudança irá depender da continuidade.
Começo eu o
processo terapêutico, registrar o que vai no íntimo; contudo, não tenho
quaisquer dúvidas de que se faz necessário um acompanhamento de terapeuta.
Pergunto-me é
se alguém lesse este registro o que iria sentir? Creio que, ao invés de pensar
em meu estado psíquico, as inúmeras neuroses que há de por trás desta dor,
pensará consigo mesmo o que está sentindo, quais são os seus sentimentos, se
sente algum ódio, alguma raiva, se está deprimido, angustiado. Não deseja para
si esta dor, e qualquer um pode estar sujeito a isto, sem o saber; sabendo que
está sujeito só resta a opção de estar
consciente de tudo, não omitir as ofensas, as humilhações.
Descubro assim
de imediato que o único sentido relevante desta dor é que outros não a sintam,
se as revelo com engenhosidade e arte, com espírito de seriedade e sinceridade,
sem isto de omitir o que concretamente está acontecendo.
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