DE SERENAS LÁGRIMAS - Manoel Ferreira
De louco e
médico todos os homens têm um pouco, diz-nos a sabedoria popular que nunca se
engana ou erra em seus juízos. Uns são tão loucos que não lhes resta outro
destino senão o abrigo eterno, se se quiser a Casa Verde imortal; uns são tão
médicos que encomendam antes do tempo o paraíso celestial para os pacientes. A
não ser nestes casos extremos, a loucura e medicância é parte constituinte da
natureza humana, admita-se ou não.
À luz já viva
da manhã recente con-templo a natureza humana em suas nuas formas. Pediram-me
ontem à noite no botequim do Sorriso que cumprimentasse os leitores nesta
aurora de hoje com isto de louco e médico todos os homens têm um pouco, com
efeito iriam à beça apreciar, passariam um dos melhores dias de suas vidas,
alegres, joviais, contentes, enfim estaria a homenagear-lhes, visto serem
humanos, visto o louco e o médico lhes habitarem as pré-fundas. Quiça,
encontrando-me perambulando pelas ruas, me glorificassem, agradecessem-me. Há
tempos imemoriais os cronistas só homenageiam senão as nuvens negras que estão
no céu ou as aves negras que voam por todos os espaços do céu, irrequietas e
eufóricas, não descem à terra, não mais há alimentos na terra, alimentam-se de
ar e vento, o prato predileto delas foi extinto. Disto não sei, apesar de ler
constantemente as crônicas dos tablóides, e saber que o amigo do Sorriso´s
Botequim tem toda a razão, não olho para o céu, isto porque sinto vertigem. Não
lhe daria a última palavra, iria tentar cumprimentar esta manhã os meus
digníssimos leitores, falando do louco e do médico, poderia ser que não
conseguisse, é um assunto muito profundo, não sou expert em profundidades,
prefiro mesmo a superfície de todas as coisas do mundo.
Com esta
franqueza, pediu-me que tratasse disso com extrema acuidade, não arrancasse dos
leitores serenas lágrimas de desconsolo e desesperança, é triste saber que a
loucura não tem remédio, o homem não tem solução qualquer, os médicos, mesmo
com toda a empáfia e orgulho, nada sabem das doenças, tudo que aprenderam são
elucubrações chinfrins, e todos os medicamentos que prescrevem são para fazer
jus à consulta, receberem o dinheiro que lhes é devido, ralaram por anos o
banco da faculdade. Se de todo não me fosse possível deixar de arrancar-lhes
serenas lágrimas de desesperança e desconsolo, fizesse-os rir de chorar,
deitarem no chão e estremelicarem. Compreendia o amigo do Sorriso´s Botequim
que me é impossível deixar os leitores sérios, lendo as minhas crônicas.
Poderia
garantir-lhe que não falaria dos médicos, jamais necessitei de única consulta
em todos os anos de minha vida; só necessitei de um e seus assistentes, quando
nasci; recebendo alta minha mãe, não mais visitei o consultório de um. O
segredo de tanta saúde, para dar, vender, alugar, emprestar, é o leite
diretamente da vaca. Falaria do louco, seria bem fácil para mim, devido ao fato
de que há muito desconfio ser um deles, o que fizeram todos rirem, e os olhares
me mostraram que se eu ainda duvidava desta verdade, eles estavam mais que
certos. De imediato, o amigo me perguntou qual era a diferença entre o pintinho
de um menino de seis anos e um homem de setenta. Não lhe soube responder.
Respondera ele: “O menino pensa que o pintinho só serve para fazer xixi, o
homem de setenta tem certeza”. Risos e mais risos de todos. Até o Sorriso, o
proprietário, que muito dificilmente
ria, caiu na gargalhada.
Vim para casa
em absoluto fora do tempo e do espaço, não por estar chamando urubu de meu
louro, tomei apenas uma cerveja, dispensei a cachacinha, a branquinha havia
acabado, da amarela não gosto, tem muita química – a disenteria é inevitável,
noite destas não houve tempo de levantar-me, fiz na cama, sob os protestos de
minha esposa, devido à amarelinha -, mas por estar pensando sobre a encomenda
que me fizera o amigo do Sorriso´s Botequim, cumprimentar os leitores com a
loucura, não conseguia imaginar qualquer coisa sobre a loucura, lembrar de
algum caso peculiar dela, como existe e existirá até a consumação dos tempos em
todas as comunidades, sejam do interior, das capitais, da nação, do mundo
inteiro. Atribuo agora a esta dificuldade por pensar ser muito estranho,
inverossimilhante cumprimentar as pessoas com a loucura logo de manhã – o que
pensariam de mim? Estou indo longe demais com os meus cinismos. Se há alguém
louco, ele sou eu, e não eles, o que é uma verdade inconteste. Não tenho
direito de trans-feri-la, mesmo por tempo mínimo, para os outros de minha
espécie, apenas nas letras, para amenizarem poucochito que seja as dores
contundentes que me perpassam o corpo e alma inteiros só por saber que sou
louco, não haver qualquer cápsula que me possa salvar dela.? Tenho sim. Assim,
sinto-me um palhaço que ri para mim mesmo, “que faz os outros rirem, ou um
equilibrista que flutua sobre a prancha que se desliza através das moendas da
vida, e na impetuosidade desses movimentos, se estabiliza na plataforma do
saber, com rumos à imortalidade”, como definira um outro amigo, que não
freqüenta o Sorriso´s Botequim, é um homem muito sério, de idôneos princípios
da tradição e do conservadorismo.
Antes de virar
para o meu canto, fechar os olhos, fiquei pensando por alguns minutos na
loucura. Só pude concluir: “Infelizmente, ela existe mesmo”. Dormi o sono dos
anjos. Sonhei com a destruição de uma casa, eis tudo o que lembro. Só acordei
uma vez, assim mesmo para ir ao banheiro, acordara apertadíssimo. Hoje, depois
de desjejuar, indo tomar o meu banho matutino, para começar a cumprimentar os
meus leitores, não sei explicar com propriedade como acontecera; sei que
conjuguei o presente do indicativo do verbo “ir”. Conjugando-o, lembrei-me de
alguém haver-me contado a história do Sargento Gaguinho, à soleira do portão de
minha casa na rua José Bonifácio, frente à igreja de Nossa Senhora Aparecida,
sentados que estávamos na tora de tronco de mangabeira.
Sargento
Gaguinho era louco. Não por uma situação trágica acontecida na polícia, que o
traumatizara. Nascera louco de pedra, mas de uma inteligência incomum. Até a
idade de seis anos, era uma criança quieta, muito pouca falava, gostava
bastante de fazer buracos no chão, enterrar folhas secas das árvores de sua
casa; às vezes, brincava com os coleguinhas de esconde-esconde no quintal. Não
se sabe o porquê de haver entrado para a escola com seis anos e meio, naquela
época só era permitido estudar aos sete anos. Mostrou sua inteligência incomum
nos estudos, ganhara vários prêmios por cuidado com os objetos escolares, por
suas notas sempre altas em todas as disciplinas, por higiene. O orgulho das
professoras.
No terceiro ano
de grupo, era tempo de aprender “verbos”. Começara a tirar notas ruins, chegou
ao zero. Difícil demais para ele assimilar as conjugações. A mãe prometera-lhe
que se tirasse mais um zero no boletim ficaria um mês sem cavar buracos e
enterrar suas folhas secas. Levou a sério a ameaça da mãe. Era chegar a época
de exames conjugava verbos o dia inteiro, especialmente quando se sentava no
vaso sanitário, aí conjugava vários, “ser”, “estar”, “ficar”, “permanecer”. Eram
os seus prediletos no vaso sanitário. Os que estudava mesmo naqueles idos
tempos do terceiro ano de grupo deixava-os para a tardinha, sentado no
banquinho do alpendre de sua casa ao entardecer. Com a gramática na mão, lia
todos os verbos com muita atenção, assimilava alguns, outros não. Os exames de
verbos eram peculiares: “conjugue os verbos “comer”, “mastigar”, “andar”, “cantar”,
de exame para exame eram modificados, mas era só conjugar. Não tirara mais
zero, mas não avançou além dos cinco, seis, que lhe permitiram passar de ano.
O hábito de
conjugar verbos sentado no vaso não mais se desvencilhou deles. Até se limpar,
dar descarga, descarregava conjugações de verbos, os preferidos, “ser”,
“estar”, “ficar”, “permanecer”, completava com “cagar”, “mijar”, “defecar” para
terminar a necessidade para que ali estava sentado. Passou o resto da infância
conjugando verbos no vaso sanitário. No colégio, fora vítima de mofas de todos
os colegas. Era pedir ao professor para ir à casinha, os colegas já diziam rindo:
“É hora, professora, de conjugar verbos", e todos riam a bandeiras soltas.
À hora do intervalo, a diversão de alguns era ficar nas imediações do sanitário
para ouvir-lhe conjugar verbos, e caírem na gargalhada. Fora apelidado de
“bosta verbal”. Ligara, o apelido pegou. Não brigou com ninguém, era muito
franzino, apanharia com certeza de qualquer um.
O mais
interessante é que, se sentisse pressionado por alguém, se tivesse medo de
alguma coisa, se se sentisse menosprezado, começava a conjugar verbos. Mesmo
pelas ruas da cidade, lojas, repartições públicas, bares, açougues, padarias,
não nestas circunstâncias, fazia-o em voz alta, sob os risos de todos os
transeuntes, clientes.
Tempo de Tiro
de Guerra. Sofrera com o Sargento Serra. Qualquer deslize que cometia, era
repreendido: “Sua bosta verbal!” A maioria dos castigos por ele dados ao
Sargento Gaguinho – ah, sim, gaguinho não era por gaguejar, era o seu sobrenome
de batismo, Indelvânio Gago – era ficar na guarita à noite, montando guarda.
Passava a noite inteira com o fuzil em riste, conjugando verbos. Recebera
castigos os mais diversos por causa desta mania, executava-os, mas não
conseguiu se desvencilhar dela. Contudo, mostrou-se um excelente aluno, tirava
boas notas em “tiros”. Formou-se em primeiro lugar com “tiro”. Aí é que se
anunciou o desejo de se tornar militar, chegar a general. Os colegas riam de
suas prepotências, não por não ser capaz, era de inteligência incomum, mas por
imaginarem ser conhecido na polícia militar com “General Bosta Verbal”.
Prestou exame
para a polícia, mas fora reprovado. Decidiu continuar os estudos, em primeiro
lugar fez o curso de contabilidade, que concluiu com méritos. Prestou
vestibular na capital para letras, tendo sido aprovado. Era exímio aluno de
Língua Portuguesa, conhecia a gramática de cabo a rabo, especialmente a
superioridade dos estudos verbais. Mas na época dos exames tinha sérias
disenterias, algumas vezes foram tão sérias que não pôde fazer o exame no dia
marcado, fez noutro. Ao final do curso, tendo-o concluído com primor, a sua
monografia versou sobre: “A disenteria nas conjugações dos verbos defectivos”.
Até os professores acharam engraçado o tema de sua monografia, mas concordaram
com ele, devido ao fato de haver sido muito bem estruturada. No seu imaginário,
pensara que com este tema iria se desvencilhar disto de conjugar verbos em
todas as situações e circunstâncias de sua vida, especialmente no vaso
sanitário. Conjugava-os e lecionava verbos no vaso sanitário. Nalguns lugares,
lojas, repartições públicas, bancos, os clientes inevitavelmente riam, ouvindo
alguém em alta voz conjugando e lecionando verbos dentro do banheiro. Se alguém
lhe conhecia nestes lugares, explicava a todos os presentes tratar-se do “Bosta
Verbal”. Era louco, sua especialidade era conjugar verbos. “Cada louco com sua
mania, diz o ditado”, alguns diziam, após receberem a informação.
Não desistiu de
se tornar militar. Prestou exame. Passou. Só chegou a Sargento, o sonho de
tornar-se general frustrou-se. Deus sabe o que faz. Em sua época,
inevitavelmente general se tornava
presidente da república, e isto não poderia acontecer de modo algum: não por
ser louco de pedra, mas por ser conhecido como Bosta Verbal, o que o mundo iria
julgar de nossa nação com um presidente com este apelido. Seríamos
ridicularizados, e a imagem dos militares denegrida, numa ditadura isto seria
inviável.
Foi um militar
linha-dura, prepotente, radical, violento. Sua especialidade com os infratores
das leis, bandidos, assassinos, era espancar-lhes até sujarem as calças,
sentindo prazer. Sabe-se que o contingente de bandidos, assassinos diminuiu
bastante, enquanto Sargento Gaguinho exerceu suas funções de militar naquela
comunidade, isto devido ao fato de todos eles não quererem apanhar do Bosta
Verbal até sujarem as calças. Recebeu medalhas e medalhas de honra ao mérito
por seus serviços à segurança pública.
Aos sessenta
anos, já reformado, entregue ao alcoolismo, só vivia bêbado pelas ruas da
cidade, conjugando verbos, tivera uma disenteria daquelas, morrera todo cagado
em praça pública.
Comentários
Postar um comentário