RISÍVEIS PERSPECTIVAS DE NADA - Manoel Ferreira
Bem reconheço ser melhor, de bom senso, nada
vender, nem cachaça da roça, nem cachaça fabricada, e viver de um produto a que
se referiu um velho amigo, Sargento Gaguinho: “Algumas centenas de pessoas
neste buraco de mundo em que trilhamos as veredas rumo à cidade dos pés juntos
vivem do produto da pindaíba...”. Com efeito, cairia no ridículo, se fosse aqui
registrar como Sargento Gaguinho chegou a dizer esta frase, devido ao seu grave
problema de gagueira, deve ter levado no máximo três minutos para dizê-la. Não
tenho talento para uma descrição deste porte, como só escrevo o que vivo, mesmo
que re-criando e inventando algumas circunstâncias, seria necessário ser gago
para dizê-la com arte e arrebiques. Não entendi bem a última palavra,
pareceu-me haver ouvido “Paraíba”, seria um ônus danado para alguns mandar
trazer de lá tal produto, ainda mais se alguém iria comprar, devido ao preço
que provavelmente teria.
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- Da
Paraíba, Gaguinho? – indaguei, rindo – Deve ser um produto muito especial para
ser trazido para a nossa cidade. Que produto é esse, Sargento, tão especial
assim.
Respondeu-me
que não era da Paraíba. Não havia dito esta palavra. Havia dito “pinda...”,
“pinda...”, “í”, “í”, “ba, ba, ba”, “pinda-í-ba”. Pindaíba era o que havia
dito.
“Viver na
pindaíba” outra coisa não quer dizer senão viver na miséria, viver de brisa,
viver de nada, estar condenado à miséria. Viver do produto da pindaíba? Estaria
Sargento Gaguinho se referindo a alguns homens estarem vivendo da miséria alheia?
Perguntar-lhe era expor-lhe a um sacrifício sobre-humano, o que seria injustiça
e desumanidade minhas. Teria de explicar-se muito até elucidar a profundidade
do que desejava saber eu. Com coisas bem mais simples suava, gesticulava,
salteava, rodopiava, restava apenas arrancar as vestes à força até conseguir
dizer, essa iria acabar com ele vez por todas.
Como seria
possível vender a miséria, um produto chamado pindaíba, alguém viver dele,
enriquecer-se com ele, ter a carteira abarrotada de notas graduadas, rindo de
orelha a orelha? Os políticos tiram até o último tostão do bolso dos pobres,
miseráveis, e vivem numa mordomia sem limites. O tostão tem de haver nos bolsos
para ser retirado e deixar as pessoas sem nada,a entregues ao nada. Não se tira
coisa alguma do nada. Não se tira dinheiro do bolso de mendigos, não se lhes dá
um tostão. Mesmo que Sargento Gaguinho não tivesse problema de gagueira
ser-lhe-ia difícil explicar-se, nestas circunstâncias, impossível de todo.
Não que sua
frase “algumas centenas de pessoas neste buraco de mundo em que trilhamos as
veredas rumo à cidade dos pés juntos vivem do produto da pindaíba...” fosse um
disparate, frase de efeito só para chamar a atenção. As pessoas normais dizerem
é comum, elas precisam bastante da atenção alheia, ficarem no cardápio das
crônicas sociais, mas por que iria Sargento Gaguinho dizer, sabendo de sua
problemática de gagueira? Não precisava dela com este propósito, a gagueira era
já objeto de atenção sem limites de todos.
Era preciso
pensar o sentido que Sargento Gaguinho atribuía às suas palavras.
Não há
duvidar os empresários são experts na criação de estratégias de venda para os
lucros serem exorbitantes, para que tenham sucesso inestimável, estarem sempre
nas colunas sociais dos tablóides, serem convidados para todos nos eventos
sociais e políticos, para as festinhas de cunho familiar. Se fossemos um povo
desenvolvido, perspicaz, tivéssemos visão das coisas, não entraríamos no
conto-do-vigário das estratégias empresariais para obter lucros, evitaríamos
gastar nosso dinheiro mais que suado com certos produtos, mesmo com os seguros,
de boa qualidade, assegurados pela “garantia”, a maioria deles esperam vencer o
prazo, dia depois de vencido, estragam, mandar consertar fica bem mais caro que
adquirir outro. As perspectivas e estratégias de lucros dos empresários são
eficientes, perfeitas, não dão ponto sem nó cego, mas as estratégias de
economia das pessoas são risíveis, estão sempre entrando no buraco do tatu,
acabam sem nada, sem um tostão furado, na miséria.
Não somos
povo desenvolvido. Não temos a mínima noção de coisa alguma. Os empresários
podem inventar de tudo, com estratégias as mais mirabolantes, diferentes para
cada um dos produtos que inventarem, para os lucros, que as lojas se
entupigaitam de clientes.
Inventar um
produto da pindaíba é ter muita criatividade, haver nascido mesmo para o
comércio, mas comprar um produto com este nome é haver nascido para ser idiota,
bobo da corte. Muitas vezes dizemos: “Ter ele escrito tantas asnices não é o
problema específico, mostra até ser bem criativo, é ter tido tantos leitores,
haver alcançado a fama”.
Centenas de
pessoas estarem vivendo do produto da pindaíba, como me dissera Sargento
Gaguinho, com extremas dificuldades, devido à sua gagueira, não digo ser
preocupante, não digo ser motivo de espanto, a que nível a ambição do dinheiro
e do sucesso pode levar o homem, mas a que nível a imbecilidade do povo pode
chegar, é capaz de chegar a miséria para satisfazer os interesses dos
poderosos, do capitalismo. E não há o quê possa conscientizar o povo das
falcatruas empresariais, de estar sendo usado.
Há alguns
anos, assim me contara alguém sobre o Sargento Gaguinho, a família contratou um
certo advogado para cuidar dos papéis de uma herança para ele – gente do
advogado já havia sido envolvida em roubo homérico na prefeitura; Sargento
Gaguinho avisou os familiares, ouvindo como resposta: “Filho nem sempre filho
de peixinho peixinho é”. A providência divina se revelou: a própria irmã do
advogado dissera aos seus familiares: “Não confie nele. Morrendo vocês, o filho
de vocês não receberá a herança. Ficará para meu irmão”. Já havia recebido uma
certa quantia. Procurado, não quis devolvê-la, alegando que a desistência de
uma causa não implicava a devolução da quantia paga para o início da causa,
isto estava garantido por lei constitucional. Por dias incontáveis só ouviu
isto: “Mãe tinha razão: todo advogado é ladrão”. Na época não se perguntou se este não era um
lídimo produto da pindaíba, apesar de conhecer o termo, sempre ouviu desde que
se entende por gente. Ouvindo a frase do Sargento Gaguinho lembrei-me de alguém
me haver contado isto a seu respeito – inclusive, acrescentando que por quase
meio ano a família dele teve sérias dificuldades financeiras, quase passando
fome, não fosse a ajuda de um primo, residente em São Paulo, economista,
professor de faculdade, que cuidou disto, enviando pequenas quantias para a
sobrevivência dos familiares -, e não tive dúvidas de que o advogado iria
deixar-lhe sem a herança de sua família, e lhe teria aumentado os seus bens
materiais, poderia ter mais uma amante; se hoje, dizem, tem três, além da
mulher mesma, poderia ter quatro.
Lembrando-me
disto, compreendi com eficiência as palavras do Sargento Gaguinho: realmente
conheço grande número de pessoas que não vivem de outra coisa senão da
pindaíba, não significando que as pessoas nada tenham, nem mesmo moeda de um
centavo no bolso, mas sejam em absoluto miseráveis de noção e visão das coisas
e das tramóias dos experts, pára-raios mesmos de tudo e de todos.
Mas
Sargento Gaguinho não se limitou apenas a dizer: “Algumas centenas de pessoas
neste buraco de mundo em que trilhamos as veredas rumo à cidade dos pés juntos
vivem do produto da pindaíba...”. Observou e bem que desde o momento em que
isto dissera, estive calado, não sorumbático com a profundidade de suas
palavras, borrifado de pena e dó dos miseráveis, dos que são lesados com a
esperteza dos outros, mas pensando a rigor em suas palavras. Antigamente, há
quase cinqüenta anos, a grande maioria dos policiais eram analfabetos,
ignorantes, imbecis, fáceis de serem domesticados, servirem com eficiência à
elite militar, à ditadura, mas, hoje, apesar de muito pouco haver modificado,
enfim a polícia vai sempre estar sob os domínios da corrente filosófica
“positivismo”, Sargento Gaguinho não era, não fazia parte deste rebanho. Eram
inteligente, extremamente observador, perspicaz, uma intuição que merecia
reconhecimento. Além disso, compreendeu o meu silêncio: visto saber de seus
problemas de gagueira, não iria colocar-lhe na situação de se explicar.
Acrescentou
à reticência que deixou: “pindaíba do tatu que arrancam do buraco” – a frase
inteira seria: “Algumas centenas de pessoas neste buraco de mundo em que
trilhamos as veredas rumo à cidade dos pés juntos vivem do produto da pindaíba
do tatu que arrancam do buraco”. Decorar uma frase deste porte e calibre para
ser dita num discurso de palanque nalgum evento social ou político, para ser
re-presentada num diálogo entre dois personagens de uma novela, não é coisa tão
simples assim, não por ser longa, que o é, em verdade, mas colocar nos seus
devidos lugares sentimentos, ideais, crítica envolvida de cinismo, ironia,
sarcasmo, mostrando a sua eidos satírica. Para Sargento Gaguinho dizê-la levaria
senão vinte e quatro horas ao menos quinze seria despendidas com todos os
esforços e gestos. Fora bastante inteligente, dividindo-a em duas partes.
Jamais
poderia dizer se o que interpretei, analisei, tomando em consideração a
primeira parte de sua assertiva, focalizando “produto” da pindaíba”, o que mais
chama a atenção, e fora a intenção do
Sargento Gaguinho, está de acordo com o que mesmo desejou que eu compreendesse,
não que divulgasse por todos os cantos, recantos, esquinas deste buraco de mundo
em que trilhamos as veredas rumo à cidade dos pés juntos, mas que memorizasse
bem e passasse a olhar a vida, os homens, o mundo de soslaio, fosse um satírico
silencioso, o que incomoda muito mais porque o interlocutor nunca é capaz de
saber o que é pensado por mim, e em tudo que for possível pensar haverá
sempre equívocos aos milhares.
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