Desejo
e busco sem cessar comunicar uma extensa gama de expressões: ora esplendorosa e
circunspecta, ora majestosa e misteriosa, ora respeitosa, mas com um sutil
sorriso, ora simplesmente respeitosa, sem sorriso e gargalhada; o espelho
recebeu algumas vênias e curvaturas, acompanhadas de sons um tanto vagos,
lembrando de certo modo sons franceses, embora eu não conheça francês de todo.
Faço algumas surpresas e curiosidades agradáveis para mim próprio, com
trejeitos de boca e de sobrancelha, e chego mesmo a tentar alguma coisa com a
refinada língua; em suma, que é que um homem não faz quando está a sós consigo
mesmo, sentindo que é bonito, e sabendo além disso que ninguém está espiando
pela fresta da porta!
Todo desejo se emudece em alguma
presença. Não sei o que sinto quando estou só comigo, sem estar conversando com
os botões, como é de práxis das pessoas letradas e cultas; é como se toda a
minha alma estivesse subvertida.... Há uma ária que toco no cravo, com o poder
mágico de um querubim, e com tanta simplicidade, tanta alma! É a ária
predileta, a mais querida e amada de todas. Quando firo a primeira nota,
sinto-me curado de todo o sofrimento, da confusão das minhas idéias e
fantasias, quimeras e sonhos.
A mais agradável das disposições de
espírito e alma acompanha-me no decorrer de toda a operação: afivelando os
suspensórios ou dando o laço na gravata, faço vênias e curvaturas com especial
agilidade, e, embora não dance nunca, só algumas vezes fui a um baile ou hora
dançante, mesmo assim para acompanhar a esposa que ama um arrastar de pés no
salão de tão egrégias personalidades, chego a executar uma valsa.
Arquiteto toda a sorte de reflexões,
meditações, a respeito do desejo e sonho que o indivíduo sente de dilatar o seu
horizonte, de expandir as suas visões e concepções, fazendo novas descobertas,
errando a aventura, e, além disso, a respeito do sentimento que o leva a
acomodar-se numa existência limitada, com visões que não vão além do portão,
trancado a cadeado, e a caminhar com os antolhos do comportamento, do hábito,
da mania, e quem sabe até com os do piti deslavado e solto, sem preocupar-se
com o que se acha à direita ou à esquerda, se vem de lá das arribas ou se de cá
da vida.
O mortal... Bem, creio até ser
sobremodo difícil entender como é feito este mortal, de que natureza é ele, em
que píncaros da terra reside; por mais estúpida que seja a novidade, basta
apenas que seja novidade para que eu a transmita sem falta a outro mortal,
ainda que seja só para dizer: “Sei brincar com as palavras e nesta brincadeira
digo coisas que coraria até uma santa beata”, e o outro mortal terá muito
prazer em prestarem-me ouvidos, nem que seja só para depois exclamar: “Um ninho
de falta de senso e juízo. Não será que seja um alienista?” E as minhas
palavras e intenções não deixarão de circular sem falta pela cidade inteira, e
todos os mortais, quantos quer que sejam, a comentarão até fartar-se e depois
admitirão que tudo isso merece atenção e é digno dos comentários mais
sapientes.
Um todo imenso, pleno e abençoado, e
como que envolvido por uma neblina, estende-se diante de minha alma; meu
coração, alegre e saltitante, como convém a um garoto que sai da mercearia
chupando o seu pirulito, aí mergulha e se perde, da mesma forma que os olhos, e
ardentemente aspiro a me abandonar por inteiro, entregar-me aos prazeres
efêmeros, fugazes, deixando-me impregnar de um sentimento único, sublime,
delicioso...
Ai de mim!... Quando lá chego, cansado
de tantas subidas, às vezes de ladeiras simplesmente absurdas às pernas
humanas, vejo que nada mudou, nada sofreu uma mínima metamorfose; encontro-me
tão pobre, tão mesquinho e fútil como outrora, e minha alma sequiosa suspira
pela água refrescante que me fugiu ao sabor e paladar.
O homem que, tomado de surpresa e
espanto diante de sua mediocridade e estupidez, apela para todas as suas forças
e transporta facilmente cargas que, de sangue frio, mal poderia empurrar. A
natureza humana suporta a alegria, a tristeza, a dor, até certo limite; se o
ultrapassar, sucumbirá vez por todas. A questão não é saber, pois, se um homem
é digno de respeito ou digno de pena e dó, mas se pode aturar a medida de sua
imbecilidade, moral ou física, não importa, que lhe é de vocação e direito.
Ergo-me para uma nova manhã – o meu
caminho é feito de caminhar -, docemente viva. Minha felicidade é pura,
transparente, como o reflexo do sol na água do lago. Cada acontecimento vibra
em meu corpo, como pequenas agulhas de cristal que se estilhaçassem inteiras.
Depois dos instantes curtos e profundos, vivo com serenidade durante largo
tempo, compreendendo, recebendo, resignando-me a tudo. Meu rosto é leve e
impreciso, meu olhar é sereno e indiferente, a respiração encontra-se lenta e
comedida, boiando entre os outros rostos, olhares, respirações entre os outros
rostos vazios e opacos, seguros, como se eu ainda não pudesse adquirir amparo e
conforto em qualquer expressão. Todo o corpo e alma perdem os limites, perdem
as estribeiras, matizes e enredos, misturam-se, fundem-se num só caos, suave e
amorfo, lento e de movimentos vagos como matérias simplesmente viva. É a
renovação perfeita, a anunciação pura e a criação solene.
Outrora, quando do alto de um rochedo,
abrangendo com o olhar, para além do riacho, desde os vales férteis até as
colinas, ao longe, eu observava em torno de mim tudo germinar e frondescer.
Quando eu contemplava as montanhas cobertas, da base aos píncaros, de árvores
de ramos frondosos, e os vales sinuosos ensombrandos de bosques deliciosos, o
riacho que escorre lento e tranqüilo entre os caniçais murmurejantes,
refletindo as nuvens que brisa da tarde molemente faz flutuar no céu, era como
se eu me tornasse um Deus pela plenitude de emoção que transbordava de mim, e
as magníficas imagens do mundo infinito,
agitando-se em minha alma, enchiam-na de uma vida nova.
Tudo isto está envolto num silêncio
profundo, que não é perturbado nem mesmo pelas vozes apenas perceptíveis dos
cantores do arvoredo.
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