A TENTAÇÃO DO BASTARDO - Manoel Ferreira
Quando uma
consciência não consegue manter a própria existência carnal, solidamente
ancorada em alguma razão de ser, é a “náusea” que a espreita, é o “tédio”: “a estima que o homem tem necessariamente por
si mesmo, o sabor da existência”[1].
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A propósito de
Baudelaire, dirá Sartre que ele “tem como que uma intuição profunda dessa
contingência amorfa e obstinada que é a vida”, e que dela “tem horror porque
reflete a seus olhos a gratuidade de sua própria consciência” que quer a todo
custo dissimular.
Em Baudelaire,
esta angústia confina com a vertigem: “Se
ele pôde com tanta freqüência pensar no suicídio, é que se sentia demais”[2];
em Jean-Paul ela se torna o terror diante duma suposta sentença.
A dificuldade
com a impostura de um homem é que há o risco de ela revelar-lhe a sua. Embora
considere isso um simples espetáculo, e você pretenda ficar do outro lado da
rampa, você não estará totalmente ao
abrigo de acidentes. Por menos que um comediante se sinta Comediante, o
espetáculo que ele lhe apresenta tem suas chances de atingi-lo. Enquanto ele se
contentar em representar Hamlet, tudo irá bem: é um grande ator, está no palco,
e o príncipe da Dinamarca é uma ficção clássica, devidamente rotulada,
comentada, desmitificada, posta em seu lugar – uma ficção-objeto entre todas as
ficcções conhecidas.
Mas eis que ele
se põe a representar aquele que representa Hamlet: de saída, perde a
simplicidade, esta unicidade com que você arbitrariamente o revestiu. O ator,
nele, não era mais que um papel; havel alguém por trás que representaa esse
papael. Mas, se o ator não é mais um verdadeiro ator, a situação em que voc~e
pensava estar em relação a ele vai desaparecer e será a sua própria posição de
espectador que vai lhe aparecer como um papel: o espectador, em você, deixará
de existir, você voltará a ser você mesmo, apesar de voc~e mesmo; em
conseqüência, você não terá mais o recurso de pensar na aparência, enquanto
aparência, a ficção transformar-se-á numa falsa ficção e adquirirá força de
realidade[3].
O Mal terá reintegrado sua subjetividade e aí se
juntará ao Bem, de tal maneira que voc~e n ão mais os saberá distinguir; você
terá sido tão bem traído, que não saberá mais onde está, e terá a sensação de
se haver traído a si próprio. Poderá ocorrer, então, que custe um pouco demais
a lhe voltar a seriedade de uma vida bem orientada, oum então que ela não mais
retorne a não ser insuficientemente, e que assim lhe sejam reveladas, de
maneira reveladora, na vergonha, sua solidão fundamental e sua impostura
essencial.
Aquele que toma em si consciência dessa contradição
explosiva (entre o que ele é para si próprio
e o que ele é aos olhos dos outros) diz Sartre a propósito de Genet,
esse conhece a verdadeira solidão, a do monstro, frustrado pela Natureza e pela
sociedade: vive até o extremo, até o impossível, essa solidão latente,
escondida, que é a nossa e que tentamos esconder no silêncio[4].
A propósito de
Baudelaire, cujos sentimentos “têm uma espécie de vazio interior”, em relação a
“esta impossibilidade profunda de se levar completamente a sério”, e ainda a
nós mesmos que Sartre nos devolve: da mesma maneira que o Justo não pode ser
levado a compreender Genet sem aceitar o Roubo, a Traição e a pederastia, isto
é, sem concebe-las como suas próprias possibilidades, do mesmo modo “se nós
desejarmos entrever as paisagens lunares
dessa alma desolada, devemos lembrar-nos que um homem não é jamais
sendo uma impostura”.
Charles
Baudelaire observou que a morte dos que nos são caros, e geralmente a
contemplação da morte, afeta bem mais a nossa alma durante o verão que durante
as outras estações do ano. A principal razão é que a prodigalidade exuberante
da vida estival faz um contraste mais violento com a esterilidade gelada do
túmulo.
O suicídio é a
única conseqüência existencial do pensamento puro. Um pensamento abstrato, que
não diz respeito à própria existência do pensador – porque sua existência não é
penetrada por seu pensamento – não significa nada, levando Kierkegaard à
conclusão de que a existência, neste caso, é suprimida. Para poder pensar, o filosofo grego deixava
de existir (suicidava-se, em sentido figurado, é claro). O que se precisa é ter
a coragem de ser homem e não um mero fantasma, algo “sub specie aeterni”[5].
J. Climacus é
quem o diz: “Sei que sou um homem e sei
que não compreendi o sistema...” Para o existente, existir é o supremo
interesse e o interesse da existência é a realidade. Ao pensar a realidade, levo-a para o plano da
possibilidade (onde se coloca o pensamento). A única realidade, da qual um ser
existente não se limita a ter um conhecimento abstrato, é a sua própria
realidade: que ele existe. Esta realidade (ou sua realidade ética) constitui o
interesse absoluto de um homem. Eis a questão: buscar construí-la com o
alicerce das experiências e vivências, com as pedras do desejo e da
consciência.
Diz Sartre:
Eu a
recusava... terminantemente, não que minha existência me fosse tão cara; ao
contrário, era por não ligar muito a ela: quanto mais absurda é a vida, menos
suportável parece a morte.
Leonardo Boff
comenta sobre a questão da não-aceitação de Sartre no concernente à
transcendência, sustentado em O ser e o
nada, a questão da fenomenologia do ser humano, descrição de como se
manifesta e de como funciona o ser humano, reside em revelar que ele é um ser
em si, mas que se abre sempre para o outro, que se abre ao mundo, que se abre à
totalidade.
Conclui
Leonardo Boff que Sartre se recusa a aceitar que essa abertura tenha um objeto.
Para Sartre, o ser humano é uma mola distendida para o universo. Tanto a
angústia quanto a grandeza é aceitar-se nesse empuxo para o aberto puro e
simples, sem objeto definido.
Lembremo-nos de
que, desde a infância, Sartre tinha necessidade do sentido, a ausência do
sentido é que se lhe manifestava; a questão sendo, então, como se é possível a
transcendência sem a presença do sentido, faz-se mister construir, na
continuidade do quotidiano das situações e circunstâncias, o sentido, daí
transcender. A ausência de sentido interfere na abertura, mostrando assim não
ter objeto em que se fundamentar. Só a
partir da construção de sentido, o conhecimento[6],
sentir-se possuído de sentido, o sentido habita-lhe, é que se torna possível a
transcendência.
Ser pessoa
implica em responsabilidade e liberdade; ambas implicam uma certa solidão
interior, um senso de integridade pessoal, um senso da própria realidade
pessoal e da capacidade que se tem para se dar à sociedade – ou recusar essa
doação. A fé é questão de liberdade e autodeterminação[7].
E preciso que
Goetz, O diabo e o bom Deus,
decida se ama ou despreza os homens: se ele prefere o valor absoluto de sua
atitude e o significado para ele próprio de seu comprometimento com eles, é que
não cessou de desprezá-los; mas se escolher o amor, será para se preocupar,
desde o princípio, não com o que ele se tornará ao ajudá-los, mas com o que
poderá fazer para ajudá-los.
A
base da alegria do amor: sentir-se justificado em existir. Na verdade, não o somos absolutamente, mas
simplesmente perdemos a nossa solidão, o ser que nos ama nos absorve e
aconchegamos a cabeça no seu seio, como a avestruz enfia a cabeça na areia.
Nossa solidão não existe sem que tenhamos assumido a nossa facticidade
injustificada. Nenhum
amor pode justificar nossa existência.
Temos nas mãos
este objeto surpreendente: uma obra que vai criando o seu autor. Deste,
ignoramos tudo, a não ser esta característica negativa: ele não é, não pode vir
a ser, esse monstro sagrado a quem chamam o Escritor; se ele se encontrar, no
fim do seu esforço, será qualquer pessoa, um homem como os outros: pois a voz
procura um homem e não um monstro. Portanto, não esperem esse gesto que é o
estilo, tudo está em ato. Mas se apreciarem, nos nossos grandes autores, um
certo gosto das palavras, um tom especial da frase, um perfil dos sentimentos e
do pensamentos, leiam Lê Traître: começarão por perder tudo, mas tudo
recuperarão; o seu abandono, a sua procura apaixonada, a sua indecisão, dão a
esta voz um tom inimitável; nesta escrita sem sujeito, a impossibilidade
radical do estilo torna-se com o tempo uma superação de todos os estilos
conhecidos ou se preferirem o estilo da morte dá lugar a um estilo de vida.
Tendo sido a
solidão um problema, não tinha solidão. Quando deixou de sê-lo, descobre-se que
já a possuía e poderia tê-la possuído continuamente. Sabe-se, apesar de tudo,
que uma solidão subjetiva e interior, fruto de um esforço de interiorização,
nunca bastaria. A solidão tem de ser objetiva e concreta. Tem de ser uma
comunhão com algo maior que o mundo, grande como o próprio Ser, de maneira que,
na profunda paz da solidão, encontremos Deus, encontremos a que nos entregar de
corpo e alma.
Faz-se mister
ressaltar que Sartre reduz bastante a dimensão do amor, quando o analisa sob o
prisma da natureza do amor; para Sartre o amor é sexual. No entanto,
encontra-se em Diário de uma guerra
estranha uma anotação:
Desejar ser
amado por outro é desejar “recuperar” seu ser-para-outro, agindo de tal modo
que a liberdade do outro se aprisione a si própria, em face da nudez sem defesa
que somos para ela. (...) No caso do amor, porém, esperamos que o outro
subjugue a própria liberdade, que a faça negar sua liberdade em relação a nós.
(...) No seio da liberdade de quem nos ama e durante todo o tempo em que nos
amar, estaremos em segurança. Assim, fazer-se amar por alguém não é tentar lhe
dar de si mesmo uma imagem lisonjeira, é existir em segurança no seio da sua
liberdade[8].
No sentido de
considerarmos o que envolve a questão do “amor”, da sexualidade, da
sensibilidade em Sartre, faz-se mister considerar a questão da sensualidade em
Kierkegaard: considerar que, passados os primeiros momentos de crise,
Kierkegaard resolveu retomar os estudos universitários e tornar-se professor.
Em 1841, terminou a tese Sobre o
Conceito de Ironia e pregou o primeiro sermão.
Um ano antes,
ficara noivo de Regine Olsen, jovem de 17 anos de idade. Contudo, à medida que
se definia a singularidade, sua vocação – o para quê fora vocacionado -
Kierkegaard começou a perceber que não seria capaz de partir sua vida com outra
pessoa; ao mesmo tempo achava que não lhe cabia o papel convencional de pastor
protestante.
A filosofia de
Hegel opunha-se ao desejo intelectual mais profundo de Kierkegaard: “uma verdade que seja verdadeira para mim”
ou “a idéia pela qual eu possa viver e
morrer”. Por outro lado, o luteranismo então imperante na Dinamarca
também se opunha à sua concepção da verdade filosófica. Kierkegaard sentia que
a Igreja luterana estava por demais burocratizada e afastada da religiosidade
interior, que considerava essencial para o verdadeiro cristão.
O jovem
Kierkegaard, obcecado pelo sentimento do pecado e pela angústia da sensualidade
que o assaltavam nessa época, tornou-se então um “filósofo solitário”, no dizer
de Jean Wahl, e abandonou a religião.
Entregou-se a
uma vida desregrada de prazeres, gastando altas somas em roupas, comidas e
bebidas. Esse período crítico de sua juventude iniciou-se no mesmo ano da morte
de seu pai (1838) e teve relações com a sua crise.
Com o
rompimento do noivado, Regine Olsen sentiu-se ferida em seu orgulho de mulher e
casou-se com Fritz Schlegel, posteriormente governador das Índias Ocidentais
Holandesas.
A consciência e
o amor são, de fato, personalizantes. O homem personaliza-se à medida que se
dirige a um Tu. O instinto despersonaliza e, por conseqüência, coisifica o
outro. Não se reconhece, neste caso, a alteridade de quem está diante de nós,
mas somente sua sexualidade como aspiração do instinto. Isto significa
contradizer a própria humanidade, encontrar-se na esfera do impessoal. Talvez
na esfera do meramente somático.
O erótico em
Kierkegaard se define com outro predicado: o erótico aqui é a sedução. É
curioso: a idéia de um sedutor falta totalmente no mundo helênico. Por isso, de
modo algum é nossa intenção querer falar no helenismo, pois tanto os deuses
como os homens eram, como todos sabem, negligentes em questões de amor; nem
tampouco censurar o Cristianismo, pois somente ele tem a idéia fora de si.
A sensualidade
é igualmente o erótico sensual como princípio, unicamente tem cabido dentro do
Cristianismo. Das palavras de Kierkegaard claramente se deduz que a música é
uma arte tipicamente cristã, representativo do que ele próprio Cristianismo
exclui de si e, por tanto, afirma, isto é o que chamamos o demoníaco. Assim, na
genialidade sensual erótica tem a música seu objeto absoluto, a
representação-expressão há-de se fazer sempre de modo direto.
O homem
religioso kierkegaardiano está também, como o Zaratustra de Nietzsche, além do
bem e do mal porque transcende quaisquer valores morais em nome de uma
categoria sobrehumana.
O estado
estético valoriza o gozo e a temporalidade e é próprio do hedonista ou do
romântico, que obedecem totalmente a imperativos do instante, a desejos e
prazeres que se multiplicam indefinidamente sem outra alternativa que a função
da imediatez. Carpe diem, carpe horam, eis aqui um princípio fundamental do
homem estético, sejam quais sejam suas atitudes e inclinações sensuais. Este
homem vive por inteiro no presente, submergindo-se nele, mas sem aprofundar
nele; ou melhor, perdendo-se a si mesmo nas sucessivas sensações do momentâneo,
que o pervertem como indivíduo.
Para
Kierkegaard, Don Juan e Mozart se interpenetram profundamente até o ponto em
que Don Juan converte Mozart em um compositor clássico e imortal, pela
transfiguração que opera do mito erótico e dos materiais musicais que se
encontravam a seu alcance. Nenhum compositor – diz-nos Kierkegaard – poderia
competir com o gênio de Mozart, porquanto que a idéia e o médio de que se valeu
para a expressão de seu Don Juan, são absolutos e enormemente abstratos. E
acrescenta: “Fausto, de Goethe, é verdadeiramente uma obra clássica, mas
responde a uma idéia histórica, e por isso cada tempo apreciável tem seu
Fausto. Fausto se serve do veículo da linguagem, e como este é um meio muito
mais concreto, se pode concebir por esta razão várias obras da mesma classe
[...]”.
Conforme Gregor
Malantschuk, Introdução à obra de
Kierkegaard:
É
característico em K. o fato de que, para elucidar os estádios estético e ético,
ele escolhe de preferência a relação do homem com o sexual e o erótico. K.,
porém, sabe que o sexual e o erótico constituem o domínio inferior do estético,
do qual a ligação do homem ao temporal surge mais fortemente. O sexual, segundo
a definição de K., é um “extremo exterior da síntese”, ou, ainda, “o mais
exterior do sensível”. Isso importa, também, em que se se quiser descrever o
seguimento o mais inferior do estádio estético, deve-se começar com o
representante extremo do sensível. Este, encontra-o K. na história de D. Juan,
que modifica tendo em vista esse objetivo. Sob um ponto de vista exterior, D.
Juan é o gênio máximo do sensível e é de ressaltar-se que sua aparição só foi
possível depois do advento do cristianismo... D. Juan é o protesto do sensível
contra a exigência do cristianismo, de uma subordinação do sensível ao espiritual.
Surge, ao mesmo tempo, na exposição a afirmativa de que a figura de D. Juan,
como um poder demoníaco, pode ser reproduzida da melhor maneira na música...”[9].
Nietzsche
constata nesta obra, em primeiro lugar, uma dualidade de expressão artística
entre os gregos: as artes plásticas e a música. A primeira ele subsume à
patronagem de Apolo, que nada mais significa para Nietzsche do que a
“deificação do principii
individuationis”, que, por sua vez, constitui também o próprio princípio
do auto-conhecimento do limite e da medida. Esses elementos estão intimamente
relacionados, pois, como esclarece Nietzsche, a exigência moral de comedimento
só pode ser atendida se os próprios limites são conhecidos, o que, portanto,
implica no processo de autoconhecimento.
A música, arte
dionisíaca[10]
por excelência, seria a exteriorização da vontade e simbolizaria uma esfera que
se localizaria “além e aquém de toda aparência”, pois se relacionaria
simbolicamente com “a contradição e com a dor primordiais no âmago da unidade
primordial”. Em oposição à música encontrar-se-ia a linguagem que Nietzsche
define como sendo “órgão e símbolo das aparências”.
A tradição
afirma com toda segurança que a tragédia se origina do coro trágico e que fora,
primitivamente, somente coro e nada mais que coro, pelo que temos a obrigação
de fitar este coro trágico como o verdadeiro drama primitivo, sem nos conformar
com as expressões artísticas correntes, segundo as quais ele não passa de um
espectador idealista ou que tenha de representar o povo perante a região
principesca da cena.
O ápice da
expressão musical da tragédia grega é, de acordo com Nietzsche, o coral[11]
lírico, em especial o ditirambo[12],
a saber, o coral lírico associado ao culto de Dionísio e cantado por um coro
circular composto de aproximadamente cinqüenta cantores.
O caráter da
poesia compreende a vida social. Ao lado dessa música sacralizada corporativa e
da canção popular subjetiva houve então um elemento totalmente móvel, não
associado a nomes: a poesia popular de massa durante as fascinantes demoníacas
dionisíacas, nas quais irrompia toda a embriaguez dos sentimentos superiores.
O ditirambo era
o meio artístico de dominar e domar a condição da poesia popular dionisíaca: o
comedido Apolo venceu e reconheceu até mesmo a música de flauta. Foi uma
vitória sagaz, à custa de concessões. Quanto mais a tragédia se desenvolve,
mais livre fica nela o elemento dionisíaco. Fórmula muito importante: na
tragédia Dionísio renasce e aqui também é Lusos, o deus livre de seus grilhões.
Ou seja, não como uma necessária imitação da natureza, mas, como convém a um
povo de artistas, inicialmente por uma dominação cautelosa da natureza e, pouco
a pouco, a semelhança dos retratos torna-se perceptível, embora sempre com
tintura idealista. Por meio da prepotência da reflexão e do socratismo começa,
então, um atrofiamento do dionisíaco na tragédia. Mas o ditirambo vivencia uma
nova forma de desenvolvimento fora da tragédia, após ter sido retirado dela.
É em função
desse eixo musical, o coral lírico, espinha dorsal da tragédia na interpretação
de Nietzsche, que este gênero artístico se desenvolverá. Todavia, este será
também o seu calcanhar de Aquiles. O fim do coro lírico significará, para ele,
nada menos do que o término desta suprema forma de arte.
Inúmeras
pessoas desejam saber quais são as idéias positivas contidas nos sons. De
acordo com Baudelaire, em seu Os
paraísos artificiais, assim nos diz:
[...]
esquecem-se, ou melhor, ignoram que a música, nesse particular irmã da poesia,
representa muito mais os sentimentos que as idéias; sugere idéias, é verdade,
mas não as contém em si mesma[13].
A criação do
prólogo por Eurípedes, em que já era enunciado, de antemão, o enredo trágico
que iria se desenrolar a seguir, constituía, para Nietzsche, a plena
entronização da lógica e o conseqüente desprezo pelo instinto vital. Esta
inovação significa, em outras palavras, o predomínio espúrio do socratismo.
Vale citar,
enfatizando, na íntegra, uma elucidativa passagem a esse respeito:
Tudo
deve ser consciente a fim de ser belo” é a sentença de Eurípedes paralela à de
Sócrates, “tudo deve ser consciente a fim de ser bom[14].
Para
Kierkegaard, o amor romântico encontra na eternidade presumida que o enobrece e
salva da pura sensualidade uma analogia com o ético. Pois, o que tem relação
com os sentidos é momentâneo e busca a satisfação imediata. Quanto mais o
físico for refinado tanto mais saberá fazer o momento do gozo uma pequena
eternidade. A verdadeira eternidade no amor, que é a verdade ética, salva-o por
isso, real e prontamente, da sensualidade. Porém, para criar esta verdadeira
eternidade é necessária uma determinação da vontade.
O amor
romântico permanece sempre abstrato nele mesmo e quando não pode assumir uma
história exterior é porque já a morte o aguarda porque sua eternidade é
ilusória. O amor conjugal começa com a posse e assume uma história interior. É
fiel como o amor romântico, mas com esta diferença: o amante romântico e fiel
espera, por exemplo, quinze anos e, então, chega o momento da recompensa.
Para poder encontrar alguém como Tu, é
necessário que minha opção seja ditada pelo amor, por Eros, não pelo instinto.
Por esse motivo, segundo Viktor Frankl:
Enquanto minha
escolha amorosa for determinada por algo assim como um modelo inconsciente, uma
imagem fora do eu, ´coisificada´, não pode se tratar em absoluto de amor (...).
Enquanto um eu for ´impulsionado´ para um tu por um isso, não é possível falar
de amor. No amor nenhum eu é impulsionado por um isso: o eu é quem se
´decide´por um tu[15].
Também no amor, e principalmente nele,
o homem se manifesta como “ser-que-se-decide”. São próprios do amor uma função
intuitiva; um conhecimento não especificamente racional, mas nem por isso menos
cognoscivo. Na verdade, quem ama conhece “razões que a razão não conhece”, como
afirmava Pascal. A intuição que caracteriza as operações de Eros é suficiente
para falar de conhecimento, ou melhor dizendo, de uma “significativa função
cognosciva”.
No nosso mundo,
o amor é uma experiência quase inacessível. Tudo se opõe a ele: moral, classes,
leis, raças e os próprios apaixonados. A mulher sempre foi para o homem “o
outro”, seu contrário e complemento. Se uma parte do nosso ser deseja fundir-se
nela, outra, não menos imperiosamente, a separa e exclui. A mulher é um objeto,
alternadamente precioso e nocivo, mas sempre diferente.
Ao
transformá-la em objeto, em ser aparte e ao submetê-la a todas as deformações
que seu interesse, sua vaidade, sua angústia e até mesmo seu amor lhe ditam, o
homem transforma-a em instrumento. Meio para obter o conhecimento e o prazer,
via para atingir a sobrevivência, a mulher é ídolo, deusa, mãe, feiticeira ou
musa, conforme aponta Simone de Beauvoir, mas nunca pode ser ela mesma. Daí que
nossas relações eróticas estejam viciadas na origem, maculadas desde a raiz.
O amor não é um
ato natural. É uma coisa humana e, por definição, a mais humana, isto é, uma
criação, alguma coisa que nós fizemos e que não ocorre na natureza. O amor é escolha. Livre escolha, talvez, da
nossa fatalidade, súbita descoberta da parte mais secreta e fatal do nosso ser.
Mas a escolha amorosa é impossível na nossa sociedade.
Breton dizia,
num de seus mais belos livros – O louco
amor -, que duas proibições impediam, desde o nascimento, a escolha
amorosa: a interdição social e a idéia cristã do pecado. Para se realizar, o
amor precisa quebrantar a lei do mundo. Na nossa época, o amor é escândalo e
desordem, transgressão: dois astros que rompem a fatalidade de suas órbitas e
se encontram no meio do espaço[16].
Em Lulu, uma
novela de Sartre, da antologia de novelas, O muro, Lulu, deitada de costas, introduziu o dedão do pé esquerdo
em uma dobra do cobertor; não era uma dobra, mas um descosturado, o que a
aborreceu: vai ser preciso costurar isso amanhã; continuava, porém, mexendo no
tecido, para senti-lo esgarçar-se.
A onipotência
divina manifesta sua grandeza em tudo que criou, mas não se mostrará grandiosa
também na moderação toda poderosa que permite ao talo de erva ir crescendo
pouco a pouco? As tarefas mais insignificantes estão confiadas à mulher e é por
isso que exigem força. A mulher elege sua tarefa. Elege-a com gosto e sente
prazer pelo fato de que reveste continuamente o homem da força ostensiva.
Acredito que minha senhora é capaz de realizar coisas prodigiosas e compreendo
mais facilmente a maior façanha que eu venha a ler, o bordado fino com que ela
reveste minha existência terrestre.
Os dedos do pé
têm a função de esgarçar o tecido, os dedos da mão direita vão costurar o que
está descosturado. A presença aqui da ironia, referindo-se aos preconceitos e
discriminações de que a mulher é feita para tecer tricot, crochet, costurar.
Sempre se fala da mulher como do bem supremo – no Brasil, o símbolo dessa
mulher submissa, que só realiza os desejos e vontades do homem, mesmo imbecis e
hipócritas, é a Amélia, aliás, há a música -, e isto do modo mais lisonjeiro,
ultrapassando inclusive os limites da fantasia. Tudo o que é grande na vida é
sua obra.
Para
Kierkegaard,
A poesia e a
galanteria estão de acordo sobre isto e a ironia naturalmente é mais galante de
todas, porque a galanteria é a língua materna da ironia e esta nunca é tão
galante como quando considera tudo como um falso alarme. A existência no mundo
da mulher torna-se um cortejo bufão e a ironia é o mestre de cerimônias da
galanteria.
Lulu se casou
com Henri porque ele era mole, porque se assemelhava a um padre. Com quinze
anos, queria levantar devagarinho suas batinas para ver-lhes os joelhos e as
cuecas, parecia-lhe estranho que tivessem alguma coisa entre as pernas.
Imaginava que, com uma mão pegaria a batina, fazendo a outra escorregar ao
longo das pernas, subindo até o lugar em que pensava. Na realidade, nunca se
pode segurar aquilo, se ao menos ficasse tranqüilo, mas começa a mexer como um
animal, endurece, dá-lhe medo, quando fica duro e teso no ar, é bestial – o
amor é nojento.
Amou Henri
porque sua coisinha jamais endurecia, não levantava nunca a cabeça. Lulu
sorria, acariciava-a algumas vezes, tinha tanto medo dela como de uma criança.
Pegava a coisinha entre os dedos, Henri ficava corado, virava a cabeça para o
lado, suspirando, mas aquilo não se mexia, continuava bem quieta em sua mão,
ela não o apertava, permaneciam longos tempos assim e ele adormecia.
A concepção
romântica do amor, que implica em ruptura e catástrofe, é a única que
conhecemos, porque tudo na sociedade impede que o amor seja livre escolha.
Considerando a
“falta-de-ser” – “manque d´être” – tanto em Sartre, ele mesmo, quanto em seus
personagens, especialmente em Goetz, que são o “espelho”, onde ele se reflete,
o que ele “fez-faz” de si próprio, e o que a imagem reflete, como a busca da
liberdade transcendental[17].
O que Sartre
chama de liberdade transcendental, ou seja, a responsabilidade última da pessoa
por si mesma, não só no conhecer[18]
e, portanto, não só na sua autoconsciência, mas na auto-realização de si, em
última análise, não pode permanecer oculta em disposição interior, pelo menos
não para a genuína antropologia que considera o homem concretamente e em sua
unidade real.
O conhecimento
é, ao mesmo tempo, penetração e carícia de superfície, digestão e contemplação
à distância de um objeto indeformável, produção de um pensamento por criação
contínua e constatação da total independência objetiva desse pensamento[19].
Tomando a “intuição” em Sartre a
revelação da continuidade e sua expressão, sendo o fundamento do conhecimento
em Sartre, sob o prisma do alumbramento inicial que re-alumbramos, compreendida
no ponto mesmo em que possibilitou a criação do homem, do indivíduo, do
artista, do escritor, do filósofo, na sua continuidade, só quando consegue
dizer, dizendo, é que se é possível mergulhar nas suas idéias, descobrir que a
arte não é apenas conhecimento, é conhecimento e projeto.
A origem da criação do real é o mais
profundo do artista, do escritor, do filósofo, do individuo, do inconsciente do
indivíduo. O inconsciente não é do individuo, é da sociedade, é da vida. Alguns
autores, como Platão, os românticos e os surrealistas frisavam o aspecto inconsciente.
Os autores contemporâneos, por outro lado, vêm dando uma ênfase muito grande à
consciência, enquanto o aspecto inconsciente é mesmo negado; a obra de arte
sendo vista apenas como resultado do trabalho consciente do autor[20].
Sartre é
suficiente, na solidão anuladora do para-si – não deseja possuir nada por
orgulho metafísico. Não encontrará nenhum conforto nos substitutos
substantivados de si mesmo. Só está à vontade na liberdade, escapando aos
objetos, escapando a si mesmo; só se sente à vontade no Nada, é um verdadeiro
nada embriagado de orgulho e translucidez.
Que significa
conhecer e experimentar meu próprio “nada”?
Não é
suficiente que me desvie com nojo de minhas ilusões, faltas e erros, separar-me
deles como se não existissem e como se eu fora outra pessoa. Uma experiência
sobrenatural de nossa contingência nos dá uma humildade que ama e preza, acima
de tudo, nosso estado de incapacidade moral e metafísica diante de Deus.
Para amar o meu
nada, tenho de amar em mim tudo que o orgulhoso ama quando se ama a si próprio.
Para amar meu nada, tenho de amar-me a mim próprio. O homem orgulhoso ama-se a
si mesmo porque acredita ser digno de amor, respeito e veneração em si mesmo.
Porque pensa que deve ser amado por Deus e pelos homens. Porque se crê mais digno
de ser honrado, amado e reverenciado do que todos os outros homens.
Honrar cada
homem, absolutamente cada homem, é praticar a verdade, é temer a Deus e amar o
“próximo”. Mas, no ponto de vista ético e religioso, segundo Kierkegaard, ver
na “multidão” o tribunal da “verdade” é negar a Deus e não significa exatamente
amar o “próximo”. E o “próximo” é a expressão absoluta e verdadeira da
igualdade humana. Por isso, se cada um amasse verdadeiramente o seu próximo
como a si mesmo, ter-se-ia atingido incondicionalmente a perfeita igualdade
humana.
A busca de
Sartre pelo indivíduo, em suas primeiras obras, revela – dentro do espírito da
oposição kierkegaardiana a Hegel – o absoluto como “a insuperável obscuridade
da experiência vivida[21],
em outras palavras, “a irredutibilidade e a especificidade daquilo que é
vivido”.
O que essa
busca produz não é o indivíduo – pois o verdadeiro indivíduo não se pode captar
senão em sua especificidade e universalidade sócio-histórica como individuo
social – mas a individualidade e a particularidade como tais.
Todo aquele que
ama verdadeiramente o próximo exprime incondicionalmente a igualdade humana.
Todo homem que, confessando a fraqueza e a imperfeição do seu esforço,
apercebe-se não obstante que sua tarefa consiste em amar o próximo, apercebe-se
também que consiste a igualdade humana. Amar o próximo é renunciar a si, amar a
multidão ou pretender amá-la é fazer dela o tribunal da “Verdade”, é o caminho
para o poder material, o caminho para todas as vantagens temporais e mundanas –
e é ao mesmo tempo a mentira, pois a multidão é a mentira.
O que está em
discussão, e nesse âmbito faz-se mister a escolha ainda mais radical que
unicamente a liberdade contingente, imanente, é a transcendentalidade e a
liberdade, ou seja, ambas se exercem no interior da história. Diz-nos Karl
Rahner:
O homem possui sua essência eterna como antecipada
e entregue a ele em sua liberdade e reflexão, à medida que experimenta, sofre e
atua sua história[22].
O que irá
decidir? Sua solidão é total, pois que Deus está morto e ele não poderá nem
mesmo resolver-se a ajudar os homens, dividir com eles a consciência de uma
condição que lhes é comum.
A solidão real
coloca-nos sempre concretamente em presença de uma possibilidade não realizada
e até irrealizável de “perfeita solidão”. A verdadeira solidão tem como um de
seus elementos integrantes a insatisfação e incerteza que nos vêm do fato de
estarmos em face de uma possibilidade não realizada.
No próprio
momento em que atinge o desespero, Goetz descobre que Nasty também está só –
“... eu, que odeio a mentira, minto a
meus irmãos para lhes dar coragem de se deixarem matar, numa guerra que odeio”
– e sem recursos contra sua solidão, sua derrota e sua angústia.
Neste homem
que, pela primeira vez, sofre justamente por se ver separado dos outros homens,
Goetz percebe, enfim, que a solidão não é privilégio seu, que não é um mal seu,
mas a condição que deve enfrentar, permanentemente, aquele que se dispõe a
relacionar-se com os outros. “Eu assumo
o comando do exército”.
É na história
que o homem deve realizar a sua salvação, à medida que a encontra ofertada na
história e nela a acolhe. Se o sujeito da salvação é histórico, a própria
história é a história dessa salvação – ainda que ocultamente e sempre a caminho
de sua última e definitiva interpretação.
O historiador
está sempre no nível da facticidade. Contudo, a ambigüidade profunda da
pesquisa histórica está no fato de que ela vai datar esse acontecimento
absoluto, isto é, recolocá-lo dentro de perspectivas humanas, quando ele é o
em-si inumano da realidade humana, sua própria facticidade ou fato que a
realidade humana não é seu próprio fundamento.
A
responsabilidade de tecer a rede, deixando os vazios, que são os objetivos do
peixe. O “tecimento” com espírito de busca da verdade, de seriedade e
consciência. Nesta trama de informações e dados estão a proximidade e o
encontro dos homens, da humanidade; estão a resposta e a indagação de uma
dificuldade, de uma esperança, de um sonho, da busca do verbo amar. Empreendimento
difícil, não apenas no colher de informações, dados, pormenores e detalhes, mas
escrever, tecer as idéias com coerência, harmonia, o encontro da obra e o
processo histórico[23].
O ser humano
luta para obter resultados práticos e tangíveis – a questão da busca de
significação perpassa do início ao fim As
Palavras, aliás, a obra sartreana, tudo o que deseja é sentir-se, ter um
significado, algo que não só justifique a existência, mas seja fundamento – e a
lucidez, por mais vacilante que seja (a situação para o ser humano, para
Sartre, é um pouco acidentada) tem certamente mais peso que tantas denúncias
sutis tão soberbamente seguras delas mesmas.
O ser humano
não questiona se os sofrimentos são reais ou representados: é uma idéia que não
lhe ocorre. Mas se ele não quer arrebentar, é preciso que ande, que seja livre
e responsável por si mesmo, e acontece que a seus olhos isto é suficiente para
justificar o esforço que faz para continuar a andar...
Neste sentido,
faz-se mister aprofundarmos no tema da morte em Sartre e em São Paulo, para
compreendermos com transparência o tema do misticismo[24].
A morte não é
algo de exterior a nós. É um limite que nos define em totalidade acabada. “A morte transforma a vida em destino”
(Maulraux). Que eu não saiba quando morrerei, que eu possa esperar não morrer
nesta ou naquela situação, ainda que desesperada, nem por isso me é impossível
conceber-me nos limites de uma totalidade finda.
O homem marcha
para a morte[25],
e ele sabe muito bem disso. Este saber mesmo constitui parte do seu morrer e de
sua morte, pois precisamente aí está a diferença entre a morte do homem e o
extinguir-se do animal, pois somente o homem existe como aquele que sempre
inevitavelmente se confronta com seu fim, com a totalidade de sua existência,
com seu fim no tempo, possuindo existência votada a este fim.
Posso dar-me a
liberdade de me não levantar essa pergunta dos outros – o morto foi excluído
das coisas que fazemos aqui no mundo. Mas o que ocorre com aquele que assim
desapareceu? -, mas não posso a ela esquivar-me com referência a mim mesmo,
porque sei muito bem que devo morrer.
Como falar em
totalidade acabada, se o homem se define precisamente pelo projeto, pelo
não-acabamento? Como ser-para-a-morte, para-o-fim, se o “fim” não existe? Falar
de “fim” para o homem é ontologicamente inadequado. Esta a objeção de Sartre.
Em O ser e o nada, ele se recusa
definitivamente a entrar em linha de conta com a morte:
“escapando a
morte aos meus projetos, porque é irrealizável, escapo eu à morte no meu próprio
projeto (...) não há qualquer lugar para ela [a morte] na minha subjetividade”
Sartre, jogando
com um conceito de morto de algo exterior a nós, adota um “truque” no gênero do
de Epicuro quando este refletiu que o medo da morte era absurdo, já que enquanto
vivos a morte nos não atingiu ainda, e não devemos conseqüentemente temê-la; e
quando mortos já a não podemos recear[26].
Epicuro e
Sartre esquecem ou subestimam que é de dentro da vida que nós podemos
pensar-nos para depois da morte, que é do lado de cá que nós podemos pensar
seja o que for, e, portanto, também o lado de lá, que um raciocínio para o
depois da morte tem de ser estabelecido, paradoxalmente embora, enquanto
estamos vivos, precisamente porque é o nosso raciocínio, que em suma, toda a reflexão
sobre a morte é ambígua, porque nos implica a nós vivos para quando estivermos
mortos.
Porque a morte
não encerra a vida, já que o homem é constante pro-jeto, Sartre conclui pelo
“absurdo” da morte e simultaneamente da vida que é uma “paixão inútil”:
“Se nós temos
de morrer, a nossa vida não tem sentido, porque os seus problemas não recebem
qualquer solução e porque até a significação dos problemas permanece
indeterminada”.
O fato de hoje
a história da salvação cobrir toda a história da humanidade não constitui
nenhum problema especial para a interpretação normal do cristianismo. A
história universal do mundo significa história da salvação. A auto-oferta de
Deus, em que ele se comunica absolutamente à totalidade do homem é per definitionem a salvação do homem.
Ela constitui a realização plena e acabada da transcendência do homem, na qual
este transcende para o próprio Deus absoluto.
Referindo-se a
Paulo, não só em Rm se detecta o sentido teológico do termo morte. Em Ef 2,1-6 a situação-pecado
se descreve como um estarem mortos.
Se a
ressurreição por e em Cristo é algo mais (muito mais) que a simples
revivescência (v. 42-45, 52-53), a morte por e em Adão pode ser algo mais que o
simples desenlace. Sendo este o caso, em 1Cor 15-2-22 se estaria antecipando –
só veladamente e de passagem, pois o propósito aqui é outro – uma mensagem que
o apóstolo emitirá mais nítida e diretamente em Rm 5-12-s, a saber: a
solidariedade de todos em um (Adão) e a incidência desse um sobre todos, na
situação de morte, só são superáveis por outra solidariedade e outra incidência
paralela, mas de sinal contrário, a de todos em Cristo.
Sartre,
analisando as relações entre Hegel e Kierkegaard, afirma:
“O que opõe
Hegel e Kierkegaard é que para o último o trágico de uma vida é sempre
superado. O vivido se dissolve no saber – e acrescenta Sartre - Para
Kierkegaard, pouco importa que Hegel fale de “liberdade para morrer” ou que
descreve corretamente alguns aspectos da fé, o que ele critica no hegelianismo
é o fato de negligenciar a insuperável opacidade da experiência vivida. Não é
somente, nem sobretudo no nível dos conceitos que está o desacordo, mas antes
no da crítica do saber e da delimitação de seu alcance”.
Deus escolheu a
essência de Adão. Sartre, na Quarta Parte de O ser e o nada, Ter, fazer e ser, diz:
“... a morte
cristã provém de Deus: ele escolhe nossa hora; e, de modo geral, embora seja
eu, temporalizando-me, quem faça com que haja minutos e horas em geral, sei
claramente que o minuto de minha morte não é estabelecido por mim: as
seqüências do universo o determinam”[27]
A morte não se
esgota no fenômeno físico do desenlace; é, ao contrário, a manifestação visível
da perdição; denota não só simples fato biológico, mas (como seu antônimo,
“vida”) uma situação teologal e o estado de ruptura com Deus, que inclui a
não-salvação.
Lembremos de “Meu pecado original é a existência do
Outro”, de Sartre.
Partindo da
“solidão ontológica do Para-si”, a existência do Outro é estabelecida às custas
de identificar objetividade com alienação e estipulando a insuperabilidade
absoluta dessa alienação.
“Meu pecado
original é a existência do Outro. (...) Capto o aspecto do outro exatamente no
centro de meu ato como a solidificação e alienação de minhas próprias
possibilidades. (...) minha possibilidade torna-se probabilidade, que está fora
de mim. Desse modo, ser-visto constitui-me como um ser indefeso para uma
liberdade que não é minha liberdade. (...) essa escravidão não é resultado
histórico – passível de ser superado. Meu ser para outros é uma queda no vácuo
absoluto em direção à objetividade. A vergonha é o sentimento de um pecado
original. (...) “Caí” no mundo no meio das coisas e necessito da mediação do
Outro para ser o que sou. (...) pelo fato da existência do outro, existo em uma
situação que possui um fora e que, exatamente devido a esse fato, tem uma
dimensão de alienação que não posso de modo algum remover da situação, tanto
quanto não posso atuar diretamente sobre ela. Esse limite a minha liberdade e,
como vemos, postulado pela pura e simples existência do Outro. Assim, o
significado mesmo de nossa livre escolha é causar uma situação que expresse
essa escolha, situação essa cuja característica essencial é ser alienada; isto
é, existir como uma forma em si para o Outro. Não podemos fugir a essa
alienação, desde que seria absurdo pensar em existir de outro modo do que em
situação”[28].
Como
se poderia sequer conceitualizar a possibilidade de uma luta social contra a
objetividade reificada, se é atribuída à reificação à dignidade ontológica de
“solidificação” e petrificação, tal como contida no “significado profundo do
mito da Medusa”?[29]
Somos pessoas
que inevitavelmente temos de exercer nossa liberdade subjetivamente metidos em
situação que se acha co-determinada por objetivações da culpa, e de forma tal
que essa co-determinação é parte permanente e inevitável de nossa situação.
No sentido de
uma compreensão mais transparente desta questão, faz-se mister vê-la à luz da
“bastardia”, tema de O diabo e o bom
Deus, ou melhor, toda a dramaturgia sartreana, “o teatro da bastardia”[30].
A tentação do Bastardo[31]
é de conquistar seu ser no nível de seu mal:
condenado pelos outros, ele tornará essa condenação implacável, condenando-se a
condená-los todos. Faça o que fizer, será cúmplice deles e se danará,
efetivamente, por esta pretensão de ter sobre eles o ponto de vista de Deus.
O termo “mal”
pode ser usado em um sentido amplo e em um sentido estrito. O sentido mais
amplo cobre tudo o que é negativo e inclui tanto destruição quanto alienação –
a condição existencial do homem em todas as suas características.
Uma das razões
para o uso da palavra “mal” nesse sentido mais amplo é o fato de que pecado
pode aparecer em ambas as funções, isto é, como a causa de autodestruição
significa pecado aumentado como resultado de pecado. Em linguagem clássica,
Deus pune o pecado lançando o pecador em mais pecado. Aqui pecado tanto é a
causa do mal quanto o mal em si.
A perda do eu
como primeira marca básica do mal é a perda do centro pessoal determinante; é a
desintegração do eu centrado, pelos impulsos destrutivos que não podem ser
reduzidos a uma unidade. À medida que estiverem centrados, esses impulsos
constituem a pessoa como um todo. Se eles se lançam uns contra os outros,
dividem a pessoa. Quanto mais avança a destruição, mais o ser do homem enquanto
homem é ameaçado. O eu centrado do homem pode se desintegrar e, com a perda do
eu, o homem perde seu mundo.
Fingia-se
ignorá-lo, desconfia-se dele, mantinha-se-o em quarentena, impunha-se-lhe um
papel: mais eis que ele se dá um outro e é o do Juiz solitário. Se ele
preocupava os outros, era à medida que re-introduzia entre eles a negatividade
da consciência, seu poder de contestação: mas a moral dos outros, que é uma
moral do ser, o agarra por trás e o mistifica no próprio momento em que ele crê
libertar-se dela, voltando contra eles seu próprio desprezo.
A verdade do
Bastardo está nessas coletividades bastardas; a verdade de Goetz está na luta
dos camponeses contra os barões e Genet (mais próximo dos oprimidos, pelos seus
anos de prisão, suas atribulações infinitas e seus duros sofrimentos, que os
outros bastardos sartreanos) pode encontrar hoje a sua verdade na revolta dos
Negros contra essa vergonha de serem negros que lhes inculcou de início o
branco.
O Bastardo, uma
vez que assumiu sua bastardia sem tentar dissimulá-la, está ameaçado de se
reconhecer, cedo ou tarde, nesses homens que, como ele, foram reduzidos à
condição subumana, presos a seus próprios limites.
Goetz era
bastardo em relação a um Mundo estático, considerado por ele em bloco, visto de
fora, e assim, não tinha noção da realidade, ao mesmo tempo em que se achava
impotente. O desequilíbrio, o conflito não era mais senão entre ele e ele
próprio – a propósito desse Mundo imaginário.
Le diable et le bon Dieu c´est l´histoire d´un
individu e la volonté de cet individu est tout naturellemente le moteur de
l´action, non comme particulier, mais comme représentant – irrégulier certes –
d´une classe privilégiée qui a fait l´histoire et que l´histoire défait[32].
Eis que ele
aceita penetrar no mundo real, de nele se comprometer, de tomar partido nas
lutas que o dividem: daí em diante, o mundo se anima, adquire uma dimensão
histórica; não se trata mais de passar, em sua superfície indiferenciada, uma
cólera que às vezes arranha a esmo, mas de aí reconhecer as forças presentes e
de compreender que os nobres puderam tornar-se “tochas terrestres”.
Com relação ao
fato de os camponeses, em O diabo e o
bom Deus, terem sido mantidos na escravatura e que, por sua vez, essa
situação não é estranha ao fato de eles não terem nada de sedutor nem de amável (grifo nosso) diz Goetz: “Povo de vermes e de larvas, agradeço a Deus
por me ter mostrado vossas almas...”.
O verdadeiro
“sujeito”, o sujeito agente, o que não está condenado a ver todos os seus atos
se transformarem em gestos, é aquele que consegue se despojar de seu “eu”,
ultrapassar nele qualquer “característica”, qualquer preocupação de ser, seja o
que for, qualquer tentação de se deixar apreender por uma natureza qualquer.
Le diable et le bon Dieu ne satisfait pás aux
canons brechtiens du theater épique, mais il tente de satisfaire tout de même à
l´exigence de ce théâtre qui est, selon Sartre, de montrer “l´homme tel qu´il
est changé par lê monde et lê monde tel qu´il est changé par l´homme”[33]
Como ser
história inserido em comunidade, o homem está sempre relacionado com outros,
relacionado com sua história e experiência também no que respeita à salvação e
existência individual. Seria concepção ingênua da história individual da fé se
pensássemos que ela não é momento e parte, em sentido teológico verdadeiro e
muito radical, da real história da revelação.
Será ser-ético
“estar sob a lei”? Poder-se-á asseverar da lei ética que “é uma vez por todas”?
Existirá oposição entre liberdade como “ipseidade” e a lei? Haverá leis que
valem sempre e em todo lugar para todos?
Se dizemos que
o sujeito atuante se realiza no mundo, entende-se automaticamente que a
consciência da ligação à objetividade de sua própria essência acompanha o homem
em seu próprio operar. O próprio homem é essa consciência, desde que existe
como cogito. Ela impede o homem de
afirmar sobre sua existência o que arbitrariamente lhe ocorrer, ou aquilo que
determinado governo ou determinada tradição quer fazer julgar “verdadeiro”.
O que o homem é
deve ser conhecido. A mesma consciência desempenha um papel quando o homem age,
a saber, quando realiza as factíveis possibilidades de sua existência como
projeto.
Se nos
realizamos pelo fato de que o sujeito-como-volo (sujeito-como-vontade) funda o
ter-que-ser do homem, e o sujeito-como-cogito contém o ser ligado à
objetividade de sua essência, sentimo-nos – pela consciência de que aqui se
trata de um e mesmo sujeito – na obrigação de dizer que o ser do sujeito existente
é um “ter-que-ser-na-ligação-à-objetividade-de-sua-essência”.
Se é verdade
que o sujeito-como-existência inclui essencialmente “destinar-se-a-
outros-sujeitos-como-existência”, o homem, pela objetividade de seu próprio
ser-homem, vê-se obrigado a nunca destruir a subjetividade de outros.
Normas gerais
da ética surgem na história e sua verdade “acontece” na liberdade que é o
sujeito-como-cogito. Se num lugar determinado não “acontece” e não é
“executada” a verdade de uma norma geral da ética, cumpre-nos asseverar que
essa norma não existe aqui e então.
No tocante à
moral da alteridade que Sartre reproduz de Levinas quase que palavra por
palavra a grande idéia da Transcendência do outro, do cuidado com o outro a
preceder o cuidado consigo, do investimento imemorial de si pela idéia do
infinito, portanto do outro – resumindo, da exigência ilimitada de justiça que
caracteriza o sujeito pensante, o sujeito que age.
Na
Transcendência de Sartre, o para-si procura identificar-se com o em-si, a fim
de encontrar um fundamento para a sua falta de fundamento, “falta de
fundamento” entendido, obviamente, como o para-si; segundo Sartre, teria achado
realmente o seu fundamento, ou melhor, seria seu próprio fundamento, se fosse
alcançada a identificação do para-si com o em-si, ou seja, se o homem pudesse
realizar em sua existência a contraditória definição de Deus.
Neste sentido,
seriam necessárias a análise e interpretação de alguns questionamentos, mas o
que de perto interessa é que “a minha queda original é a existência do outro”[34],
ou seja, a vergonha, presente neste sentimento, implica a apreensão de mim
mesmo como natureza. Pelo olhar, vivo a solidificação e a alienação de minhas
possibilidades. Se sou minhas possibilidades, não posso deixar de sê-las; mas
através do olhar do outro, elas são
alienadas.
[1] JEANSON, Francis. Sartre. José Olympio
Editora. 1987. pág. 126
[2] Se Sartre pôde com autenticidade e compromisso
pensar no sentido, na significação, o desejo da totalidade, é que se sentia
carente, faltava-lhe o sentido, a sua condenação era a busca eterna dele, ao
olhar de outras consciências e outras vivências.
[3] Esse é precisamente o resultado que Genet visa
quando ele se obstina em
Les Bonnes e sobretudo em Les Négres , em lembrar
que os atores não são senão atores interpretando papéis imaginários. A seus
olhos, é o único meio de superar o
teatro no sentido da realidade que ele escolheu como objeto e de prender numa
armadilha esta realidade, representando o jogon da representação até
transforma-lo numa apresentação efetiva. É o Mestre das Aparências e dos
arremedos, traindo seun próprio domínio para aí garantir o triunfo da
realidade. A consciência do espectador é, ao mesmo tempo, estimulada para
contestar o espetáculo como divertimento fascinante e assumi-lo como aspecto de
seu próprio mundo; por essa recuperação de sua liberdade, de sua negatividade,
ela é colocada em situação de se reconhecer nas atitudes e nos personagens que
o autor lhe propõe. Finalmente, ela se compromete.
[4] JEANSON, Francis. Sartre. Trad. Elisa Salles.
Rio de Janeiro. José Olympio Editora. 1987. págs. 92-93.
[5] Lembremo-nos de “É preciso ter coragem,
Diadorim”, de Rosa, em
Grande Sertão : Veredas.
[6] Para Bérgson, segundo Paulo César Lopes,
Utopia cristã no sertão mineiro. Uma leitura de “A hora e vez de Augusto
Matraga”, de Guimarães Rosa, “o conhecimento é a necessidade pragmática da Vida
que divide o mundo em duas partes: consciente (aquilo que se precisa conhecer
para atuar no mundo) e inconsciente (aquilo que, se conhecido, de alguma
maneira irá atrapalhar a conservação da Vida em seu estágio presente)”.
[7] Não é fácil trancar Sartre dentro de alguma
coisa, colocarem-lhe algemas e correntes, muito menos dentro da cela da
excelência literária intemporal. Sua visão de engajamento do escritor é uma
visão total: “Se a literatura não é tudo, ela não vale nada. Isso é o que quero
dizer com “engajamento”. Ele definha se é reduzido à inocência, ou a canções.
Se uma frase escrita não ecoa em todos os níveis do homem e da sociedade, então
não tem sentido algum. O que é a literatura de uma época se não a época
apropriada por sua literatura? (...) Deve-se aspirar a tudo para ter esperança
de fazer alguma coisa”.
[8] Sem a consciência de que “o desejo de amor só
vive de entrega”, não se é possível a idéia de salvação.
[9] KIERKEGARD,
Söeren. Textos selecionados por Ernani Reichmann. Editora Universidade Federal do Paraná.
[10] Platão, no Fedro, pela boca de Sócrates, diz
que existem duas espécies de loucura, sendo uma nascida das enfermidades
humanas e outra provocada por um impulso divino. Sobre a dita loucura provocada
por impulso divino que aqui nos interessa Sócrates a divide em quatro
categorias: a mântica regida por Apolo, a mística sob os auspícios de Dionísio;
a poética guiada por Musas e a loucura erótica imposta por Afrodite e Eros.
Como afirma Homero, Dionísio é o deleite dos mortais, o doador de muita alegria
polygethés; é o nascido da mortal Sêmele com o deus todo poderoso, Zeus; é o
banido da planície sagrada de Nisa por Licurgo. É o pequeno Dionísio fugitivo e
amedrontado que caiu no colo de Tétis, nas ondas profundas do mar. A
familiaridade de Dionísio com os povos da Ásia é registrada pelo próprio
Eurípedes, nas Bacantes. Heródoto o vê ligado especialmente aos povos semíticos
(Assírios e Árabes). O mais completo testemunho do culto dionisíaco o texto
d´As Bacantes é ainda hoje uma obra de impacto poético impressionante. Nele,
Dionísio, mesmo sendo filho de uma mortal, é fonte de poder que invade e
liberta a humanidade dos fantasmas que a impedem de encarar com naturalidade um
desejo inexplicável e arrebatador de ultrapassar limites. O devoto de Dionísio
experimenta a deposição da sua própria identidade e alcança um caminho que o
leva para uma outra realidade. Dionísio, assim é o deus que faz brotar.
“Brotar” no sentido vegetal propriamente dito, no sentido psíquico/espiritual e
ainda no sentido biológico/sexual. Aqui nesta função não podemos nos esquecer
de Perséfone, a mãe do Dionísio Zagreu, a ctônica rainha dos mortos. O cenário
do mundo subterrâneo introduzido pela amada de Hades como mãe de Dionísio
faz-nos lembrar a energia invisível que faz brotar a semente enterrada como
morta e ainda as folhas de ouro provenientes de sepulturas do sul da Itália, da
Tessália e de Creta. Tudo isso se relaciona com o mistério da vida e da morte,
com o mistério que envolve o mito de Dionísio Zagreu, deus filho de deus,
aquele capaz de proporcionar o encontro com a mais pura força vital e de
garantir uma vida no além aquele que morto, renasce.Plutarco analisa o culto
desenvolvido em Delfos como um culto Apolíneo-Dionisíaco regido por dois
princípios, o princípio da luz e o da treva, os quais, de certa forma,
estabeleceriam a concepção de um dualismo cósmico: Apolo representa a luz
celeste e Dionísio a luz terrestre, ou melhor a luz que surge das trevas. Ambos
estariam ligados a uma concepção do sol como fonte de energia. Dionísio seria a
energia solar encarnada no mundo animal e vegetal. Luz que das profundezas faz
brotar a vinha que dá o vinho, o produto mágico e sagrado capaz de criar a
embriagues. Dionísio é o deus do pinein Kai binein (beber e beijar), deus da
fertilidade, deus das forças instintivas. A ele são dedicadas as procissões
falofóricas e todo o tipo de ritual que exalta o poder do jorro espontâneo e
das manifestações repentinas e brutais. Por outro lado, se Dionísio representa,
frente ao princípio solar celeste de Apolo, o princípio solar terrestre, ele
representa da mesma forma o princípio cósmico feminino que gera, faz brotar e
nutre. É o deus que, antes de ser um personagem mitológico pensado como uma
entidade antropomórfica, é uma concepção teológica da encarnação da força
divina em dois princípios misturados: o masculino semeador e o feminino
gerador.
[11] A ênfase no coro como a manifestação artística
máxima da tragédia tampouco foi uma apreciação completamente original de
Nietzsche. Schelling já em seu texto de 1802/3, Filosofia da arte, o denominava
“a mais magnífica invenção” das artes.
[12] A respeito do ditirambo consultar KSA I, p.
61; já sobre o aniquilamento do indivíduo pela música ver KSA I, p. 108.
[13] BAUDELAIRE, Charles. Os paraísos artificiais.
O ópio e o poema do haxixe. Trad. Alexandre Ribondi, Vera Nóbrega e Lúcia
Nagib. L&PM. 1982. pág. 62.
[14] Friedrich
Nietzsche, KSA I, pág. 83.
[15] FRANKL, Peter. A antropologia como terapia. Trad. Thereza
Christina Stummer. Paulus. 1999.
pág. 68.
[16] Nalgum texto, de cujo título não me lembra,
mas o que escrevera ficara gravado na memória, pois naquele momento estava
sentindo muito forte o que é isto o encontro de uma mulher e um homem na
intimidade, dissera que o encontro do homem e da mulher na intimidade
eleva-lhes e os transforma em desejo de amor, de unicidade, e esse só vive da
entrega ao outro. Há coisas que se dizem e outras que não se dizem. Assim,
experiencio e vivencio na minha intimidade com a minha senhora. Aliás, alguns
intelectuais, dentre eles o Newton Vieira, perguntou-me porque a chamo de minha
senhora, se isso tem alguma relação com o fato de Sartre se dirigir a Simone
por “senhora”, respondi-lhe ser bem provável, nalguma instância, mas em verdade
é o respeito, o desejo de amor por ela, e o que de uns dez anos para cá
aprendera a refletir sempre: “Sem respeito, não se realiza o Verbo Amar”.
[17] Se aproximarmos mais o texto de uma leitura ao
nível da espiritualidade, referimo-nos a O diabo e o bom Deus, é a primeira vez
em que Sartre
discute e analisa a espiritualidade, o misticismo.
[18] Assim nos diz Sartre, em Diário de uma guerra
estranha: “... quero possuir o mundo enquanto conhecimento. (...) Conhecer é
apropriar-se, exatamente como, para o primitivo, conhecer o nome secreto de um
homem era apropriar-se desse homem e reduzi-lo à escravidão. Essa posse
consiste essencialmente em captar o sentido do mundo por meio de frases. Mas
para isso a metafísica não é suficiente; é necessária também a arte, pois a
frase que capta só me satisfaz se ela própria for objeto, isto é, se o sentido
do mundo aparecer nela, não em sua nudez conceptual, mas através de uma
matéria”.
[19] SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Ensaio de ontologia
fenomenológica. Trad. de Paulo Perdigão. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. pág. 709.
[20] Guimarães Rosa, conforme Paulo César Lopes, dá
o testemunho de como o inconsciente ajudou-o sempre em sua produção, mas, por
outro lado, basta dar uma olhada em seus manuscritos para vermos como ele
trabalhou essas intuições que o inconsciente lhe enviava. “O importante é
traduzir o sonho”
[21] Para utilizarmos uma expressão posterior que –
considerando retrospectivamente o empreendimento existencialista – resume bem o
significado da preocupação inicial de Sartre (Method, p. 9).
[22] RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé.
Introdução ao conceito de cristianismo. Trad. Alberto Costa. 2º ed. Paulus.
1984. pág. 56.
[23] Conforme Caminho de Luz nas Trevas, publicado
por E Agora?, tablóide de Geraldo Magela, Curvelo. Assim procurei definir a
responsabilidade do historiador diante de sua época, espelhando-me na
experiência da “faca” tirando o osso da carne no açougue, na vivência das
letras.
[24] “Místico”
é uma categoria que caracteriza o divino como estando presente na
experiência. O místico é o coração de toda religião como religião. Uma religião
que não possa dizer: “O próprio Deus está presente”, se converte num sistema de
regras morais ou doutrinais que não são religiosas, mesmo que sejam derivadas
de fontes originariamente revelatórias. O misticismo é, em certa medida, embora
não totalmente, uma tentativa de auto-salvação, ao tentar transcender todos os
reinos do ser finito para reunir o ser finito com o infinito. Uma verdadeira
união do místico com Deus nunca pode ser atingida. Mesmo que fosse atingida,
não superaria a alienação da existência ordinária.
[25] Pensemos exclusivamente em Com a morte na
alma, último tomo de Os caminhos da Liberdade.
[26] “A história só pode ser compreendida como a
retomada e a assunção dos monumentos. Só há história quando há a assunção do
passado e não pura ação causal dele”.
[27] SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Ensaio de ontologia
fenomenológica. Trad. de Paulo Perdigão. 11º ed. Vozes. Petrópolis, 2002. pág.
660.
[28] MESZAROS, Istvan. A obra de Sartre. Busca da
liberdade. Trad. Lólio Lourenço de Oliveira. Editora Ensaio. São Paulo. 1991.
pág.
[29] O fato de que o mito da Medusa tenha sido
virado “do outro lado” para ajustar-se à teoria (pois originalmente não é o
mítico olhar do Outro sobre mim que causa minha petrificação, mas sim meu
próprio olhar proibido para a Medusa) não nos deve preocupar demais. Muito mais
importante é o uso geral feito das relações simbólicas apresentadas. Em última
análise, todas elas se prendem à questão da apropriação: o individualismo de
Sartre o impede de conceber a apropriação senão em termos simbólicos, uma vez
que uma plena apropriação em relação ao indivíduo isolado é claramente
inconcebível.
[30] O teatro de Sartre pode ser compreendido em
sua totalidade, como um teatro da bastardia. Pois ele trai o Espectador,
fazendo-o aderir à denúncia de sua própria impostura, trai a Sociedade, apresentando-a
a ela própria como uma sociedade em decomposição e, por fim, trai o próprio Teatro, constrangendo-o a morder a
cauda. O teatro, contestando a Realidade, e se contestando a si próprio, em
nome da Realidade, não será uma das melhores maneiras de provocar a sociedade a
se infligir, ela mesma, sua própria contestação”.
[31] A sabedoria do Bastardo é justamente ter
compreendido que a condição humana se caracteriza por esta dupla e radical
exclusão: nenhum refúgio do lado do Pai, nenhum álibi do lado do Espírito;
nenhuma possibilidade de evasão, nem “para trás” (no sentido da absoluta
consistência, do ser, em si, nem “para frente” (no sentido da absoluta
transparência, em si, de uma consciência pura).
[33] Idem, idem.
[34] A questão de “o meu “pecado - aspas nossas - original são os outros” e a “ minha
“queda” original é a existência do outro”, por vezes é uma questão de tradução, em que contexto e
situações a tradução é feita. No Antigo Testamento Adão representa a humanidade inteira. Ele é
considerado igualmente como o pai comum da humanidade, visto que antes dele
“ainda não havia homem”, e sua mulher é “a mãe de todos os viventes. Em razão
de seu pecado, Adão é colocado numa situação, que é o mundo das oposições –
entre Deus e homem, entre natureza e homem, entre homem e homem. Doutro lado,
pelo contraste entre estas conseqüências do pecado e a descrição do paraíso,
consta com clareza que o conjunto da humanidade perdeu também qualquer coisa em
conseqüência do pecado. No Novo Testamento,
numa passagem dos evangelhos sinóticos (Mc 10,1-11 = Mt 19,1-9), Jesus
faz alusão a Gen 2,24, quando prescreve a indissolubilidade do matrimônio “como
existia no início”. Entre a situação do início do Gênesis e a situação que
Jesus nos expõe nos evangelhos sinóticos, existe a legislação imperfeita do
matrimônio, necessária
”por causa da dureza dos vossos corações. A oposição vagamente indicada entre a
“queda” e a redenção aparece claramente em primeiro plano, onde S. João e S.
Paulo lembram o relato do Paraíso “do Gênesis. Ambos estabelecem um contraste
vigoroso entre Cristo e aquele que se achou na origem do pecado, o demônio
segundo S. João, Adão segundo São Paulo. Os termos que S. Paulo usa são incontestavelmente
os mais veementes, e continuam a ressoar claramente através de toda tradição. A
questão da importância radical da liberdade para a realização definitiva do homem, posta à luz em tudo o
que viemos expressando, não limita, é claro, a soberania de Deus com referência
a essa liberdade.
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