CASCATAS DE CRISTALINAS ÁGUAS - Manoel Ferreira
Sonhos...
Águas e
estrelas. Abro as portas de meu bosque verde e sombrio, desse bosque com cheiro
de abismo onde corre água, cristalinas águas, e nalgum lugar, por que citar o
nome, quem o conhece, não esquece jamais?, estas águas cristalinas descem de
cascatas, nalguma gruta águas pingam de “estalactites que descem/estalactites
que sobem”. Aqui, junto à janela, madrugada, três e meia da manhã, o ar é mais
calmo, de onde imagino as águas seguindo o curso nos rios de todos os lugares,
em todos os lugares do mundo, exceto no deserto onde não é lugar dela.
Estrelas, estrelas, águas correndo em rios.
As palavras
estalam entre os dentes em estilhaços frágeis? Por que não me vem a chuva
dentro? Quero ser água. Purificai-me um pouco e terei a massa desses seres que
se guardam atrás da chuva.
A inspiração
dói em todo o corpo. Mais um único segundo e precisarei ser mais do que uma
inspiração, ser cascatas de cristalinas águas. Ao invés, quem lá pode saber se
de antemão e revezes, dessa asfixiante felicidade, como um excesso de ar,
sentirei cristalina a impotência de ter mais do que uma inspiração, de
ultrapassá-la, de possuí-la – e ser realmente água.
Dá certo gosto
estar com a janela aberta, madrugada, as estrelas no céu, o ar um pouco frio
entrando, deitando palavras ao papel, coisas que querem fluir na fonte
originária, por via da memória, da lembrança ou da reflexão. Que hei-de fazer
com os pobres olhos que assistem às letras sendo impressas na folha branca de
papel, as imagens sendo delineadas, buriladas, à busca da beleza, da estética,
de tudo o que me perpassa o espírito e tem sede de se tornar real, quando se
olharem ao espelho, vendo na superfície lisa a imagem refletida, não me tornei
a água, não a sou?
O que hei de
fazer? Não me importa o objeto que me
inspira estas letras: estarem elas mesmas registradas num tablóide, um artigo
escrito, mais um dentre outros que foram se apresentando dentro de sonhos
anteriores a quaisquer outros, e hoje são sonhos a partir de outros que foram
sendo realizados.
Quem sabe a
vida seja isto mesmo, imagens dentro de outras imagens. O sucesso delas, serem
apreciadas, serem semente de conquistas futuras, de algo que súbito despertou a
sede, e tudo o mais são buscas de a saciar com a água, por mais que o acaso os
teça e devolva, saem iguais no tempo, quem sabe ao in-verso de invernos que me
habitam, e nas circunstâncias, nos invernos de in-versas ilusões; assim a
história, assim o resto.
Eis como, com
as metáforas, símbolos, imagens, as cascatas de luzes cristalinas me habitam, o
estilo de dentro em mim retrata-las.
Que importa que
em aparência continue nesse momento no escritório, a senhora no segundo andar a
dormir, por vezes, ainda que dormindo busca com a mão abraçar-me, agarrar-me,
não me encontrando na cama? Que importa o que é realmente? Levanto-me tranqüilo
como suave como um sopro, ergo a cabeça, os pés leves, atravesso campos de
terra, cascatas, flores, bosques, além de tudo, da terra, do mundo, do tempo,
de Deus.
Um espírito
vadio ou vazio, ou ambas estas coisas acha útil isto de estar escrevendo sobre
algo que nunca será real, isto de me tornar cristalinas águas, ser cascata. A
intenção de mostrar que, muito embora, e por gasconada, sem este sonho sou
tolo, imbecil, o nada, em verdade, e é para não ser nada que estou a sonhar, a
partir de sonho, muita vez, difícil, muitas dores e sofrimentos, decepções e
desesperanças de ver as palavras impressas na folha de papel branca, lida por
pessoas; apreciam a estética, o estilo, a linguagem, lembram-se, recordam-se de
momentos felizes ao lado de íntimos e amigos à beira de um rio, em cascatas,
lagoas, mares, oceanos. Lembram-se e aí o sonho se apresenta, novas conquistas,
novos encontros e desencontramos, a vida seguindo o seu destino que é a terra
da liberdade.
Trago euforia
em mim dentro, assistindo às cascatas de águas cristalinas em mim dentro, as
lembranças, recordações de artigos escritos em tablóides outros que não os
atuais, em livros, e nos arquivos e pastas do computador, e sempre a imagem...
Creio não mais haver qualquer possibilidade de distinção entre as águas e as
letras em mim. Se nem sempre são fundadas... – o que? As águas? Quem, eu? Não o
sei – em fatos reais, a descrição de uma situação à beira do rio, da lagoa, mas
estes que dentro em mim trago, embora não me seria possível esta intimidade se
não houvesse estado à beira de um, muita vez o é, e basta que seja fundado em
experiências reais, sem a identificação do lugar, e em que situação, para
justificar as outras que não foram.
A causa secreta
de não descrever a natureza, a situação, não o sei. Quem sabe devido a algo que
me escapa a olhos nus, com a idade perderam
a natural agudeza, perspicácia de detalhes e pormenores. A alma soletra
felicidade nova ou inesperada, quando me vem à memória a água cristalina de
Lavrinhas onde estive na mais tenra infância.
Mergulho na
imaginação e depois emirjo, como de nuvens, das terras ainda não possíveis, ah
ainda não possíveis. Daquelas que me falta o engenho e arte para imaginar, mas
que são reais
Sonhos dentro
de outros sonhos, dentro de outros sonhos. Ando, deslizo, continuo... Sempre
sem para, distraindo a euforia que me invade o peito por ter visto outras
letras novas sendo realizadas, lidas por alguns, e é aqui que habita o
importante... Servem de águas para saciar as sedes de conquistas, paz,
felicidade.
Distraindo a
sede cansada de pousar num fim, primeiro as águas e as mensagens divinas, não
foi por entre elas que Moisés atravessou com o seu indigno povo em direção à
terra da liberdade? não foi por cima delas que Cristo andou? As silabas e
termos que esperem.
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