(ENSAIO) - DESDOBRAMENTO DA PERSONALIDADE – O DUPLO Manoel Ferreira
O senhor Goliádkin sofre de
uma aflitiva “mania de perseguição”; está rodeado de “inimigos” que intentam
constantemente ofendê-lo, prejudicá-lo, desrespeitá-lo e humilhá-lo. A arte,
engenhosidade, genialidade de Dostoievski em retratar e descrever a humilhação
e ofensa estão sempre presentes em sua obra, desde as primeiras.
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Makar Alieksiéievitch
queixava-se do seu “mau estilo”, o senhor Goliádkin lamenta-se de “não ser
forte na oratória”. Mas a mania deste declarar-se-á num aspecto de verdadeira
neurose que culminará na loucura e conseqüente internamento do doente num
manicômio.
Esta novela, no tangente ao aspecto formal, representa uma
experiência do autor: aplicar à técnica da ficção literária as novas concepções
da psicologia patológica que então começavam a desenvolver-se em toda a Europa.
O fenômeno que o autor vai aproveitar é
do desdobramento patológico da personalidade; é através dele que
reconhecemos o complexo de inferioridade do senhor Goliádkin.
O desdobramento patológico é a chave que nos
permite des-cobrir o que poderia explicar os comportamentos, atitudes,
conflitos e dramas interiores, suas neuroses; vermos a sua alma no espelho. O
fenômeno do desdobramento da personalidade[1]
nos é explicitamente apresentado através do duelo fantástico que o protagonista
sustenta com o seu duplo.
Mais tarde, nos Irmãos
Karamázovi, o tema da dualidade ou até da multiplicidade fundamental da alma
humana estará implícito em todo o desenvolver da intriga romanesca e muito mais
artisticamente apresentado no complexo anímico repartido pelos quatro irmãos.
O duplo começa ao amanhecer de um dia extraordinário, nos
aposentos do pequeno funcionário Yakov Petrovitch Goliadkin. A despeito do
cenário surrado e de sua pessoa poída, o herói acorda satisfeito com as coisas
e se compraz, ao espelho, num exame detalhado da própria cara. Neste aspecto de se mirar no espelho,
olhar-se num exame detalhado, não está implícito, ou melhor, não revela algum
complexo que irá se manifestar ao longo da obra? A satisfação com as coisas não destoa de sua
pessoa poída, do cenário surrado?
Depois de bem seguro da ausência do criado
Petruchka, vai e destranca uma gaveta, donde tira uma carteira verde. Os 750
rublos fazem brilhar a sua face. A inquietação que apresenta nos seus gestos e
atitudes aponta a distância entre a quantia e a pequenez social do
proprietário. O dinheiro poderia transformá-lo, apagar-lhe o porte miúdo. Se
faltam os rublos, terá também falhado o seu dono, cuja mesquinhez não será mais
imposição da pobreza, mas limitação pessoal. O dinheiro propõe uma tarefa.
Goliadkin deve tornar-se alguém que ainda não é.
No capítulo Genuíno pomo da sabedoria, fizemos uma comparação de Lima Barreto e
Dostoïévski, buscando identificar as características de ambos, em que são
des-semelhantes, em que são semelhantes. A fim de podermos entender mais de
perto a questão da loucura
do personagem de O duplo.
O bovarismo, segundo a concepção de Lima Barreto, era outra dessas
atitudes mistificatórias característica da nova elite e prenhe de graves
conseqüências para o conjunto do país. Esse tema constitui o âmago mesmo de
Policarpo Quaresma, formando ainda a fonte de contos como A biblioteca, Lívia,
e Na janela. A compreensão teórica desse conceito procedia de Jules de
Gaultier, filósofo que esteve na vanguarda da reação idealista e relativista
ocorrida no cenário do pensamento europeu no início do século e sobre quem Lima
Barreto fez anotações e comentários desde 1905. “O bovarismo é o poder
partilhado no homem de se conceber outro que não é”. Ele pode ainda ser mensurado conceitualmente
através do “índice bovárico” que “mede o afastamento entre o indivíduo real e o
imaginário, entre o que é e o que ele acredita ser”. Chega a ser um elemento
positivo, pois define fins superiores, orientando a ação dos homens no sentido
de uma evolução contínua. Porém, quando carente de uma sólida base crítica que
o regule, evitando que o indivíduo submirja na fantasia completa, torna-se
prodigiosamente nefasto. Retratar, descrever, narrar o nefasto de Goliadkin
nisto de intentar ser o que não é, eis a intenção básica de Dostoievski neste
conto.
Vimos antes acerca do
fenômeno do “condensamento” presente na obra do grande escritor russo em suas
obras Crime e castigo, O idiota. Em verdade, O duplo é uma novela condensada.
Mário de Andrade dissera que o romance é o que chamasse de romance, assim a
novela, o conto. Chamamos de conto esta obra.
Conforme a natureza do seu modo de pensar e criar, Lima
Barreto faz uma aplicação social desse conceito. A jovem república estava toda
imersa em atitudes bovaristas. Aliás, a sua própria fundação fora decorrência
de uma atitude bovárica: a fé incondicional na fórmula republicana, mais que
isso, na palavra República, tomada como a panacéia que resolveria todos os
males do país.
Se é que se pode acreditar
(?) o bovarismo nos dias atuais é considerado um dos valores mais
imprescindíveis, é necessário ser bovarista, o que revela a indiferença quanto
a se ser quem é, toda mudança implica dores e ninguém as deseja presente;
revela o medo de se ver frente a si e, conseqüentemente, frente ao outro. A
aparência é fundamental. O dinheiro, então, é a pedra angular dela, com ele a
inautenticidade está assegurada.
O ufanismo bovarista, assim como o cosmopolitismo, era outra
forma de alienar o país, só que parecendo que se estava fazendo exatamente o
contrário. Era um efeito de fachada, ou o cosmopolitismo às avessas.
O efeito do bovarismo era obscurecer, desviar e tornar
estéreis as ações sociais, quer partissem dos limitados grupos de pressão do
governo, ou dos próprios escalões intelectuais.
A proximidade entre Dostoiévski e Balzac se impõe, não
obstante as diferenças. Os elementos balzaquianos se transfiguram na obra
dostoïévskiana, mas nem por isto são menos evidentes e incisivos. Em seu ensaio
crítico, “Dinheiro, Memória, Beleza (O Pai Goriot)”, Roberto Schwarz, com quem
podemos melhor entender o que é isto a tarefa que o dinheiro propõe naquele
funcionário medíocre de uma repartição pública, o tornar-se alguém que ainda
não é. Escreve Roberto Schwarz:
Há um
sopro de liberdade no poder que o dinheiro tem de transpor barreiras
tradicionais, de recompor o mundo segundo desígnios pessoais...[2].
A pedra angular da
realização do ser quem não se é pode-se insinuar nas situações e circunstâncias
quotidianas, a pessoa se serve a seu bel prazer e paladar. Enquanto é o
dinheiro para Goliadkin, os seus setecentos e cinqüenta rublos, conhecemos
casos de a pedra angular ser a cultura, a intelectualidade, isto é a pedra
angular. A pessoa está sobremodo distante do sentido e do significado destas
dimensões humanas, nem mesmo se renascesse, dedicando-se fervorosamente para a
formação e educação da cultura e intelectualidade, trata-se de caráter frívolo.
Para conseguir se estabelecer na sociedade, com isto de se julgar um homem
culto e intelectual, destes que já nascem póstumos, tornou-se prepotente,
arrogante, pernóstico. São as coisas nefastas do “bovarismo”.
Para começar, o criado é
posto em libré. O efeito é pequeno, já que Petruchka insiste em continuar
descalço, e recusa chamar o patrão de “meu senhor”. A carruagem cor-de-céu e
com brasão à porta há de ter mais sucesso. Alugada por um dia, com cocheiro,
será o veículo da grande empresa. Yakov Petrovitch toma assento e esfrega as
mãos, como o camarada risonho que gostaria de ser. A piada verdadeira de Goliadkin,
a pretensão de parecer um camarada risonho, numa carruagem azul. A sua graça
está em tapear o mundo ao fazer de grão-senhor, e sua alegria, por isso mesmo,
nasce do acordo íntimo com a imagem surrada que o mundo tem dele. Yakov
Petrovitch é um pequeno funcionário e sente-se assim. Participar no olhar que
outros lhe lançam, quebrando os seus próprios anseios de transformação. Não ri
do mundo, cujas opiniões teme e acata, mas de si mesmo, por representar o que
não é.
A satisfação com as coisas
com que acorda é esse desejo de tapear a si próprio, tornar-se outro, não ter
mais a mania de ser inferior. Dostoievski faz questão de mostrar que sua
atitude, ação não tem qualquer objetivo especificio, simplesmente resolveu
tapear-se, um ato gratuito; dinheiro pode lhe proporcionar isto.
Por
fim, o senhor Goliádkin meteu a carteira no bolso, olhou satisfeito para
Pietruchka, também já calçado e pronto, e concluiu que estava tudo em ordem e
nada mais era necessário. Então, com o coração tranqüilo, apressou-se a descer
as escadas...
A
carruagem azul, decorada de estranhos brasões, avançou ruidosamente até à
altura do portão... Pietruchka trocou um olhar significativo com o cocheiro e
com alguns basbaques que por ali estavam e seguiu até à carruagem, atrás do patrão.
Com um tom de voz forçado e procurando reprimir um riso tolo disse: “Vamos”...
e subiu para a parte de trás do carro, destinada à criadagem... Com um grande
barulho de freios a estalar e de guizos a tilintar, a carruagem pôs-se a
caminho através da Perspectiva Niévski.
Logo
que o coche azul atravessou o portão do pátio, o senhor Goliádkin esfregou as
mãos com nervosismo e pôs-se a rir para si próprio, como uma pessoa de feitio
brincalhão que conseguiu pregar uma boa partida e se diverte depois com isso.
Mas
logo a seguir a este assomo de alegria, o rosto do senhor Goliádkin tomou um ar
preocupado[3].
O texto é paradoxal: a
tarefa que o dinheiro impõe a Goliadkin, a de ser o que ainda não é; o desejo
de ser o que ainda não é, em princípio, parece alinhar-se com a unidade da
pessoa, contrapondo-se a duplicidade indivíduo/sociedade, indivíduo/social, um
desejo que não visa à identidade do Eu – também não visa a identidade do Outro,
saber o que o outro esconde atrás de sua máscara, “pegar-lhe pelos espartilhos”,
desmoralizá-lo. Visa simplesmente ser o que não é.
Quando elude a tensão entre a experiência vivida e a imagem
que gostaria de realizar, Yakov Petrovitch renuncia à prática racional, em que
a vida se transforma através da imagem que dela se formou. Oscila entre a
fantasia que não dá conta da existência real, e a adesão à ordem existente, que
desmoraliza os seus anseios pessoais, chamando-os fantasia. Esta vacilação
caracteriza o liberalismo, como aparece em Dostoiévski: em momentos de crise,
há uma de duas soluções: a perda completa do senso de realidade (loucura), ou
oportunismo deslavado (adesão à ordem existente, que nesta oportunidade se
revela puro jogo de força, estranho a qualquer consideração moral).
Quando é que um homem torna-se o que ainda não é? Quando tem
750 rublos. O que é um homem sem 750 rublos? Um homem sem 750 rublos não é,
antes é um homem com quem fazem o que seja mais proveitoso, humilhar, ofender
ou dar-lhe as costas vez por todas. O dinheiro é a possibilidade real, que o
sentimento oculta. Realiza não só os desejos que a falta de dinheiro impede,
como também a neutralidade emocional que o não ter estabelece.
Em termos do digníssimo
senhor, ele nada realizou, não teve a pachorra de ao menos procurar se educar
na cultura e na intelectualidade, nada produziu em termos de arte e cultura, de
envolvimento com ela. Se Deus dá o cobertor conforme o frio, esta indiferença
com a culturalização e intelectualização deu-lhe uma comunidade que não
questiona estes valores, em algumas circunstâncias julga-os inúteis e, portanto, descartáveis. Ele insiste em se julgar
a cultura e a intelectualidade nesta intelectualidade, embora nos dias atuais a
coisa esteja um pouco diferente, houve quem teve a hombridade de denunciar isto
publicamente. Não podemos dizer como anda a denúncia nessa comunidade, estamos
bem distante, embora os poucos quilômetros, dos acontecimentos dia a dia.
A alusão a um tempo
“rigorosamente épico” torna menos clara o pensamento do autor, pois somente um
trabalho publicado após a Segunda edição (re-elaborada) do estudo sobre
Dostoiévski Bakhtin chega a desenvolver a sua concepção sobre a relação entre
epopéia e romance, o que permite compreender melhor seu pensamento sobre o
assunto.
Quando Lukács, em sua teoria do romance, há quarenta anos
atrás, perguntou se os romances de Dostoiévski eram as pedras basilares das
narrativas futuras, caso já não fossem eles mesmos essas narrativas, então
efetivamente os romances de hoje que contam – aqueles em que a subjetividade
libertada passa da força da gravidade que lhe é própria para o seu contrário –
se assemelham a epopéias negativas. São testemunhas de um estado de coisas em
que o indivíduo liquida a si mesmo e se encontra com o pré-individual, da
maneira como este um dia pareceu endossar o mundo pleno de sentido.
A tarefa artística resolvida pelo romance independe
essencialmente da interpretação ideológica secundária que talvez a tenha
acompanhado, às vezes, na consciência do próprio Dostoiévski. As relações
artísticas concretas entre os planos do romance e a sua combinação – melhor
dizendo “com-binação”, pois temos aqui a união, a busca de dois elementos,
interioridade e exterioridade, eu e consciência, como evocação da verdade, como
ato estético, a busca da síntese entre a natureza dialógica do pensamento
humano e a natureza dialógica da idéia, na unidade da obra devem ser explicadas
e mostradas com base na matéria do romance.
Em nossa perspectiva de
análise e interpretação, cuja intenção básica é a de-monstração da importância
da obra dostoievskiana no sentido de um mergulho na alma e no espírito em busca
de nossa espiritualidade, nossa consciência, nossas atitudes e ações
compassivas e solidárias, nosso desejo é a paz, a questão do duplo encontra a
fundamentação: a natureza dialógica do pensamento humano e a natureza dialógica
do romance, neste sentido Dostoievski está experimentando a “idéia”, a
multiplicidade das idéias nisto de Goliadkin ser o que não é. Nas suas obras
futuras, passo a passo, o crescimento, desenvolvimento, são passos em busca de
Deus, o clímax dessa multiplicidade das idéias.
Antes de iniciar-se a ação do romance, Raskolnikov publicara
num jornal um artigo em que expunha os fundamentos teóricos da sua idéia.
Ressaltemos que em forma cronológica, Dostoïévski nunca expõe esse artigo.
Conhecemos pela primeira vez o teor e a idéia fundamental de Raskolnikov no
diálogo tenso e terrível, para este, que este trava com Porfiry (Razumikin e
Zamiétov também participam do diálogo). Inicialmente o artigo é exposto por
Porfiry, vale dizer de forma deturpada e provocante.
A idéia de Raskolnikov revela nesse diálogo várias de suas
facetas, matizes e possibilidades, contrai diferentes relações de reciprocidade
com outras posições em relação à vida. Perdendo a idéia o seu acabamento
monológico teórico-abstrato, que satisfaz apenas a uma consciência, a
idéia assume uma complexidade contraditória e a vida, variedade de idéia-força,
que nasce, vive e atua no grande diálogo da época e guarda semelhança com as
idéias cognatas de outras épocas. Surge diante de nós a “imagem da idéia”.
Se real-izamos aqui uma
comparação com essas obras, a intuição base, ou seja, a raiz são as
“perspectivas”, análise, objetivos e pro-jetos que esta “imagem da idéia” se
multiplica em todos ângulos. Percebe-se as estratégias, habilidades de escrita,
seu poder de “ver dentro” da alma humana. Esta imagem cada leitor irá ver,
vislumbrar, contemplar – aprendemos na metafísica de Kant que se olharmos uma
caixa de giz de qualquer ângulo, só veremos três ângulos da caixa de giz, o
outro só quem segura a caixa pode ver. Embora isto seja bem ridículo, olhando
de perto a filosofia de Kant, serve para ilustrar, este lado oculto, dizia
Dostoievski que só Deus mesmo para saber tudo que vai na alma humana.
A psicologia clássica quase
não trata da imagem poética que é com freqüência confundida com a simples
metáfora. A palavra imagem está cheia de confusão nas obras dos psicólogos;
vêem-se imagens, reproduzem-se imagens, guardam-se imagens na memória. A imagem
é tudo, exceto um produto direto da imaginação.
Na obra de Bérgson: Matière et Memoire (Matéria e Memória), em
que a noção de imagem tem uma grande extensão, uma única referência é dedicada
à imaginação produtora. Essa produção fica sendo então uma atividade de liberdade
menor, que quase não tem relação com os grandes atos livres trazidos à luz pela
filosofia bergsoniana. Nessa curta passagem, o filósofo se refere “aos
divertimentos da fantasia”. As diversas imagens são aí “outras tantas
liberdades que o espírito toma com relação à natureza”. Mas essas liberdades no
plural não engajam o ser; não aumentam a linguagem; não tiram a linguagem de
seu papel utilitário.
Em Bérgson, as metáforas são abundantes e, no fim das contas,
as imagens são muito raras. Para ele, parece que a imaginação é totalmente
metafórica. A metáfora vem dar um corpo concreto a uma impressão difícil de
exprimir. A metáfora é relativa a um ser psíquico dela. A imagem, obra da
Imaginação absoluta, retira todo o seu ser da imaginação.
Considere-se, ao contrário, que a imaginação como um poder
maior da natureza humana. Certamente não adianta nada dizer que a imaginação é
a faculdade de produzir imagens. Mas essa tautologia tem ao menos o interesse
de deter as assimilações das imagens às lembranças.
A imaginação, em suas ações vivas, nos desliga ao mesmo tempo
do passado e da realidade. Aponta para o futuro. À função do real, instruída
pelo passado, tal como é destacada pela psicologia clássica, é preciso juntar
uma função do irreal também positiva.
Conforme Gaston Bachelard:
As
grandes imagens têm ao mesmo tempo uma história e uma pré-história. São sempre
lembrança e lenda ao mesmo tempo. Nunca se vive a imagem na primeira infância.
Qualquer grande imagem tem um fundo onírico insondável e é sobre esse fundo onírico
insondável que o passado pessoal põe cores particulares[4].
Dostoïévski criava imagens vivas de idéias
auscultadas, encontradas, às vezes adivinhadas por ele na própria realidade,
idéias que já têm vida ou que ganham vida como idéia-força. Dostoïévski tinha o
dom genial de auscultar as vozes dominantes, reconhecidas e estridentes da
época, ou seja, as idéias dominantes, principais (oficiais e não-oficiais), bem
como vozes ainda fracas, idéias ainda não inteiramente manifestas, idéias latentes
ainda não auscultadas por ninguém exceto por ele e idéias que apenas começavam
a amadurecer, embriões de futuras concepções do mundo.
No conto Bobok (1873), são
característicos a imagem do narrador e o tom da sua narração. O narrador
encontra-se no limiar da loucura (delirium-tremens). Afora isto, porém, ele não
é um homem como todos, isto é, que se desviou da norma geral, do curso normal
da vida, ou melhor, temos diante de nós uma nova variedade do “homem do
subsolo”.
Em Bobok, Dostoievski
escolheu um lugar bastante característico para o seu discurso, a sua confissão,
no cemitério. Confessar-se-ia aos mortos.
[...]
o estilo é feito para isso. Nada. Não vos mandam dizer. Hoje o humor e o belo
estilo desapareceram e as injúrias substituem o espírito de delicadeza. Não sou
um literato qualquer para quebrar a cabeça[5]
.
Trata-se de um escritor
medíocre, no cemitério se confessara, mas é à loucura que ele se confessa, quem
sabe assim se convencesse e persuadisse de sua insanidade, no seu imaginário
todos ali são os seus juízes eternos, o discurso é com os mortos-vivos.
Lembro-me
de uma sentença de origem espanhola. Foi quando os franceses, há meio século,
construíram entre êles o primeiro hospício: “Encerraram todos os loucos numa
casa particular, para se persuadirem de que êles mesmos são gente de juízo”. A
frase é justa. Não é encerrando o próximo numa casa de loucos que se dá uma
prova da nossa razão – “X... ficou maluco, isto significa que gozamos de todas
as nossas faculdades”. Absolutamente. Isto não significa absolutamente nada[6].
Seu tom é vacilante,
ambíguo, com ambivalência abafada e elementos de bufonaria satânica (como nos
diabos dos mistérios). Apesar da forma exterior das frases “truncadas” curtas e
categóricas, ele oculta sua última palavra, esquiva-se dela.
-
Não creio em nada, e rio-me disso. Quero sòmente,, velho amável, abraçar-vos,
mas, graças a Deus, não posso. Sabeis, senhores, o que este vovô imaginou? Há
dois ou três dias que morreu, e imaginai que deixou um passivo de quatrocentos
mil rublos[7].
Dostoïévski não pensava
através de idéias, mas de pontos de vista, de consciências, de vozes. Procurava
interpretar e formular cada idéia de maneira a que nela se exprimisse e
repercutisse todo o homem e assim em forma torcida, toda a concepção de mundo
desde o alfa ao ômega. Só uma idéia que comprimisse uma orientação espiritual
completa era por Dostoïévski convertida em elemento de sua visão artística do
mundo; para ele, essa idéia era uma unidade individual.
Eis como o personagem de Bobok
se apresenta:
Escrevi
uma novela; não a publicaram. Escrevi uma crônica-folhetim; foi recusada. Tenho
enviado a diversas redações um grande número dessas crônicas folhetins; por
toda parte elas têm sido recusadas. “Falta-lhe sal” – dizem-me – “De que sal falam”,
perguntei ironicamente – “é do sal atiço?”[8]
O modo de desenvolver a
idéia é idêntico em toda parte: desenvolve-a dialogicamente, mas não no diálogo
lógico seco e sim por meio do confronto de vozes completas profundamente
individualizadas. Mesmo em seus artigos polêmicos, ele, em essência, não
persuade, mas organiza vozes, conjuga os objetivos semânticos, usando, na
maioria dos casos, a forma de um diálogo imaginário.
Machado de Assis apurava a
dimensão quantitativa e contábil dos movimentos da consciência, cuja
inquietação se governa pelos requisitos do prazer e da fuga ao desprazer, mesmo
que para isso tenha que abandonar o mundo real pela compensação imaginária.
Adotadas como célula elementar da prosa narrativa, bem como da conduta das
personagens, estas transações compensatórias incorporam ao romance uma reflexão
psicológica de ponta, com afinidade científica, em discrepância pronunciada com
as apreciações religiosas ou moral da vida interior.
No Artigo O meio,
Dostoïévski expressa inicialmente uma série de considerações em forma de
questões e hipóteses acerca dos estados psicológicos e orientações dos jurados,
irrompendo e ilustrando como sempre as suas idéias com as vozes e meias vozes
das pessoas:
Uma
sensação comum que devem sentir todos os jurados do mundo e, em particular, os
nossos (isto, bem entendido, independentemente de outras sensações) é, sem
dúvida, a do poder e, para dizer melhor, do poder absoluto. Sensação ignóbil,
quando ele se exerce à custa do próximo.
Por
pouco distinta que pareça, mesmo dominada pelo conjunto de outras sensações
mais nobres, nem por isso ela deixa de estar aferrada à alma de todo jurado,
qualquer que seja a consciência que ele tenha de seu dever de cidadão.
Parece-me que isso decorre, de qualquer forma, da natureza das coisas; esta é a
razão por quê, recordo-me, minha curiosidade foi despertada, quando aqui
intentavam instaurar novo sistema de jurisdição. Atravessou-me o espírito a
visão de sessões nas quais figurarão no banco dos jurados, quase exclusivamente,
camponeses que ontem eram servos. Procuradores, advogados, dirigir-se-ão a
eles, interrogando-os, olhando-os, enquanto nossos bravos mujiques permanecerão
sentados, pensando: “Eis como isto está hoje: se ele quizer absolve, senão,
manda para a Sibéria
-
“É uma pena arruinar-se uma existência. A final de contas, são homens. O povo
russo é misericordioso.[9].
A seguir passa diretamente
ao arranjo do seu tema através do diálogo imaginário.
Supondo-se, porém, - objetarão - que suas sólidas regras (cristãs)
tenham permanecido as mesmas e que convenha, com efeito, se mostrar acima de
todo, para empunhar, como dizem, a bandeira... Embora dando razão neste ponto,
digam-me, porém, onde encontrar cidadãos entre nós? Reflitam somente sobre o
que isto aqui era ontem? Os direitos dos cidadãos (e que direitos) não lhes
caíram em cima de repente? Não os esmagaram? Não são, para eles, apenas um
fardo?
- Há certamente, uma parte de verdade em sua objeção, - respondi
eu – mas, ainda uma vez, o povo russo...
- O povo russo? Permita-me – interferiu outra voz – pois não foi
admitido que estes presentes lhe caíram em cima e o esmagaram? Talvez não seja
bastante dizer que todo este poder lhe coube por sorte, como um dom. Talvez
mesmo ele sinta que ele lhe coube como dádiva gratuita, isto é, que ele está
longe de merecê-la no momento. Note bem
que isto não significa que efetivamente ele não mereça semelhante dom, que este
não lhe deveria ser concedido ou que era muito cedo para fazê-lo; é exatamente
o contrário: o povo, na sua obscura consciência, não se considera digno desses
dons, e esta humildade e sublime consciência que ele tem de sua indignidade é,
precisamente, a prova de que é digno.
(...)
“Dir-se-ia quasi, uma voz eslavófila” pensei comigo mesmo.
Pensamento verdadeiramente consolador. A suposição sobre a atitude humilde do
povo em presença do poder “recebido como dom e oferecido a quem no momento não
se considerava digno dele”, é mais razoável que a teoria sobre “a zombaria às
autoridades”, se bem que esta continue a me agradar por seu realismo
(considerando, bem entendido, os casos individuais, como o faz notar o próprio
autor da suposição). Entretanto, eis o que me inquieta, a cima de tudo: Por que
nosso povo começou subitamente a temer sua compaixão? “Faz pena, verdadeiramente
condenar um homem”. Muito bem, fiquem com sua pena. A verdade é algo de
superior a ela[10].
É esta a estruturação de
muitos artigos publicitários de Dostoïévski, cujo pensamento avança através do
labirinto de vozes – em toda a sua obra, vale ressaltar -, meias-vozes,
palavras e gestos dos outros. Dostoïévski nunca demonstra as suas teses com
base em outras teses abstratas, não combina o pensamento segundo um princípio
concreto, mas confronta os posicionamentos e entre eles constrói o seu.
Nos artigos publicitários,
a peculiaridade geradora de forma da ideologia de Dostoïévski não pode
manifestar-se com a suficiente profundidade. A literatura publicitária cria as
condições menos favoráveis para que isso ocorra. Enquanto o posicionamento
ideológico comum vê na idéia o seu sentido material, seus “pináculos”
concretos, Dostoïévski vê acima de tudo no homem as “pequenas raízes” dessa
idéia; para ele a idéia é bilateral e os dois lados não podem separar-se um do
outro nem na abstração.
Do ponto de vista da
técnica literária, Machado de Assis estava próximo das audácias com que o
romance moderno respondia aos novos desdobramentos da sociedade burguesa.
Pensamos na maneira depreciativa pela qual Stendhal reduzia o discurso
conservador a uma engenhoca previsível, que não merece o trabalho de uma
exposição completa, donde os esplêndidos “etc., etc.”. Ou na banalização
sistemática do pensamento levada a efeito na literatura de Flaubert.
Uma sensação comum que devem sentir todos os jurados do mundo e,
em particular, os nossos (isto, bem entendido, independentemente de outras
sensações) é, sem dúvida, a do poder e, para dizer melhor, do poder absoluto.
Sensação ignobil, quando ele se exerce à custa do próximo.
Por pouco distinta que pareça, mesmo dominada pelo conjunto de
outras sensações mais nobres, nem por isso ela deixa de estar aferrada à alma
de todo jurado, qualquer que seja a consciência que ele tenha de seu dever de
cidadão. Parece-me que isso decorre, de qualquer forma, da natureza das coisas;
esta é a razão por quê, recordo-me, minha curiosidade foi despertada, quando
aqui intentavam instaurar novo sistema de jurisdição. Atravessou-me o espírito
a visão de sessões nas quais figurarão no banco dos jurados, quase
exclusivamente, camponeses que ontem eram servos. Procuradores, advogados,
dirigir-se-ão a eles, interrogando-os, olhando-os, enquanto nossos bravos
mujiques permanecerão sentados, pensando: “Eis como isto está hoje: se ele
quizer absolve, senão, manda para a Sibéria
- “É uma pena arruinar-se uma existência. A final de contas, são
homens. O povo russo é misericordioso.[11].
Aqui as idéias têm a mesma
espessura e visibilidade que as coisas, de que não se distinguem e com as quais
deslizam, em igualdade de condições, sobre a célebre e incansável “esteira
rolante” formada pelo uso especial que o autor faz do pretérito narrativo. Nos
dois escritores, trata-se da percepção moderna da ideologia, para a qual as
explicações da vida integram funcionalmente a argamassa da estabilidade social:
o pensamento espontâneo é livre e individual só ilusoriamente, o que o degrada
e transforma em matéria literária com implicações contra-intuitivas, que
requerem tratamento novo e empurram em direção do século XX.
A Literatura do Classicismo
e do Iluminismo elaborou um tipo especial de pensamento aforístico, ou seja, um
pensamento através de idéias particulares fluentes e auto-suficientes, pelo seu
próprio plano, independentes do contexto. Nietzsche a utilizou na sua obra
quase inteira. Os românticos elaboraram outro tipo de pensamento aforístico.
Esses tipos de pensamento
foram especialmente estranhos e hostis a Dostoïévski, cuja ideologia geradora
de formas desconhece a verdade impessoal e em cujas obras não há verdades
impessoais destacáveis. Nelas há vozes-idéias integrais e indivisíveis,
vozes-pontos de vista, vozes perspectiva de visões, mas estas também não podem
ser destacadas do tecido dialógico da obra sob pena de deformar-se a natureza
delas.
O que importa nas idéias de
Dostoïévski não é a sua confissão cristã em si, mas aquelas formas vivas do seu
pensamento artístico-ideológico que aqui adquirem consciência própria e
expressão precisa. As fórmulas e categorias que lhe são estranhas ao
pensamento. Ele prefere ficar com os erros, mas com Cristo, ou seja, sem a verdade-fórmula,
sem a verdade-tese. É altamente característica a interrogação feita ao modelo
ideal (como faria Cristo?), ou seja, o posicionamento dialógico interno em
relação a Cristo, sem se fundir com ele, mas o seguindo.
Só para os heróis a idéia é
um princípio monológico comum de visão e interpretação do mundo. É entre eles
que se distribui tudo o que na obra pode servir de expressão direta e
sustentáculo para a idéia. Em
Dostoïévski não há representação objetiva do meio, dos costumes, da natureza ou
das coisas, vale dizer, de tudo o que possa tornar-se ponto de apoio para o
autor. O universo sumamente multifacético das coisas e das relações materiais,
que faz parte do romance de Dostoïévski, é dado no enfoque dos heróis, no seu
espírito e tom.
Em 1878, Dostoïévski
escreve a um de seus correspondentes:
Além
de tudo isso (tratava-se da insubordinação do homem à lei geral da natureza. –
M.B.), acrescente-se aqui o meu eu, que tinha consciência de tudo. Se ele tinha
consciência disto tudo, ou seja, de toda a terra e seu axioma (a lei da
autoconservação – M.B.), logo se conclui que esse meu eu está acima de tudo
isto, pelo menos não cabe nesses limites, colocando-se, por assim dizer, à
parte, acima de tudo isso, que ele julga e de que tem consciência... Mas neste
caso esse eu não só não se subordina ao axioma terrestre, à lei da terra, como
os ultrapassa, tem uma lei superior[12].
Dostoïévski não aplicou
monologicamente em sua criação artística essa apreciação basicamente idealista
da consciência. Dostoïévski superou o solipsismo. Não reservou para si a
consciência idealista, mas para os seus heróis, e não a reservou para uns, mas
para todos. Ao invés da atitude do “eu” que é consciente e julga em relação ao
mundo, ele colocou no centro da sua arte o problema das inter-relações entre
esses “eu” que são conscientes e julgam.
Distanciando-se da
kátharsis clássica, que se origina tanto da obra de arte religiosa quando da
arte bela, a obra ambígua, o paradoxal, o desdobramento da personalidade
instaura uma perda abissal da missão purificadora da arte tradicional. A
proposta conceitual da obra ambígua busca e encontra a identidade da arte pura,
detonando, por via de conseqüência, a falsa autonomia da arte burguesa. A
kátharsis de uma obra ambígua não libera apenas sentimentos de compaixão,
comoção, espanto, riso ou choro. Nela, procura-se, fundamentalmente, por
emoções que provocam não somente sentimentos puros, mas também os que buscam
uma sensação nova, intrigante, complexa, multifacetada e, ao mesmo tempo,
tênue.
Se para a estética
idealista de Kant[13]
o “estético” é um julgamento universal mas subjetivo, pois oposto ao
conceitual, em Hegel a arte da palavra chamada ‘poesia” torna-se a expressão
suprema da Idéia em seu movimento de particularização: “ela (a poesia) abarca a totalidade do
espírito humano, o que comporta sua particularização nas mais variadas
direções”. Posta assim em paralelo com a filosofia especulativa, a poesia dela
se diferencia, ao mesmo tempo, em virtude da relação que estabelece entre todo
e parte.
Certamente, suas obras
devem possuir uma unidade concordante, e aquilo que anima o todo deve estar
igualmente presente no particular, mas esta presença, em vez de ser marcada e
acentuada pela arte, deve permanecer um Em-si interior, semelhante à lama que
está presente em todos os seus membros, sem lhes dar a aparência de uma
existência independente.
Assim, sendo uma expressão
– uma exteriorização particularmente – da Idéia e porque participa da língua, a
poesia é uma representação interiorizante que coloca a Idéia o mais perto do
Sujeito.
A força da criação poética
consiste, pois, em a poesia modelar um conteúdo interiormente, sem recurso a
figuras exteriores ou a sucessões de melodias: desse modo, ela transforma a
objetividade exterior numa objetividade interior que o espírito exterioriza
pela representação, sob a própria forma sob a qual esta objetividade se
encontra e deve no espírito se encontrar.
Evocado para justificar a
subjetivação do movimento poético, o fato de a poesia ser verbal é rapidamente
descartado? Hegel recusa pensar na materialidade da língua. Este lado verbal da
poesia poderia dar margem a considerações infinitas e infinitamente
complicadas, das quais cremos, contudo, dever abster-nos, para nos ocupar de
assuntos mais importantes que nos esperam.
Podemos compreender a
questão da duplicidade, do sósia, na obra dostoïévskiana pensando que O sósia, ao
apresentar uma aparência de aparência ou o sensível apenas de forma
superficial, a arte se revela não como duplamente falsa, ou como imitação da
imitação, como pensava Platão, mas como profundamente verdadeira, posto que sua
verdade encontra-se em seu conteúdo, que é para Hegel o próprio espírito.
Ao contrário de Hegel,
Schelling não acredita que a arte esteja totalmente ultrapassada como expressão
do absoluto; a arte, instância suprema para o filósofo, não é apenas necessária
para contribuir a revelar a manifestação do divino na obra, na natureza; ela é
também o magnífico prolongamento, o homem, do trabalho artístico da natureza e
de sua incessante evolução.
Dostoiévski não representa
a gênese da situação e de suas contradições. Começa por um mundo já fraturado,
cujo colapso é o seu tema. Constrói a trama com um olho na aniquilação. A sua
situação dileta é o último ato; começa a poucos passos do fim. O cataclismo é o
horizonte desta vida minada, mesmo quando não se fala dela. A prosa
contraditória projeta convulsões possíveis, ausentes do texto explícito, que
entanto o acompanham como prenúncio intangível, qualidade da narração.
As contradições,
encarnadas, embatem, e temos o tempo intensificado e histórico da destruição,
que é, também, o da verdade. Um tempo que trabalha em direção do seu fim, um
tempo de beco. A catástrofe e o terror não podem durar indefinidamente, têm seu
limite na nudez ou morte do homem. Esta fronteira negativa, paz depois da
pororoca, seria o sítio da verdade humana. E é o lugar da Utopia Paradoxal de
Dostoiévski.
Como descreve o cemitério,
caracteriza a depravação em Bobok:
A
depravação em semelhante lugar, a depravação das supremas esperanças, a
depravação dos cadáveres decompostos e putrefatos – e que não poupa sequer os
últimos momentos de consciência! Foram-lhes concedidos, esses momentos supremos
e... Mas acima de tudo, acima de tudo, num lugar como esse. Não, não posso
admitir...[14]
As veleidades de Goliadkin
deixam de ser sérias e visam empreendimento engraçado, vontade de enganar os
outros por um tempinho. Esta alegria exprime dois momentos: libera, quando o
riso se prende à graça de ser outro que o que ele é sem gosto, e destrói a si
mesma ao aceitar o ponto de vista do mundo, que chama farsa a busca da
felicidade.
No riso que implica
autodestruição vai uma ponta de medo. A apreensão vem logo juntar-se à alegria.
Goliadkin espia o povo nas ruas, temendo encontrar conhecidos. Por que esse
medo de encontrar conhecidos? Os conhecidos saberão, com efeito, reconhecer a
farsa, a fantasia – numa única palavra: “mostrar-lhe o seu verdadeiro lugar”,
isto é, um indivíduo sem qualquer importância social, que tem complexos de
inferioridade, não aceita a sua própria condição humana. Anônimo, assume o
decoro sóbrio que escolheu para seu ser mais alto, de que, entanto, ri quando
sozinho.
Conforme Roberto Schwarz: “A
micagem da dignidade ensina ao mico quanto é macaco o homem”. Não obstante,
Goliadkin busca semelhar-se ao rico, diante do qual sua pobreza vexava; põe, à
mostra, já, o oportunismo. Súbito, numa das esquinas da avenida Niévski, o
calafrio: visto por seus colegas, Yakov Petrovitch esconde-se no canto mais
escuro da carruagem, e concede o blefe; a sua referência real é a sociedade
existente, na qual a sua posição está definida já de muito.
O riso é uma posição
estética determinada diante da realidade, mas intraduzível à linguagem da
lógica, isto é, é um determinado método de visão artística e interpretação da
realidade e, conseqüentemente, um método determinado de construção da imagem
artística, do sujeito e do gênero.
A lógica do discurso
subtende a leitura da poesia, em nossa sociedade: sabemos que o que a linguagem
poética enuncia não é (para a lógica do discurso), porém, aceitamos o
ser deste não-ser. Noutras palavras, pensamos este ser (esta afirmação) contra
o fundo de um não-ser (de uma negação, de uma exclusão). É pela relação com a
lógica do discurso, baseada na incompatibilidade dos dois termos da negação,
que a reunião não-sintética operante no significado poético adquire seu valor
significante. Se tudo é possível na linguagem poética, esta infinidade de
possibilidades só se deixa ler com realidade, com relação à “normalidade”
estabelecida pela lógica do discurso. O sujeito cognoscente que aborda a
linguagem poética pensa-a, em seu discurso científico, onde os termos da
negação se excluem. E é este “em relação” que dá à categorização da poesia como
discurso-desvio, como anomalia.
O riso carnavalesco
ambivalente possuía uma enorme força criativa, do sujeito e do gênero, força
essa formadora de gênero. Este riso abrangia e interpretava o fenômeno no
processo de sucessão e transformação, fixava no fenômeno os dois pólos da
formação em sua sucessividade renovadora constante e criativa: na morte
prevê-se o nascimento, no nascimento, a morte, na vitória, a derrota, na
coroação, o destronamento, etc. O riso carnavalesco não permite que nenhum
desses momentos de sucessão se absolutize ou se imobilize na seriedade
unilateral.
Num ensaio para O TEMPO,
Dostoiévski escreveu sobre Gogol:
Riu
em toda a vida, riu dele e dos outros, e todos nós rimos com ele – e rimos
tanto que acabamos por chorar. (...) Ora, era um demônio genial[15].
Goliadkin sente o mundo por
forma ambígua: para representar, precisa do público, mas teme ser
desmascarado. Se representa, ousa fazê-lo somente para homens que não conheça,
e que, por isso mesmo, não importam. Se parece importar, a indiferença é
dirigida ao sentimento de importância com os homens que não conheça, é a
censura a si próprio que se revela.
A sua grande vitória seria
fazer o grande senhor em frente de seus colegas. Partilhando, entretanto, a
opinião que os outros têm dele, Goliadkin cora e falha. Não gosta do mundo que
tem, e reconhece a impropriedade de gostar do de que gosta. Busca
transformar-se, mas tem um pé atrás e vê como indevido o seu esforço ainda em
curso. Ao ver-se em exterioridade, hostil como um estranho, reconhece na aparência
mesquinha o seu ser verdadeiro. As veleidades da nobreza tornam-se deslocadas e
descabidas em seus próprios olhos, e só podem trazer desordem. Não se cansa de
dizer ser um homem honesto, digno, gosta de fazer tudo às direitas. Ao invés de
convencer o outro, persuadi-lo de ser ele tal com diz, duvida de suas palavras,
sabe não serem verdadeiras, duvida de si mesmo. Não consegue convencer os
ímpios, não persuade os sábios – os verbos são sinônimos, mas as atitudes são
bem diferentes; convencer os ímpios faz-se sem muito esforço, não é preciso
espremer os miolos; persuadir exige as intelectualidade da linguagem e do
estilo da expressão, é dificílimo real-izar a intenção.
Plenitude e experiência
concreta alinham somente com a imaginação, enquanto a prática social traz o
esvaziamento do Eu. Se a vida imaginária tornou-se reduto da
integridade, não prolonga, mas nega a vida real. Ora, a integridade é abstrusa
quando a falta dela é a regra: quando a regra é abstrusa.
Para não atrapalhar, o
sonho deve continuar sonho. A realização pessoal é expulsa da vida prática, e
retira-se para o mundo da fantasia. Yakov Petrovitch entrega-se às aventuras
irreais, dá solução imaginária a seus problemas práticos. O floreio sintático
de sua prosa ordena enobrecida e dominada a dificuldade insípida do vivido.
... o senhor Goliadkin fechou os olhos com força, como se tivesse
saudades do seu último sonho e desejasse prolongá-lo um pouco mais. Porém,
minutos depois, saltou da cama. Tinha sem dúvida apanhado o fio que ligava os
sonhos incoerentes que sonhara.
Enquanto
se vestia olhava freqüentemente e com uma espécie de carinho, as botas novas,
levantando ora um pé, ora outro, encantado, murmurando entre dentes palavras
ininteligíveis, ao mesmo tempo em que o seu rosto ia sublinhando os pensamentos
com expressões adequadas.
A mesma experiência
aparece um pouco modificada na cena seguinte. Depois dos colegas, quem aparece
é o superior hierárquico, Andrei Filipovitch, que espia surpreso a carruagem.
Devo
cumprimentar ou não? Dou-me a conhecer ou faço de conta que não sou eu? –
dialoga consigo próprio o nosso herói, terrivelmente perplexo – Será melhor
fazer de conta que não sou eu,
mas alguém que se parece muito comigo, e não fazer caso. É isso, não sou eu, é
o mais fácil[16].
Em lugar de despir-se da
imagem promovida, como fizera no primeiro episódio, Goliadkin tenta livrar-se
agora de sua imagem cotidiana, dizendo “não sou eu”.
“Goliádkin
estava muito satisfeito com a imagem que o espelho lhe oferecia...”
O procedimento é oposto ao
supra citado, mas assinala o mesmo problema: entre as existências ideal e atual
não há ponte; são concebidas como de natureza diversa. No plano monológico, a
personagem é fechada e seus limites racionais são rigorosamente delineados: ela
age, sofre, pensa e é consciente nos limites daquilo que ela é, isto é, nos
limites de sua imagem definida como realidade; ela não pode deixar de ser o que
ela mesma é, vale dizer, ultrapassar os limites do seu caráter, de sua
tipicidade, do seu temperamento, sem com isto con-turbar o plano monológico do
autor para com ela. Essa imagem se constrói no mundo do autor, objetivo em
relação à consciência da personagem, a construção desse mundo, com seus pontos
de vista e definições conclusivas, pressupõe uma sólida posição exterior, um
estável campo de visão do autor.
A personificação é uma
forma de identificação pela qual uma parte do indivíduo assume a identidade de
uma personalidade que ele não é. Na personificação, não é necessário que o
personificado esteja inteiro. Em geral, trata-se de uma identificação subtotal,
limitada a assumir as características do comportamento de outra pessoa – seus
gestos, maneirismo, expressões; em geral, sua aparência e ações. A
personificação pode ser um componente de identificação muito mais total com o
outro, mas uma de suas funções parece ser impedir uma identificação mais
extensa (e daí uma perda mais completa da identidade do indivíduo).
No sentido de uma
exemplificação, nada melhor se revela que a vitória do oportunista sobre o
liberal. A vitória prova uma espécie de superioridade: o sósia não mente a si
mesmo. Para atingir a vitória, para combatê-lo, o liberal deveria cerrar o
flanco e tornar-se oportunista também. A questão que se apresenta nítida é que
passar de liberal para oportunista não é dar um passo profundo, o passo não é
de transformação, mas apenas de sinceridade. Há-de se pensar que estas últimas
palavras, a idéia que surge. Quem deveria, a vitória seria do liberal, ele traz
em mãos feitas concha valores éticos e morais que assim o identificam; ademais,
as pessoas não titubeariam um só instante por estar do lado do vitorioso, o
oportunismo é não só ridículo, absurdo, ele nada é. Então os passos da liberal,
liberal para oportunista, sendo sincero, ele apenas afirma o que já é, não se
entregue livre, sujeito a mudanças radicais no seu interior, na sua vida.
Quer-se mais que a sinceridade, quer-se a dignidade.
Em Uma anedota ordinária,
um conto profundamente carnavalizado, também próprio da menipéia (da menipéia
de tipo varroniano). O ponto de partida da idéia é a discussão de três generais
numa noite de santo. Posteriormente o herói do conto (um dos três), a fim de
testar sua idéia humanístico-liberal, vai à festa de casamento de um
subordinado da categoria mais baixa e, por inexperiência, ele não bebe,
embriaga-se.
Goliadkin
não é forçado a tornar-se outro homem; as coisas que deverá fazer agora, ele as
vem fazendo há muito: intrigar contra os ausentes, tirar vantagem da
desvantagem alheia, cinicar a respeito do vocabulário liberal. A diferença
inexiste entre Goliadkin e seu sósia, a diferença se mostra apenas na
habilidade.
O sósia representa um estilo novo num empreendimento velho.
Não se limita a intrigas. Completa o trabalho através do roubo puro e simples
do relatório burocrático de seu original. A tática ousada parece ter um
precedente na carreira de Goliadkin sênior, que nalguma oportunidade embolsou
dinheiro de uma velha senhora alemã. Desperta-nos sentimento de compaixão e ao
mesmo tempo de riso ver como Goliadkin Júnior passa a perna em Goliadkin Sênior
na história dos “bolinhos” que este come, dez bolinhos, e quem paga é este ao
garçom. Poderia ter sido seguro e prepotente, não apenas para convencer, mas
por ser a verdade: “Não fui eu quem comeu. Não fora aquele lá?”, indicando-lhe.
Mas não.
Há nisto algo sui generis: Goliádkin admira o sósia que o
destrói. O fracasso de Yakov Petrovitch nesta luta faz-lhe retirar-se para os
domínios da fantasia. O ciclo destrutivo se repete. Após ser escandalosamente
driblado, tapeado, ridicularizado pelo sósia, Goliadkin sênior abdica da
represália real e sonha com uma paz obtida através do perdão – uma redenção em
que o opressor, o sósia, pediria perdão ao oprimido, a ele, Goliadkin sênior.
Quem sabe assim não nascesse uma grande amizade, uma “amizade firme, calorosa,
com base mais sólida que a da noite anterior”.
A situação do ser no mundo é marcada pela estranheza. Nesse
sentido, a compreensão do outro não descansa apenas na compreensão de si, mas
se justifica a partir da situação do homem como desconhecido de si para si
mesmo. Aí, a desvantagem, se não se tem conhecimento de si, como se torna
possível superar os obstáculos da vida? Ainda mais quando o outro conhece esse
desconhecimento. É o caso de Goliadkin sênior e o sósia. Aquele não se conhece,
e esse sabe disso, e possui estratégias para destronar Goliadkin sênior. As
estratégias se mostram nítidas e límpidas nas palavras. Recorda muito o adágio
do inteligente e do analfabeto. Isso, sem dúvida, causa risos, como pode alguém
ser tão esperto, devido à ignorância do outro.
A realidade humana exprime-se na sua dimensão de ser no mundo.
Ser no mundo significa existir para si e para o mundo, não
apenas o mundo da natureza, configurado em termos humanos, mas também, é claro,
o mundo social em que o ser com os outros assegura a realidade no modo da
co-existência.
Ao observar a história das idéias, verifica-se que tal
processo não é menos problemático do que o da percepção do sujeito e do objeto.
No universo artístico monológico, a idéia colocada na boca do
herói representado como imagem sólida e acabada da realidade, predeterminado
por um traço desta, idêntico a qualquer manifestação do herói. É uma idéia
típico-social ou característico-individual ou, por último, simples gesto
intelectual, mímica intelectual de sua personalidade espiritual. A idéia deixa
de ser idéia para tornar-se simples característica artística. É como tal que
ela se combina com a imagem do herói.
O herói “autoconsciente” encontra-se presa de um dilema.
Talvez precise – e já vimos que Goliadkin deseja ser o que ele ainda não é –
ser visto e reconhecido, a fim de manter seu “sendo” de realidade e identidade.
Contudo, ao mesmo tempo, o outro representa ameaça à sua identidade e
realidade.
O outro fornece um modelo para a imagem de si. Por ter outro,
contudo, ele também revela que a imagem de si comporta uma parte igual da
alteridade.
O sentido da identidade exige a existência do outro por quem a
pessoa é conhecida.
O enfoque dialógico de si mesmo determina o gênero do
solilóquio. Trata-se de um diálogo consigo mesmo. Antistheno (discípulo de
Sócrates é talvez um autor de menipéias) já considerava conquista máxima de sua
filosofia a capacidade de comunicar-se dialogicamente consigo mesmo. Epicteto,
Marco Aurélio e Santo Agostinho foram insignes mestres desse gênero. Baseia-se
o gênero na descoberta do homem interior – de “si mesmo” – inaccessível à
auto-observação passiva e acessível apenas ao ativo enfoque dialógico de si
mesmo, que destrói a integridade ingênua dos conceitos sobre si mesmo que serve
de base às imagens lírica, épica e trágica do homem. O enfoque dialógico de si
mesmo rasga as roupagens externas de si mesmo, que existem para outras pessoas,
determina a avaliação externa do homem (aos olhos dos outros) e turvam a
nitidez da consciência-de-si.
Se Goliadkin é o que é, suas idéias de nobreza são meras
fantasia (o ponto axial de toda a sua vida era a falta de autonomia
ontológica); se, por outro lado, Goliadkin é como se imagina, escapa de reconhecer-se
na mesquinhez de seu passado, dizendo “não sou eu”. Caso não se encontre na presença de outra
pessoa que não o conheça – e é para este que Goliadkin representa ser o que
ainda não é, pois ela não tem importância, - ou se não consegue evocar a presença
dessa pessoa em sua ausência, esvai-se seu senso da própria identidade.
A idéia do sósia tem interesse forte no que concerne ao
espelho, sonho, morte, três fontes de angústia, três mensagens de ambigüidade,
asseveram ao homem que ele é duplo, idêntico e outro, real e irreal, em nível
da psicologia individual, onde a experiência de um espelho vivo é cheia de
horror porque é cheia de detalhes.
Enquanto o espelho cria a imagem, o sonho cria, inaugura o
reino do imaginário. O espelho é a porta para a visão do outro mundo. O sonho
permite a atuação do indivíduo dentro daquele mundo, movimentando-se, armando
cenários e participando em todos os níveis do fantástico. O sonho “é
o teatro onde o sonhador é ao mesmo tempo o ator, o palco, o ponto, o autor, o
público e o crítico”. Não é verdade que os escritores
vivemos o teatro de nossas letras, ácidos críticos, gestos e atitudes
diferentes, esquecemos de viver tudo, da totalização, da totalidade?!
Na duplicação de padrões gerais, como aparece em Dostoiévski,
o grau de individualidade que a noção de sósia implica não pode ser
concretizado, enquanto o espelho cria a imagem, o sonho inaugura o reino do
imaginário. Integrar a duplicidade do ser idêntico e outro torna-se o problema
central do indivíduo à procura de sua verdade.
Em Os Demônios, a imagem de Stepan Trofimovitch está
invertida. O docente brilhante virou quase coitado. Seria incorreto, entanto,
dizer que a Segunda imagem não é do texto, pois chegamos a ela pela análise do
que está escrito. Uma como a outra estão dadas, embora de modo diverso, e é a
sua coexistência numa unidade que nos deve interessar. Para compreendê-la,
fazemos um experimento. Se descrevo alguém de modo contraditório, como
excelente, pena ser bobo, só a Segunda parte do juízo se aplica, a primeira
terá sido recurso retórico para aumentar o vigor da que segue; as duas
coexistem só no papel e não no objeto que visam; a ironia, aqui, é mero modo de
dizer.
Se descrevo alguém nestas
mesmas condições, como intelectual, pena haver aprendido somente a ler e a
escrever, e o que faz é ler alguns romances da literatura universal, fazer sua
própria interpretação, sem quais raízes fidedignas e dignas, só a segunda parte
do juízo se aplica, a primeira serve apenas para estabelecer a contradição, a farsa,
a mentira...
No texto de Dostoiévski, a
situação é mais complexa. A descrição é um pouco humorística, mas de boa fé, e
a admiração que exprime é consenso nos círculos educados da cidade. Ver um
docente brilhante em Stepan Trofimovitch não é finta do narrador, mas respeito
a uma imagem consagrada – o engano é um momento do real – cuja falsidade mesma
será o conteúdo positivo da outra face menos lisonjeira. A segunda imagem do
coitado, obtivemos lendo contra a corrente, procurando unificar as contradições
do texto. A cada passo os atos contradizem os belos nomes que a narração lhes
dá e sua aparência tem, fazendo que desponte o significado real da situação. A
verdade não é dada, nasce da precariedade evidente do que parece ser.
O
mais inteligente dos homens é, na minha opinião, aquele que se trata de imbecil
ao menos uma vez por mês, e já ninguém hoje é capaz disso! Outrora, a rigor, um
imbecil se convencia ao menos uma vez no ano de não ser senão um imbecil, no
presente – na-da, na-da, está acabado. Foram tão bem embaralhadas as cartas que
o homem inteligente não se distingue mais do imbecil. Fêz-se isso de propósito[17]
Desculpando-nos não apenas
a sinceridade, acima de tudo a dignidade, não há como não cair na gargalhada,
as cartas foram sui generis embaralhadas, para o efeito e resultado serem tão
perfeitos. As gargalhadas são a perfeição, como ser perfeito assim? Risível.
Stepan Trofimovitch é um
homem livre, mas é Varvara Petrovna quem o sustenta. A contradição ainda crassa
é mais do que ironia, tem intenção ontológica; procura representar o convívio
tenso de aparência e verdade no real. A aparência – o brilho de Stepan
Trofimovitch – é imediatamente dada, e a verdade – seu ser vulnerável – está
somente implícita. Esta relação de aparência explícita e verdade imediata é
decisiva para Dostoiévski, cujo tema não é a coexistência das duas, mas o
momento de crise, em que da aparência falida emerge a verdade.
A união dos contrários – aparência e verdade – a integração do
eu com o outro dentro do homem, jamais se dá por completo. É constantemente
ameaçada, destruída, e deve ser incessantemente reconstituída.
As etapas do processo de individuação, descritas por Jung sob
a forma do encontro com figuras arquetípicas, revelam-se através dos sonhos.
Antes de realizar a unicidade, é preciso reconhecer o outro como complementar –
a verdade complementa a aparência e a aparência complementa a verdade, sem o
qual impossível estabelecer o real, estabelecer a individuação – e não como
adversário.
O sósia age como adversário
de Goliadkin sênior, as suas intenções mais do que evidentes são de
destronamento, e o pior é que ele é arguto, perspicaz, sabe jogar suas cartas,
aproveita que Goliadkin sênior é ingênuo. Como o sósia irá reconhecer Goliadkin
sênior como complemento, se não é nada ingênuo? Como Goliadkin sênior irá reconhecer o sósia como
complemento, se ele é arguto, perspicaz, oportunista, um perfeito jogador?
Impossível o reconhecimento de ambas as partes.
Aquilo que o autor executa é agora executado pela personagem,
que focaliza a si mesma de todos os pontos de vista possível; quanto ao autor,
já não focaliza a realidade da personagem, mas a autoconsciência enquanto
realidade de outra ordem. O dominante de toda visão e construção artística
deslocou-se e todo mundo adquiriu um novo aspecto, enquanto que Dostoiévski não
inseriu matéria essencialmente nova.
O sósia desmascara Goliadkin. O que fazer? Primeiramente, é
óbvio, derrotar o inimigo. Falhando nisso, Goliadkin retira-se para o domínio
de sua imaginação, onde se agarra à retórica justiceira e humanitária e sonha
belíssimas reconciliações universais, onde esquece a parte inadmissível de sua
biografia. Torna-se vítima fácil. É comovente ver como se prende à decência
quando ela não pode ajudá-lo mais. Paga religiosamente as contas que o sósia
lhe impinge; paga tudo, paga a mais, como que para compensar ritualmente algum
negócio em que tinha pagado muito menos que a sua parte.
A distância entre a auto-imagem e o padrão de decência, de
honestidade, afirma a necessidade, para os indivíduos, de pagarem as suas
dívidas, de saldarem seus compromissos, tornando-lhes semelhantes ao modelo.
Nesse caso, a máscara é o outro substituído ao sujeito. Há dois aspectos neste
legalismo súbito de Goliadkin: fantasia de nobreza, e segundo, mais importante,
conforme o livro avança rendição incondicional. Goliadkin espera ser perdoado.
Aceita a ordem do mundo e lamenta a sua passada rebeldia, por pequena que tenha
sido. Põe sua esperança nos sentimentos paternais de seus superiores. Ele é
quem sempre esteve errado. Submete-se e espera encontrar paz – não suporta
estar em desacordo com o mecanismo que o esmaga. Adere moralmente à sua
destruição.
O alcance de sua atitude aparece quando ocorre o mais
inesperado: Klara Olsufyevna, a bela cantora da terna canção, escreve-lhe uma
carta, não muito crível, propondo-lhe fugir com ele.
“Nobre e amado cavalheiro:
Venho pedir-te, a ti, que sei que és um homem de sentimentos e
sofres por minha causa, a ti que eu nunca esquecerei, que me venhas salvar,
pois encontro-me em perigo. O caluniador - o intriguista que todos conhecem,
prendeu-me nas suas redes e eu estou perdida. Não pude resistir mas ele é um
odioso, ao passo que tu... Separaram-nos e têm interceptado as cartas que eu te
tenho dirigido. Um homem sem escrúpulos aproveitou-se da sua única qualidade –
a sua semelhança contigo... Mesmo quando um homem não é belo, pode seduzir pela
sua inteligência, pela força dos sentimentos, pelo encanto das suas maneiras...
Estou desgraçada! Querem casar-me à força e é o meu pai, o meu grande amigo, o
conselheiro de Estado Olsuf Ivânovitch que favorece o plano daquele que quer
apenas partilhar a minha posição social e servir-se das minhas relações. Mas
estou decidida a protestar por todos os meios ao meu alcance. Espera-me hoje às
nove horas em ponto, com uma carruagem, diante das janelas da casa de meu pai.
Há um baile em nossa casa. Eu escapar-me-ei e fugiremos. Não faltam lugares
onde se pode servir utilmente à pátria. Aconteça o que acontecer, lembra-te
sempre, meu amigo, que a inocência é, só por si, uma força.
Adeus. Espera-me com o carro diante da porta de entrada.
Entregar-me-ei à tua proteção, às duas da manhã em ponto. Sempre tua,
Klara Olsufievna”[18]
Eis o que respondeu à carta
de Klara Olsufievna integralmente:
Pense
bem, minha senhora: fique sabendo que, nos dias de hoje, já ninguém quer
habitar uma cabana. E neste nosso século industrial, minha querida senhora, não
se pode viver sem umas certas bases. O melhor exemplo disso é a senhora mesma –
Sim – dirá ela – basta ser-se chefe de repartição e habitar uma cabana à
beira-mar. – Mas em primeiro lugar, minha querida senhora, não há chefes de
repartição à beira mar. E depois á uma grande distância entre mim e um chefe de
repartição. Suponhamos que eu faça o meu pedido. Apresento-me, chego e digo:
quero ser chefe de repartição. E digo mais: defenda-me do meu inimigo,
responder-vos-ão que já há muitos chefes de repartição e que isto aqui não é como
em casa dessa tal francesa, que lhe meteu na cabeça esses famosos princípios,
cujo resultado está à vista. A moral, minha menina, é ficar em casa, respeitar
o pai e não pensar cedo demais em namoricar. Os namoros virão na altura devida.
Ora aí está. Eu estou de acordo sobre que é necessário possuir várias prendas.
É preciso tocar piano, saber francês, história, geografia, catecismo e
aritmética, e nada mais. Ou melhor, também é preciso saber cozinhar. Uma jovem
bem educada deve também saber cozinhar. Mas antes disso... Hão de impedi-la de
casar, não de persegui-la e fechá-la num convento e então que será de mim?
Serei obrigado a subir até à colina vizinha, como acontece nos romances
idiotas, a desfazer-me em lágrimas e a olhar a fria muralha do seu cárcere de
reclusão e a morrer, por fim, à maneira dos idiotas poetas e romancistas
alemães? Será assim, minha senhora?
Em primeiro lugar permita-me que lhe diga com toda a amizade que
não é assim que se deve agir. Em segundo lugar, merece umas palmadas e os seus
pais também as merecem, por a ter deixado ler livros francês que nada ensinam
de bom, e antes escondem veneno, um veneno mortal, minha querida senhora. Para
onde julga – permita-me que lho pergunte – que poderemos fugir os dois
impunemente?
Quer uma cabana à beira mar? Para nos pormos a arrulhar, a fazer
festas um ao outro e vivermos toda a vida cheios de alegria e felicidade? E
depois surgiria um passarinho novo na cabana... Ah, muito bem... E um dia eis
que diz a seu pai, o conselheiro de Estado Olsuf Ivânovitch: - pai, nasceu-nos
um passarinho, retire-nos, pois, a sua maldição e abençoe a nossa união.
Não, minha senhora, as coisas não podem ser assim. E, em primeiro lugar,
não haverá arrulhos, não conte com isso. Hoje o marido é o senhor e uma mulher
bem educada deve agradar-lhe em tudo. Quando à ternura, ninguém se importa com
ela neste século de grande indústria. Fique sabendo que o tempo de Jean-Jacques
Rousseau já vai longe. Hoje o marido volta do trabalho com fome e diz:
“Querida, tens qualquer coisa que se coma, aguardente e arenque?”. E então a
senhora devera ter sempre prontos a aguardente e o arenque. O marido
sentar-se-á diante da comida, cheio de apetite. Nem sequer olhará para a esposa
e dirá: “Vai para a cozinha, amor, vai olhar pelo jantar”. Dar-lhe-á um beijo
uma vez por semana e ainda por cima com indiferença. Vendo bem as coisas, é
assim mesmo. Mas que tenho eu a ver com tudo isso? Por que me envolveu nos seus
caprichos?
“O senhor é um homem generoso – dirá a senhora – um homem que
sofre por mim e que me é querido”.
Mas, minha senhora, em
primeiro lugar eu não sou homem que lhe convém. Não sei dizer galanteios, como
vê. Não sei dizer gracinhas às senhoras, detesto brincar de amor e a minha
cara, confesso-o, não se presta absolutamente nada para isso. Em mim não há
basófias nem cinismo. Eu sou um homem de senso, não gosto de intrigas e tenho
muito gosto nisso. Ora aí está. Ando entre as pessoas sem máscara de qualquer
espécie[19]...
Basta erguer o dedo para
tocar o sonho, mas Goliadkin não quer mais. Aceitou as regras que o aniquilam.
Olha Klara e a si mesmo com olhos de Excelência, e não olha excelências com os
seus próprios olhos. Não julga Klara como quem está enamorado dela, mas como se
fosse seu pai. Condena a ousadia da moça, sem a qual, entretanto, Klara não
poderia querê-lo. Faz reflexões sobre a má educação que ela deve ter tido, se
gosta dele. Ela não irá aceitá-la, pois ela não está à sua altura; já que o
quer; não o quisesse, e estaria sim à sua altura, mas não fugiria com ele. Goliadkin
abdica de seus desejos, que estão melhor inatendidos. Quer ser perdoado pelos
poderosos, e não quer empreender nada nunca mais. Acusa Klara, diz que é
culpada de sua desgraça, já que por amor dela piora em causa própria, do que se
arrepende.
Sonha.
Põe o seu destino nas mãos de sua excelência, nas mãos de seus superiores. Pede
proteção, pede que lhe mostre o apoio. Pede não seja arruinado. Olha para os
superiores como para um pai. Roga que não o deixem cair. Deseja recuperar a sua
dignidade, seu nome e sua honra.
No sentido heideggeriano, a
compreensão não se limita ao conhecimento intelectual. Representa um modo de
ser existencial que se estabelece como fundamento de qualquer conhecimento. O
conhecimento do outro, pois, supõe a compreensão da existência como ser da
coexistência. Diz-nos Van Der Leeuw que a relação ontológica com o outro se torna então uma projeção ‘dentro
do outro” da relação ontológica de si para si. O outro é um duplo de si”.
Além da realidade da
própria personagem, Goliádkin, o mundo exterior que o rodeia e os costumes se
inserem no processo de autoconsciência, transferem-se do campo da visão do
autor para o campo de visão da personagem. Essas componentes já não se
encontram no mesmo plano concomitantemente com a personagem, lado a lado ou
fora dela em um mundo uno do autor, daí não poderem ser fatores causais e
genéticos determinantes da personagem nem encarnar na obra uma função
elucidativa. Ao lado da autoconsciência da personagem, que personifica todo o
mundo material, só pode coexistir no mesmo plano outra consciência, ao lado de
seu campo de visão, outro campo de visão, ao lado da sua concepção de mundo,
outra concepção. À consciência todo-absorvente da personagem o autor pode
contrapor apenas um mundo objetivo – o mundo de outras consciências
legitimamente iguais a ela. Este Outro que fala tem de ser, necessariamente,
alguém que, de fora de um mundo fala para dentro deste, transformando-o. Caso
contrário não seria uma revelação e sim uma repetição, reiteração do mesmo. A revelação
tem de ser uma novidade transformadora que se dá na história.
A mediação entre os
instantes que se dão na transitoriedade e o instante a partir do qual a obra
significa o desvelamento do tempo se faz por meio da subjetividade narrativa
enquanto instância de organização da diversidade temporal.
Não se pode interpretar a
autoconsciência da personagem num plano sócio-caracterológico e ver nela apenas
um novo traço de personagem, considerar Dievuchkin, Gente Pobre, ou Goliadkin,
O Sósia, por exemplo, uma personagem gogoliana acrescida da autoconsciência.
Deve-se antes prestar bem
atenção no concernente aos “espirituais” – não está mais em nível racional o pensamento do
“grande russo”, ou seja das “categorias” filosóficas de seu tempo, mas em nível
de “espirituais”, teológicos-filosóficos:
“sonho”, “contemplação”, “alma-espírito”, “espírito”, “comunhão”, no que
diz respeito ao pensamento de Dostoiévski, por transcender à “análise” e à
“interpretação”, suprassumindo ao espírito, tomando dimensão humana, ascendendo
à compaixão, solidariedade, mas compaixão-solidariedade,
respeito-compaixão-solidariedade (por isto a tamanha dificuldade de penetrar no
seu íntimo, revelando-lhe: ainda falta à humanidade o essencial de seu caminho,
a sinceridade, que os sistemas continuam a sua trajetória de desejar a sua
exterminação.
Mas não houve e jamais
haverá sistemas no mundo que consigam abafar a voz de Dostoiévski... Deus responde por todas as outras dimensões:
como o próprio Dostoiévski disse que há coisas na alma do homem que só Deus
sabe. Compreender o eu/consciência e o outro/consciência há-de estar buscando a Koinonia, que significa
“comunhão”, tendo já amadurecido a contemplação. Dostoiévski, a nosso ver, é
escritor que revela a dimensão “humana-espiritual-humana”.
Meu
amigo tem razão. Passa-se em mim alguma coisa de incomum. Meu caráter sofreu
também uma transformação e minha cabeça anda mal. Começo a ver e a ouvir coisas
estranhas... Não são precisamente vozes... é como se, muito perto, alguém
tartamudeasse: “bobok, bobok, bobok!”[20].
Interpretando sob alguns
ângulos, ponto de vista, a comunhão do “bem e do mal”, do “sério e do riso”,
quando a seriedade mesma, a atitude dela, o que ele en-vela e re-vela, quando
se comungam é que o riso se faz presente. Então, diríamos que O duplo é uma
“tragédia do riso”, e quem ri de si mesmo é o vilão.
[1] Comentamos no
capítulo Genuíno pomo da sabedoria sobre as correspondências recebidas por
Dostoïévski sobre o fenômeno do desdobramento da personalidade, de que sofria
Dostoïévski. Os laços que unem uma obra à subjetividade de seu autor não podem
ser negados, especialmente em Dostoïévski, mas não têm um sentido único; a obra
forma seu autor tanto quanto é produto dele. O conhecimento da biografia do
artista, se oferece um interesse humano, não é absolutamente necessária à
contemplação aprazível da obra; e o que hoje se chama “análise sintomática”,
interpondo-se como uma grade que seria apenas uma tela, sobretudo gerá-la-ia:
redutora, a interpretação psicanalítica da arte, que muitas vezes foi moda e
sem dúvida continua como uma bela construção mítica, acaba por destruir seu
objeto. Aliás, o próprio Freud, apesar de suas hesitações sobre a genealogia da
obra de arte, reconhecia que a psicanálise
permanenţe muda a respeito dos dois mais importantes problemas, o do
gênio e o da elaboração da obra.
[2] SCHARZ, Roberto.
A sereia e o desconfiado. 2º edição. Paz e Terra. Rio de Janeiro. 1981. pág.
169.
[3] DOSTOÏÉVSKI,
Fyodor Mikhailovitch. O duplo. Trad. Oscar Mendes. José Aguilar Editora. Rio de
Janeiro. pág. 137.
[4] BACHELARD,
Gaston. A poética do Espaço. Trad. Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle
Santos Leal. Livraria Eldorado Tijuca Ltda. Rio de Janeiro. pág. 40.
[9] DOSTOÏÉVSKI,
Fyodor Mikhailovitch. Diário de um escritor. pág. 92.
[10] Idem, idem. Pág.
93-94.
[11] DOSTOÏÉVSKI,
Fyodor Mikhailovitch. Diário de um escritor. pág. 92.
[12] DOSTOÏÉVSKI,
Fyodor Mikhailovitch. Cartas. t. IV, Gosizdat, Moscou, 1959, p.5.
[13] Afirmando que “o
gênio é a disposição inata do espírito através da qual a natureza impõe suas
regras à arte”, Kant sugeria a idéia de que o ato criador do artista é uma
emanação do poder da natureza, dessa bela natureza “saídas das mãos de Deus” ou
“da Providência”. Mas, para Kant, tratava-se apenas de considerações
interpretativas. Tudo se passa como se, ele diz ainda, a Natureza manifestasse
uma arte de produzir intencionalmente belas formas capazes de suscitar em todos
os homens o sentimento de prazer: chegamos até a ver aí “um favor que nos faz a
natureza”. Enfim, se, numa fórmula um tanto esotérica da Crítica da razão pura,
ele fala de um esquematismo sem conceito como de “uma arte oculta nas
profundezas da alma humana” e se, na Crítica da faculdade de julgar, evoca a
noção de “esquema do supra-sensível”, Kant todavia contenta-se com essas
alusões toleradas como metáforas: ele não se resolve a fazer delas o objeto de
um desenvolvimento preciso, como farão depois dele os pensadores românticos;
assim, retomando a idéia do esquematismo da imaginação de Kant, Novalis tentará
elaborar a de um “fantástico transcendental”, à qual a própria razão deve
subordinar-se.
[14] DOSTOIÉVSKI,
Fyodor Mikhailovitch. Bobok. Edições de Ouro. Pág. 227.
[15] Há
algumas fotos no livro de David Magarshack, Dostoievski, retiramos esta “fala”
de Dostoievski nesta foto.
[16] DOSTOÏÉVSKI,
Fyodor Mikhailovitch. O duplo. Trad. Oscar Mendes. José Aguilar Editora. Rio de
Janeiro. pág. 138.
[18] DOSTOÏÉVSKI,
Fyodor Mikhailovitch. O duplo. Trad. Oscar Mendes. José Aguilar Editora. Rio de
Janeiro. Pág. 217.
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