ÁGUAS DE OUTROS ATRÁS - Manoel Ferreira
“(...)
esperança de que dia surgirá em que o consórcio moral das criaturas se
realizará ante o trono de Deus, deve ser
a grande esperança dos que ficam e dos que se vão.”
Machado de Assis
Entra-me o sol vivo e ardente pelas
frestas da veneziana, deixei-as abertas para entrarem os ventinhos da
madrugada, muito calor está fazendo nos últimos tempos. Calor não falta, é o
que mais faz aqui. É a nossa maior riqueza. Se os raios de sol dessem dinheiro,
os curvelanos seriam riquíssimos, o político não iria precisar enfiar a mão no
cofre público para construir mais uma pequena mansão na Paulo Frontin ou na Soares
dos Santos, as ruas entupigaitadas de pessoas colhendo raios de sol, e os
poetas teriam muitas inspirações para a poiésis do numinoso, oportunidade sui
generis de encherem os bolsos de dinheiro, poemas de grande beleza seriam
compostos, mas enquanto os raios de sol não são colhidos para comercialização,
contentemo-nos com as mediocridades versificadas, e são tantas que rimam
“águas” com fráguas. Se tivéssemos mar, o turismo enriqueceria a cidade, e
também os poetas enriqueceriam seus poemas com as águas de outros atrás.
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Parece
o sol vivo e ardente convida-me a deixar o leito de penas e idílios, e como que
re-vivê-lo. Re-vivê-lo! é esta a palavra, sem mais a colocar, sem mais a dizer.
Por que re-viver? Por que não viver na carne e nos ossos a vivacidade e
ardência do sol? Certo é que não me adapto ao calor, o desconforto não tem
limites – sempre, após o verão, vem-me a toda pompa a digníssima fluenza. Quando
estou certo de que poucos dias ou apenas horas me separam da sepultura, é mesmo
reviver o sol vivo e ardente. Enterrado e selada a eternidade, restar-me-ão
sombras e trevas. Será que elas são frias debaixo da terra? São elas tão
abstratas no mundo que não as sinto quentes nem frias. Nunca ouvi dizer, nunca
li a este respeito. Ninguém ainda re-tornou para dizer do frio das sombras e
trevas no túmulo, um clima sobremodo agradável. Clima agradável e odor
intragável, insuportável são duas coisas que não se encaixam: a solução é virar
cinzas, elas nada sentem.
Não
parece um escárnio da morte? Com efeito, nem é questão de imaginar a
decomposição de meu corpo ser a minha problemática com a morte, a
não-existência de outra vida após a morte ser a contradição de minha fé em
Deus, isto é, a ressurreição que nos prometera aos homens, é não entender os
seus mistérios em vida, morto não mais existirão, vou pensar que perdi tempo
precioso com questionamentos e elucubrações, deveria ter aproveitado cada
instante de meu viver com outras águas atrás. Os mistérios da vida também não
os entendo, contudo posso perquirir, questionar, refletir, mesmo que não os
des-vende colherei frutos deliciosos, chupar-lhes-ei até à semente, por todo
sempre do além ouvirei os louvores.
Não
parece que para melhor sentir a vivacidade do sol, a sua ardência paradoxal e
absurda, o que perder, deixando a vida, o mundo, o calor curvelano de trincar
os ossos, quer a morte que eu toque pela última vez os tesouros da felicidade
que me ficam na terra? Melhor fora, decerto, para minha sublimidade e
contrição, que a natureza me surgisse nos últimos dias com seu aspecto sombrio
e aflitivo; esplendorosa e magnífica, sentir-me-ia acintado, negligenciado na
sensibilidade: por que não me surgiu nos idos tempos da juventude à maturidade.
Sombria e aflitiva a natureza, cuidaria, ao sair do mundo, que deixava um
pesadelo e uma angústia, e que ia respirar os ares puros de uma vida sem igual.
Esplendorosa e magnífica, sentiria e pensaria, ao me despedir da vida, que
deixava um sonho e uma alegria, e que ia respirar os ares imundos do limbo.
Oh!
como o dia está bonito! O céu azul, o sol afogueado, a folhagem palpitando de
alegria agita-se ao sopro de um vento plácido e suave. As trepadeiras enchem-me
o quarto de perfume, que belo prazer para o olfato perfume das flores na aurora
de um novo dia, com um sol de torrar as varizes, cozinhar os miolos; lá vejo o
tanque calmo e límpido em que eu me banhava em pequeno, não sei dizer se as
minhas sensações não estão in-vertidas, mas o calor e os raios de sol na época
de minha infância eram bem mais fortes, o que teve como conseqüência plantar
árvores e mais árvores por todos os lugares, tornou-se a cidade mais arborizada
dessa Minas Gerais. É o mesmo ainda, diria até que na atualidade mais
contundente, as hipocrisias e farsas têm o poder de aumentar a temperatura.
As
paredes de pedra têm um aspecto mais venerável, mas tudo isso, aquela murta que
o rodeia, aquelas roseiras que ali brotam e enfloram sem cuidado de ninguém,
tudo isso me lembra o tempo de minha meninice. Vejo a jabuticabeira grande,
onde eu passava as tardes lendo Machado de Assis. As águas da torneira do
taque, as árvores, a flor, tudo me lembra a dita do tempo em que, sem cuidados
nem remorsos, eu só cuidava em ser feliz, sonhar com as letras e suas glórias, e amar os meus.
Onde
foi agora esse tempo? Onde foram de outras águas atrás os minutos e segundos do
relógio de pêndulo suspenso na parede da sala de visita, quando contava os
tique-taques, imaginando o futuro de alegrias? Onde foram as águas de outros
atrás, quando sentia presente alegrias inomináveis com o inverno, a primavera,
então esta me extasiava sobremodo, dizia que me sentia no “sétimo céu”? –
naquela época o “sétimo céu” estava na moda, para dizer de uma felicidade
enorme usava-se dizer “estou no sétimo céu”, creio que esta expressão surgiu
devido à revista Sétimo Céu. Passaram como passaram as folhas dos arbustos; mas
os arbustos, se perderam umas ganharam outras, e nem houve, neste abençoado
clima sertanejo, espaço algum entre a queda das primeiras e o abrir das
últimas. Só em mim, ilusões e esperanças que me caíram uma vez, não me
renasceram mais, e eu fiquei – não poderia deixar de sê-lo, enfim o destino é a
soma das folhas caídas e a promessa de outras ao longo do caminho – como tronco
árido e seco, chorando o que fui, vertendo lágrimas do que sou, lacrimejando o
que hei de ser.
Mas o
que dói, o que é sofrido em mim, o que me dilacera o íntimo, o que me fere os
tímpanos e retinas, é a alegria universal, a placidez com que a natureza vem
assistir à minha morte, garrida e alegre, como se fora um espetáculo dos mais
circenses, as lágrimas do palhaço Osvaldo despertaram nas crianças a risada
pura e cristalina, e no mesmo quadro as risadas dele causaram nelas choros
compulsivos. Isso é dom e talento. Os adultos louvaram de pé a sua grande
representação.
Ó mãe
cruel, que não honra o traspassamento de seus filhos com uma lágrima de dor e
um suspiro de mágoa. Parece, não o sendo, não saberia quê, que lhe apraz
criá-los para matá-los, produzi-los com uma ilusão, compô-los com uma sorrelfa
de férteis razões do tempo e das verdades, ab-sorvê-los com um engano,
assimilá-los com um erro, engoli-los com uma dúvida, verdadeira condenação dos
que não aguardavam o desengano, não esperavam os erros, não contavam com as
frustrações e fracassos, e acreditaram na ilusão e nos idílios...
Também
eu lhe mereci esta ironia, melhor dizendo, cinismo do tempo e de outras águas
atrás? Também, e não tenho qualquer pejo ou orgulho de afirmá-lo com todas as
declinações dos verbos latinos e dos sufixos gregos. Que outro ab-sorveu mais a
ilusão das sorrelfas do que eu? Que outro sorriu mais à idéia do desengano do
que eu? Que outro tirou mais sarro dos brios que se ostentam transparentes na
face dos imbecis e caguinchos. Ninguém
houve que o fizesse, não haverá outro que o faça em tempo algum. Há coisas,
atitudes e ações que são de uma única pessoa, outros jamais serão capazes de
imitar, parodiar, plagiar. Estas atitudes, gestos estavam destinados a mim,
realizei-os.
Tem
direito, ó natureza, - quem sou para lhe contestar os méritos e valores, para
lhe negligenciar os dons e talentos? – a vestir hoje as suas melhores e
magníficas galas para assistir, na acepção de estar presente, não a morte da
alma, essa já morreu e se esqueceu de
quedar-se, mas a do corpo, que se vai finar miseravelmente como um inseto
pisado pela dama dispersa, pela rainha distraída, pela deusa perdida.
Sinto-me
fraco, vivenciei labutas atrozes por toda a vida, por mais que seja deleite,
por mais que seja satisfação, por mais que seja re-velação de felicidades
registrar nestas linhas de entre-linhas escusas e espúrias, não me sinto em
condições de continuar a descrever ou narrar, não sei, a continuidade desta
manhã de sol vivo e ardente, que precede os últimos dias de minha vida nestas
utopias sertanejas do brio e dignidade.
Esta
poltrona antiga, forrada de couro cru, molde antigo, foi de meu finado avô,
nela sentava-se e maquiava-se antes de seus espetáculos, descansava-se depois,
mirando no espelho os seus gestos e atitudes, brincadeiras, que ocasionaram na
alegria das crianças e nas lagrimas dos adultos. Feliz homem que pôde chegar à
mais avançada idade e só morrer quando o mundo lhe começava a ser em demasia pesado.
Todas as glórias da vida, e tantas que a razão não tem competência para
elencar, gozou-as na plena liberdade de um espírito que se não acovardava, que
se não pejava, e de um coração que não dava atenção aos palhaços fazerem rir a
todos, sem limite de idade ou sofrimentos, mas no camarim choram as dores e
angústias. A impavidez serviu-lhes de amparo, consolação; com essa segurança
inteira é que atravessaram os anos, sem nada deixar do que levavam, porque
também levavam muito pouca coisa.
Tenho
diante de mim um espelho. Tão logo me levantei da cama, dirigi-me ao banheiro,
lavei os meus membros, pus-me frente ao espelho. Vejo nele re-fletida metade do
corpo; tenho vontade de ir ver o resto. Que feições apresentarei hoje? Serão as
mesmas desoladas e entristecidas de ontem? Serão as mesmas animadas e vivas de
anteontem? Serão as mesmas esperançosas e alegres de há quatro dias? Uma ou
outra coisa, que importa isso? A agulha da morte sinto eu dentro de mim aguda,
dilacerante, mortal... Que valem as feições? Que valor podem ter? Esperanças ou
terrores para o moribundo, sintomas ou provas para a ciência. Nada mais.
Sinto
passos. Abre-se a porta. É o meu amigo de tantas águas de outros atrás. Veio visitar-me. Trocarmos
algumas palavras de nosso passado juntos, nossos diá-logos acerca da vida e dos
sonhos, nossas discussões acirradas sobre as intempéries e sofrimentos, para
ele eram húmus de outros horizontes, para mim a presença incólume da
incompetência dos homens de se libertarem.
- Ah!
é você Henrique!
- Como
está passando hoje? Está melhor?
- Não
sei. Talvez que sim.
-
Deixa dar-lhe um abraço; está muito melhor... Olhe-se ao espelho.
O
espelho res-ponde-me como meu amigo Henrique. Estou muito melhor; minhas
feições são outras, há um brilho nítido nos meus olhos. Como que re-nasço.
Principalmente esta visita de meu amigo é que me dá vida... Oh! se eu morresse
longe dele! Tudo se altera, tudo se corrompe, tudo se desnatura, mas o amor
daqueles que nos dera o ser, esse nunca; é o amor por excelência; o amor que preside
aos sonhos, re-vela na vida os desejos mais recônditos, ama na mocidade e
consola nas desilusões como estas em que me vou do mundo. Dera-me Henrique o
ser com uma idéia que assimilei por completa, trago-a no íntimo até hoje, e
sempre que me vem à consciência sinto-me outro, dis-posto a aprofundá-la mais e
mais, não ser apenas realidade de minha vida, mas o real insofismável.
Tudo
se alegrou à entrada de Henrique. Lembrou-me de quando chegava a minha casa,
tirava os meus livros do lugar – saindo, tinha de recolocá-los a todos em seus
devidos sítios, para quando necessitasse de um não tivesse de revirar a estante
de cabeça para baixo para encontrá-lo; sempre tivera problemas em encontrar as
coisas -, folheava aqui, ali, dizia algumas coisas interessantes, passávamos
manhã inteira ou tarde inteira conversando, assuntos não nos faltavam,
terminava um, iniciava outro, e por mais que possa parecer estranho, mas havia
uma linha que os ligava, e se pensasse depois de nosso encontro em tudo que
conversamos veria com nitidez a mensagem de vida e esperança existente neles.
Coitado! Tem as feições entristecidas, circunspecto, os olhos vermelhos de
chorar: foi por mim, diria que algumas lágrimas que lhe desceram o rosto teve
de enxugá-las, antes de entrar em minha casa, não queria ser visto por mim com
lágrimas nos olhos, iria deixar-me entristecido, tudo o que preciso é de
alegria e felicidade, os visitantes levantarem o meu moral. Lágrimas sinceras as que verteu. Nelas, eu
creio. Saltam livres e espontâneas dos olhos quando o coração já se encontra
sobremodo cheio; e só corações tais se podem encher desse modo.
Olha-me.
Talvez se lembre de quando esteve em minha casa, estando eu acamado, não podia
mexer-me na cama, problema de coluna. Esteve comigo por alguns minutos, não
conseguiu mais, sentia-se incomodado comigo na cama, estava acostumado com a
minha inquietação, jovem mais que ativo. Despediu-se, prometendo retornar em
dia outro. Só apareceu três dias depois, não tendo deixado de ligar para saber
notícias minhas, quando já podia sentar-me na cama, caminhar até o banheiro com
alguma dificuldade. Demorou-se mais, comentando com alegria jovial haver lido
com carinho o livro que lhe presenteei, se não me engano de Tolstoi, A morte de
Ivan Illitch. Parece que procura adivinhar nas minhas feições a hora da nossa
eterna separação! Não, não nos abandonemos à dor; a mesma separação pede agora
toda a efusão dos sentimentos, toda a expansão das almas...
- Você
não sente vontade de dar umas voltas, entrando e saindo de ruas, como fazíamos
há muitos anos atrás, conversando, rindo, preocupados em responder aos nossos
questionamentos?
- Sim.
Gostaria...
- Não
quer fazê-lo agora. Prometo que andarei bem devagar, você segurará no meu
braço. Podemos conversar muito.
- Ah,
não, Henrique... Estou muito fraco. Não estou indo nem ao banheiro sozinho.
Preciso da ajuda de minha enfermeira. Aqueles tempos já se foram, Henrique. O
importante é que as lembranças nos habitam o íntimo.
- O
que gostaria de fazer, hoje?
-
Quero passar hoje o dia inteiro no meu quarto. É dia de descanso. Quero hoje
viver no pleno repouso do espírito. Ademais, esta janela põe-me em comunicação
com a natureza. Acordei com os raios do sol na veneziana. Como está bonito o
dia! Já fiz a minha saudação ao sol. É
bom sinal o sol. Você, quantas vezes, me disse sobre o numinoso, com idéias
lindas, com sentimentos esplendorosos, com mensagens cristãs as mais divinas.
Eu sempre o adorei como o olhar profundo de Deus. Ele basta para me dar vida.
Não morrerei hoje, decerto. Hei-de morrer no dia em que alguma nuvem cobrir o
astro do dia. Então as sombras me levarão às sombras. Acredite.
- Oh!
não fale em morrer.
-
Ser-lhe-á difícil a minha morte, não? Compreendo. Tantos anos de amizade,
tantos anos de sinceridade e lealdade, tantos anos de questionamentos e buscas
do eterno e sublime. Mariinha outro dia me ligou, pedindo-me para persistir na
vida, querer viver mais longos anos, será muito difícil para ela, para vocês
todos.
- Pois
é...
- Já
estou sofrendo muito, Henrique. Este câncer no pulmão tirou-me todas as
energias.
- Se
houvesse nos ouvido, a mim e a Mariinha, em parar de fumar. Engraçado isto,
você fez tudo o que quis, conseguiu realizar coisas bem difíceis, mas o cigarro
não foi capaz de largar. Veja o seu cinzeiro, está cheio de tocos de cigarros.
- Não
tive força de vontade para isto... Olhemos a morte como ela deve ser olhada:
livramento e não aniquilamento.
Silenciamo-nos.
Passei a olhar através da janela, o azul do céu naquela manhã. Na transparência
das angústias e tristezas, de palavras falsas e mentirosas, a alma-solidão me
parece mais profunda do que as águas límpidas do rio, passando ao lado do
sertão, sendo inspiração de poetas e prosadores: a lua iluminando na superfície
o movimento de passagem, de travessia, as águas seguindo os desígnios, re-flete
no coração a poesia que embala; se ofereço as águas para saciar a sede do
espírito, é que são leitmotivs para o sonho do eterno sublime. Sinto as águas
passando-me na intimidade, na fonte de meus sentimentos de sensibilidade outra,
seguem as veredas do rio especial que fora criado para eles, deixando na
pó-eira das estradas os seus traços, e atrás outras águas vindo, passando, e
nos versos do poeta a estesia e arrebiques das quimeras e fantasias. À luz de
sentimentos e emoções, ideais de canduras e pureza, re-cria sendas, tece
caminhos de busca e desejo, e morre na praia
de seus idílios, antes mesmo de entrar na água, entre nado e mergulhos
profundos, põe-se a seguir até chegar à lua no horizonte.
São as
sensações e intuições que estou sentindo, enquanto penso, olhando as nuvens
azuis do céu límpido e transparente desta manhã, o amigo Henrique sentado na
poltrona ao lado de meu leito, como seria interessante estar desenhando letras
nas linhas de papéis sem margens, esquerda e direita, sem margens de ambos os
lados, ímpio de merecer as glórias do tempo e sorrelfas, pois que mostraria a
mim os senões de ermas ilusões, as poeiras que escondem as pedrinhas redondas
na terra seca, mostraria a mim todas as coisas que me habitam, quiçá
acreditasse são o que irá fecundar os séculos e milênios vindouros, e não
simplesmente cinzas misturadas à terra, que cobriu os restos mortais de uma
esperança.
- Você
não gostaria de escrever um poema? – pergunta-me o amigo Henrique; não me
assusto com a sua pergunta, sabe ler com perfeição os meus pensamentos – Há
alguns meses que não toma da pena para uma única letra.
- Não
consigo segurar a caneta, meu querido... Tremo muito.
- Se
ditasse, eu escreveria para você com muita alegria e satisfação.
- Quer
ter consigo como lembrança minha o meu último poema, que guardará com muito
carinho. Você leu tantos poemas meus, de alguns tem mesmo muita admiração. Os
que tinha de escrever já estão escritos; com muitas dificuldades consegui pro-jetar-me,
os professores não liam minhas obras, se alguém comentasse sobre elas viravam a
cara, torciam os narizes, desconversavam, tudo porque dissera numa entrevista
que professores não me ensinaram nada, não tinham competência para isso. Se os
alunos conhecem alguns poemas meus é por influência dos pais. Provei com
dignidade que nenhum artista, poeta ou escritor, precisa das interpretações dos
professores, não precisa de suas palmas, isso é dos leitores, eles é que fazem
nossas vidas. Se os professores estudassem com seus alunos as minhas obras, com
efeito só ouviriam deturpações, adulterações, tudo conforme suas ideologias e
interesses escusos. A minha obra não teria tido valor algum. Só muito mais
tarde, quando não sobrasse nenhum deles no mundo, outros iriam descobrir os
seus valores estéticos, sensíveis e transcendentais. Cumpri meus desígnios,
realizei a vida, deixo agora para os talentos novos. É hora de partir, deixar o
espaço para outros. Nada mais há o que ser escrito, meu querido. Desculpe-me frustrar
os seus desejos, é quase como o seu último pedido a mim, é você aqui quem o
faz, eu não teria nada a pedir senão que seja muito feliz e realize os sonhos
que ainda não foram como idealizou, e que conheço bem.
-
Deixe de besteira. Vamos mudar de assunto.
- Se
revelo quem sou, se me digo sem linhas ou entrelinhas, o que poderia estar
desejando após, uma estratégia de missão se faz mister, um arrebique de mentira
se faz imprescindível, um ornamento de hipocrisia des-faz dos idílios as
sorrelfas. Se não tripudio com os “us”, “pós” e “ins”, como compor das
letras-arrebiques-da-forma as palavras que desfacelam os brios, esvaziam os
méritos, infernizam as glórias, como amar a vida no que ela tem de in-glórias e
in-tempéries? Para mim, Henrique, isto é que é ser esquecido sem direito a
reclamar, dizer haver sido injustiçado, antes os poetas e escritores tinham
vidas outras por sina, desígnio, herança dos tempos, hoje são utensílios, por
inveja e ciúme, despeito, para justificar suas mazelas e incompetências. São
condenados em vida ao desprezo, e na postumidade serem lembrados e louvados,
haja glórias que id-ent-ifiquem suas importâncias. Por todo o sempre – isto!
Pela eternidade, aquilo! Tudo o que está por serem sonhos dentro de outros
sonhos quero con-“templar” à luz de meus dias, quando por uns, poucos sempre,
sou hóspede, sou quem trás no bojo e algibeira novas ilusões e sorrelfas de
idílios, sou eu visto e encarado como realidade contra as hipocrisias, sou eu
convidado a re-presentar.
São
onze e meia. Henrique despede-se, terá de lecionar a uma hora, precisa antes
passar no banco para fazer um saque,
tomar banho, almoçar. Retornará amanhã cedo para me fazer outra visita.
Irá procurar em sua estante um livro muito interessante para eu ler, irá
fazer-me muito bem. Rindo, diz-me que irá tentar reproduzir as minhas palavras
sobre a revelação de quem sou. Muitíssimo poética.
- Não
me ditou o seu poema, mas recitou-o com muita vivacidade e sentimentos puros.
Satisfez-me o pedido, querer ter o seu último poema – disse a si mesmo,
desejando que tais palavras o confortassem, soubesse ele con-viver com a idéia
de que tenho pouco tempo de vida, dias apenas.
Despede-se
com um abraço muito caloroso.
Risíveis
perspectivas de nada nos lábios em cujas superfícies inferior e superior a
língua ardente toca com volúpia de sensações excêntricas que se transformam em
palavras, mas nada é capaz de sentir, talvez de interesses espúrios
id-ent-ifica a mofa, deboche dos homens que perambulam, deambulam pelas ruas e
avenidas. Não sorriem, nada riem, mas quem os percebem e intuem vêem,
acreditam, pia crença, que se sentem no íntimo alegres e saltitantes, querem
despertar todos para sentirem serenos, tranqüilos, esbanjarem felicidades, a
vida é linda, esplendorosa. Deus nos doara a plenitude, Deus nos doara um
tesouro inestimável, nada se lhe assemelha, rendamos graças e tributos – estão
todos equivocados, em verdade, debocham das esperanças que alimento nas
pré-fundas mais íntimas, riem das posturas e condutas de moral ilibada, mazelas
e pitis, são verdadeiros ilusionistas, estão iludidos com o sentimento de
esperança que nutrem num cantinho bem especial do coração.
Uma
hora da tarde... O calor está infernal, nem um ventinho disfarçado entra pela
janela aberta de cabo a rabo, o ventilador está com problema. Estou sem camisa,
sentado na poltrona em que esteve Henrique. Acabei de almoçar uma sopinha leve
de macarrão com sardinha. Acabo de ler duas páginas dos Salvos de Davi. O
rei-poeta consolou minha alma. É destas consolações que preciso, destas que
preparam o espírito para a eternidade. Se, como queria Henrique, escrevesse um
poema, não estaria consolando, preparando-me para a eternidade, estaria
desejando consolar as pessoas que estão nas mesmas condições minhas, até piores
que eu, num leito de CTI, só esperando o último suspiro, enfim ninguém escreve
para si mesmo, com as minhas letras, ao invés de consolar-me, desesperar-me-ia,
outro poema estaria escrito no íntimo, esperando o instante de ser registrado,
e talvez não tivesse tempo de fazê-lo, morreria com ele.
Hoje,
de manhã, quando acordei e entrava pela veneziana os raios vivos e ardentes do
sol, acusei a natureza por vir garrida e alegre assistir talvez ao meu último
dia, dizer-me que a curtisse, que deixasse todos os prazeres se manifestarem em
mim, oportunidade como esta é difícil, no túmulo encontraria trevas e sombras,
escuridão perene, e com elas impossível me será vislumbrar o sol vivo e ardente
de todas as horas, o perfume das rosas, os rios, as florestas, montanhas, o chão
seco e rachado do sertão. Como estava meu coração? A dor desvaira e eu não sei
o que sinto nem o que digo. A verdade é única, qualquer outra é elucubração
ridícula que serve para despistar o medo da morte, a verdade é esta grande
verdade. “Ó infinito,/ é enfim para ti que eu vou,/ como gota de água desviada/
de outras águas atrás/ que se recolhe ao oceano”. Dissera a Henrique a morte
ser livramento, não aniquilamento. Sinto que há dentro em mim uma coisa que
anseia por livrar-se desta prisão para lançar-se na eternidade e no infinito.
Desejo libertar-me das palavras, sem elas teria eu sentido a beleza da vida,
seus momentos, suas situações, seus esplendores, sua simplicidade, a cada verso
que escrevia sentia-me preso ao mundo, à terra, aos sofrimentos e dores de
todos os homens, suas frustrações, fracassos, desejos de liberdade e
transcendência, não podia transformar isto, ficava só nas palavras de fé e
esperança, com imagens e metáforas de sonhos que podem ser verbos de outras
realidades. Mesmo depois que adoeci, conhecendo intimamente as dores do câncer
e os sofrimentos da morte à soleira de minha escrivaninha, nunca deixei de
escrever, pó-etizar as alegrias, felicidades que habitam os interstícios do
espírito, sem ser romântico, jamais o fui, mas re-versificando os problemas,
angústias do não-ser em busca do ser. Houve críticos e mesmo amigos dizendo que
antes de minha doença meus poemas e minha vida no quotidiano de minha
existência se comungavam, era eu autêntico e verdadeiro, a vida vivenciava a
arte, a arte vivenciava a vida, mas depois de minha doença só me preocupei com
a beleza de meus versos, com as mensagens de suas entrelinhas, distanciei a
obra de minha vida, no fundo de mim só dores, sofrimentos, medos e angústias da
morte, do fim irreversível.
Ninguém
morreria por mim, ninguém merecia sofrer com as minhas dores, ninguém era
responsável pela minha doença, só eu tinha de isto viver, mas as minhas
palavras e versos podiam intensificar mais e mais a esperança da vida, até
mesmo sublimarem a morte e a eternidade.
Grande,
suave, consoladora esperança!
Sem
ti,
que
fora o passamento
senão
a maior dor e o maior suplício?
Mas,
deixar o mundo com a esperança
de
que aos olhos mortais
se
abre mundo novo,
tão
outro que não este,
mundo
em que a virtude resplandecerá
e
a paz eterna
compensará
as atribulações da vida!
Alegra-me,
comove-me, alvoroça-me a idéia de que não vou por inteiro à sepultura; é que
ali, à porta do cemitério só ficará de mim o que há de pior em mim, mas que o
espírito, a luz desta lâmpada, a que tão cedo vai escasseando o óleo, há de
re-montar ao foco da grande luz o verbo da Vida, o amor à Vida, à vida do Verbo
Amar.
Deixarei
saudades? Deixo. O amigo Henrique sempre lembrará de uma vez que havia num de
meus poemas escrito “o homem é a continuidade dos seus sonhos e utopias”, e que
ele quase chegara a rogar que mudasse a disposição das palavras: “a
continuidade dos sonhos e utopias é a verdade do homem”. Satisfiz a sua
vontade, e ele se sentiu feliz e alegre como eu jamais o vira tão extasiado.
Sempre lembrará de nossas tardes andando
nos arredores da cidade, entrando e saindo de ruas, crianças maltrapilhas,
raquíticas, brincando à porta de seus casebres, e nós falando dos pobres de
quem serão o reino do céu, nossos sentimentos profundos por assistirmos a tanta
miséria, tantas vidas sem destino, sem sonhos, talvez fossem mais felizes que
nós que tínhamos nossos sonhos e utopias, não sabíamos se iríamos
concretizar-lhes, se seríamos felizes e realizados.
Sempre
tive muita vontade de dizer a Henrique que com a minha morte seguisse a sua
vida, não ficasse lembrando de nossas vidas sempre juntos, nossas esperanças e
fé, não sofresse, tivesse em mente que o importante realizamos juntos: a
amizade sincera e verdadeira. Nunca tive coragem de dizer-lhe isto por saber
que no íntimo deseja-me a vida, deseja-me poemas e mais poemas, deseja-me a
felicidade de encontrar com os leitores pelas ruas da cidade, recitando
passagens de poemas que apreciaram bastante, dizendo o quanto a minha obra é
importante para eles.
As
saudades dos leitores, passando à porta dos restaurantes, vendo-me sentado,
compenetrado, escrevendo meus poemas, tomando cerveja, dizendo-me, rindo:
“vocês os poetas e escritores não vivem sem o botequim, sem os aperitivos e
cervejas. Inspiram. Por que inspiram?” O tempo as consolará, e a “esperança de
que dia surgirá em que o consórcio moral das criaturas se realizará o trono de Deus, deve ser a grande esperança
dos que ficam e dos que se vão”
Tive
um sonho esta noite. Creio que este sonho é que me inspirou a refletir tudo
isso neste dia. Antes, por mais que me sentisse angustiado, entristecido, não
tinha coragem suficiente para fazê-lo, mergulhar profundo em mim, na minha
vida, em meus sentimentos íntimos diante do fato irreversível de que tenho
poucos dias de vida, não chegarei a viver um mês mais a partir de hoje. São
reflexões que levarei comigo para a sepultura. É o que levarei de minha vida, é
o meu inventário de uma vida voltada às letras, aos desejos de espiritualidade
e eternidade. É o meu muito que irá comigo, é o muito de que sinto orgulhos
inomináveis. Poderia pedir a Henrique que escrevesse para mim. Seria o meu
testamento, testamento de poeta é hipocrisia sem limites.
Sonhei
que assistia à minha coroação na posteridade. Foi sonho! Que fiz eu para
merecer os aplausos dos homens, considerações e reconhecimentos? Gastei a minha
mocidade... em quê? Aqui entra a parte
sombria do meu sonho. Gastei a minha mocidade em amar, com as forças
ardentes e vivas do meu coração, o etéreo, a sublimidade, os diamantes que
riscam o éter, as pérolas que enfeitam o que há-de vir, o por vir de todas as
verdades que nutria em meu espírito, a amar a quem mostrou que me não merecia.
Embalde procurei desviar de meu espírito esta lembrança que me acabrunhava e me
levava à sepultura, tão logo acordei; por minutos a fio fiquei a imaginar
- como o fazia na juventude, para mim
isto era muito importante, era o húmus de minha vida, depois de haver sido
reconhecido e considerado, deixei de pensar nestas coisas - as ruas e avenidas
entupigaitadas de pessoas assistindo à passagem do meu féretro em cima de um
carro do corpo de bombeiros, leitores chorando, outros entristecidos,
lembrando-se de minha presença nos botequins, quando passavam e me viam
escrevendo meus poemas, dizendo seria difícil outro poeta como eu na história
de nossa comunidade, um espírito rebelde, polêmico, sarcástico, extremamente
crítico, nunca deixei pedra sobre pedra, dizia o que pensava e sentia, jamais
senti medo disto, alguns leitores até diziam se eu fosse prosador com o meu espírito crítico seria crucificado,
viveria solitário, faria inimigos até por correspondência, extremamente odiado
pelos hipócritas, farsantes, falsos, imbecis, ridículos, medíocres, mesquinhos,
mas por ser poeta e a linguagem e estilo sensíveis disfarçaram nas entrelinhas
o que pensava das criaturas de Deus.
Pobres
rosas aquelas do meu jardim! Lembra-me o lado feliz da história de minha
mocidade. São as relíquias da fé pura e da paz do espírito. São os tesouros da
esperança que alimentava em mim, esperança de em todos os jardins as rosas
embelezassem as ruas, desse prazer aos transeuntes que passassem sentissem
profundo o odor delas e isto lhes despertassem para as felicidades e alegrias,
a vida coroada de prazeres e realizações. Naquele tempo eu me julgava um
querubim, escrevi muitos poemas inspirados nos querubins. E era-o. Não sei que
demônio as perseguiu depois e fez-se-lhe introduzir no espírito. Desde aí perdi
o ideal das rosas dos jardins embelezarem as ruas para ganhar a morte. Nem
podia ser de outro modo... As ilusões não acrescentam nada à vida humana, diria
até que são as causas de todas as desgraças, frustrações e fracassos.
Cumpria-me deixar as ilusões, quimeras e fantasias, tão queridas e amadas aos
poetas, para me entregar por inteiro à procura do “Ser”, à procura da
“Sublimidade” e do “Verbo” que selassem com primor e galhardia a vida em sua
essência.
Tenho
uma idéia. Vou fazer uma coisa que chamarei o meu testamento. É a revista de
meus papéis. Entregarei em mão de Henrique o que julgar não fui autêntico o
suficiente em meus sentimentos, desejos e vontades, esperança e fé, escrevi por
escrever, para não ficar sem a pena em mão. Em verdade, já quis queimar esta
papelada, mas ele próprio me pediu que não o fizesse, faz parte de minha
história por mais não concorde, desse-lhe de presente, guardaria com muito
carinho e amor, se não quisesse que publicasse, não publicaria mesmo. Diria:
“Foi-me presenteado. Pediu-me que não fosse publicado, não permitisse qualquer acesso”.
Deixarei o que puder dar alguma idéia, não à posteridade – posteridade,
imortalidade, eternidade têm importância enquanto a obra está sendo realizada,
para satisfazerem a vaidade e o desejo de poder, depois perdem qualquer
sentido, quanto mais no fim da vida -, mas aos meus amigos. Eles não sabem
talvez nada do amigo que lhes morre. São poemas que não figuram nas antologias
publicadas.
Cerremos
um pouco estas cortinas. O sol queima demais. Assim é melhor. Meu Deus como
estão estas gavetas! A mesa está repleta
de livros, papéis, uma bagunça generalizada. Dir-se-ia haver matéria aqui de
sessenta poemas... – nesta gaveta, há muitos outros dentro de pastas de
plásticos no arquivo. Era eu muito cuidadoso com a minha vida, metódico, mas
com a doença deixei de sê-lo, perderia tempo em arrumá-las, tinha muito a
escrever ainda, o último poema não fora escrito. Sinto que não o escrevi, não o
farei. Talvez. Que sou eu senão poemas verbais do ser! Houvesse algum tempo
trabalharia todos eles, quiçá publicasse a última antologia de minha vida.
Gostaria sim de fazê-lo. Conversarei com Henrique, terá minha autorização para
revisá-los. Já conhece a linguagem e o estilo, não lhe será difícil revisão criteriosa.
Deitemos
isto fora que não presta: cartas, cartões de alguns indivíduos que se diziam
amigos meus, no princípio, no meio e no fim. Por anos cercaram-me
interesseiros, hipócritas, oportunistas, a ralé do métier literário, até que
lhes mandei catar coquinhos no asfalto. Nossa, meu nome virou osso na boca de
cachorros. Por onde andava percebia fofoquinhas ao pé dos ouvidos! Não dei
atenção. Não é amigo aquele que alardeia a amizade: é traficante; a amizade
verdadeira sente-se, não se diz – sempre dissera haver coisas que se dizem,
haver outras que não se dizem, dentre elas a amizade, não se lhe diz,
sente-se-lhe bem profunda no espírito. Sempre quis dizer de minha profunda
amizade por Henrique, dediquei-lhe vários poemas, só a senti. Mas a que vem
esta filosofia? Deitemos fora, simplesmente, estas cartas e cartões. Henrique
não vai querer guardá-las, só as coisas verdadeiras foram seus interesses na
vida, enquanto viver a verdade será a sua vida. Certa vez perguntou-me o porquê
de guardar cartas e cartões de quem traficou amizade comigo, eu que sou por
inteiro contra os hipócritas e falsos. Respondi-lhe que objetos de defesa, não
mais cair no mesmo. Riu de chorar.
Aqui
estão uns versos: Crisântemos de antanho. Ah! foram versos que escrevi quando
uma leitora me presenteara no lançamento de uma antologia de contos, a única
publicada, não escrevi outros. Henrique até hoje insiste e persiste em saber o
porquê de não mais tê-lo feito, a minha veia de contista era excelente, estilo e linguagem autênticos,
originais, sobretudo em termos da sátira. Não deixou de ser verdade o que lhe
explicara: contista satírico é muito comum, tornou-se até lugar-comum, mas
poeta satírico é dificílimo de encontrar. Existe outra verdade nisto, mas
jamais pude verbalizá-la. São versos do bom tempo, tempo em que as flores eram
símbolos e metáforas da esperança. Devo guardá-los? Para quê? Não, não servem;
eram talvez bonitos, mas cantavam a mentira, endeusava a falsidade... Não
prestam.
Mais
versos... São fragmentos de um poema satírico: Tabernáculo de eunucos. É do
tempo em que a academia queria enjaular-me em seu covil de velhacos. Diziam
todos que era a minha veia a sátira poeta, sera o “sangue que corria nela”. Quê
metáfora mais insossa! O que esperar de velhacos? Poeta não tem veia
específica. O que respondi ao membro e também à academia: “meu sangue não corre
em veias de um covil; meu sangue correrá nas veias de quem deseja a verdade”.
As circunstâncias, situações mudam tudo, o gênio, o caráter e as
tendências; e o homem de ontem nem
sempre é o de hoje, as águas de outros atrás nem sempre serão as águas que
chegam à soleira do oceano, e nele se perdem, se confundem. Foi o que me
sucedeu. Se eu tivesse direito a uma biografia ou a um elogio histórico dava
este ponto ao escritor ou ao professor Henrique para estudar e desenvolver. As
mudanças de gênio, caráter e as tendências iriam dar “pano para manga”. Não os
diminui, não os negligenciei, exacerbei-os ainda mais, tornei-me um homem
paradoxal, mas foi assim que pude vislumbrar e contemplar a estética, a beleza.
Este
poema, se eu houvesse terminado, haveria de agradar, talvez. Tem por assunto o
aparecimento em Atenas de três eunucos que adoravam o tabernáculo, rendiam-lhe
graças por serem eunucos, e toda a gente de lá deitou-se a imitá-los, para
cobrir, mesmo aos seculares, as deficiências aleijões de suas personalidades,
condutas e posturas, caráter e moral, ética, atitudes e gestos, sobretudo as
canalhices di-versas. O ideal era retornar a Sodoma e Gomorra e realizar tudo o
que não fora possível lá, uma comunidade destituída de qualquer senso. O
sacrílego Nilton Borges era o meu herói em cuja boca punha eu minhas idéias e
sentimentos acerca da hipocrisia reinante em nossa comunidade.
Começa
com ele na passagem de ano, jantando com dois amigos num restaurante ao lado de
uma papelaria na rua Afonso Pena, gritando a plenos pulmões: “Feliz 10010! Que
os jegues andem sempre de quatro pés com o rabo no meio das pernas”. Devia
tê-lo terminado. Infelizmente, ficou no primeiro canto, doze páginas. De que
serve mais? Os jegues andam de quatro pés, perderam o pelo os rabos de tanto
roçagarem nas pernas. Não foi preciso meu poema para a realidade se re-velar.
Se houvesse terminado, publicado, com certeza os jegues seriam extintos,
nenhuma cultura ou sociedade vive sem eles. São de extrema importância no desenvolvimento
e no progresso social, político; só não o são em termos da religião e das
artes. Jegues puxando a carroça pelas ruas e avenidas não é nada poético, nada
religioso; religiosamente, é um desrespeito à criatura que Deus mais caprichou
nos instintos, não possui qualquer inteligência.
Uma
carta de Lidiane Vergueiro. Foi das primeiras que me escrevera. É apaixonada.
Não declama nem recita em cântico e versos o seu amor por mim, éramos grandes
amigos. Fala de seu amor inconteste pela natureza, por Deus, o artífice do
universo, da felicidade, o primeiro degrau para a espiritualidade, a ternura
aos íntimos e familiares, a graça da pureza. “Amo-te, ó poeta das esperanças e
do ser, como nunca amei a ninguém; sinto que encontrei em você o corpo vivo e
ardente dos meus sonhos de ser plena e sublime, de atingir a inocência das
palavras e dos gestos, de real-izar o verbo do amor e da fé. Fria eu, como
sentem os que me rodeiam, os que comigo convivem? Sou reservada, fechada,
porque é preciso sê-lo. Não se sai abrindo a intimidade a todos os ventos”.
Era o
amor como eu o compreendia, como a minha alma ardente o desejava, amor sem
interesses, amor sem efusões da carne e da libido, amor sem caprichos e
vaidades, amor ao “ser”, amor à “verdade”, amor às “sendas perdidas”. Lidiane
não teve tempo de ser amada por alguém que lhe revelasse ainda mais a
profundidade do sentimento de amor que habitava seu espírito, falecera num
acidente trágico na rodovia para Ipatinga. Amou-me como poeta, como amigo, quem
lhe id-ent-ificara o que em sua alma e espírito habitava.
Guardemos
esta carta. Há-de ficar ao lado destas outra, escrita por Denise Amaral, quem
cantava a todos os ventos e cata-ventos seu amor carnal por mim, seus desejos
de acordar atracada ao meu corpo, olhar para o infinito através da janela e
agradecer a Deus, render-lhe graças pelos prazeres da carne, dos ossos, do
corpo, contraste tamanho que assusta e repugna, irrita e admira, faz-me lembrar
Lima Barreto, as mulheres que o cercavam estavam só interessadas em seus
méritos e talentos artísticos. Re-verso da medalha; face sombria depois da face
brilhante; ponto corrompido depois do ponto são.
Leio a
carta de Denise, dias antes de participar sua mudança para Foz do Iguaçu, para
ser secretária de um vereador, com quem se casaria dois anos depois:
“O
que devo fazer, ó poeta, é fugir de você. Se é real esse amor que digo nutrir
por você, acredito que longe de seus olhos e de sua sensibilidade é que saberei
ser verdade. Você é o poeta das esperanças e do verbo, sou eu a fuga da razão
que me enclausura, algema e acorrenta. Ora, eu erro, errei. Salvo-me do erro,
reconhecendo que foi erro e dizendo francamente que fui leviana, e que as
minhas promessas de servir-lhe em todos os momentos da vida foram puerilmente
falsas. Console-se e anime-se, irá encontrar quem o ame verdadeiramente...”
A
carta continua; é toda no mesmo sentido.
Fecho
a gaveta. Sinto-me sobremodo distante, circunspecto. Não continuarei arrumando
esta gaveta. Tirarei um tempo para isto a cada dia. Preciso descansar um pouco,
sinto-me estafado. Ficarei sentado na poltrona de meu quarto. Lerei algum
livro.
Conheci
um rapaz, poeta como eu, e como eu sonhador e crente, a mais não poder ser, nas
melhores utopias, fantasias, quimeras, sorrelfas e ilusões desta vida.
Não
era rico, devia viver por si; todavia, pôde alcançar meio de preparar-se para
uma profissão literária. Foi estudar, embeber-se de conhecimentos e
sensibilidades da arte poética, literária. Disse-lhe eu com empáfia: “Não se
deixe corromper pela razão, se possível, para melhor proveito tirar de seus
estudos, in-verta-a. A razão tem o poder de corromper as intuições poéticas, a
transcendência do espírito”. Tinha ele ao lado de sua sensibilidade e espírito
poéticos grande bom senso, e a ele deveu correr os primeiros anos de seus
estudos sem cair nos laços de amor. Teve algumas fantasias, mas fantasias
simplesmente, que começavam e terminavam na mesma noite. A sorte preparara-lhe.
Depois de muitas circunstâncias que não vêm ao caso narrá-las ou descrevê-las,
achou-se diante de uma mulher, com quem se sentiu divinamente id-ent-ificado,
satisfazia os seus sonhos de amar verdadeiramente, de ser amado, os seus
pro-jetos de poeta, de homem. Estava em circunstâncias especialmente
romanescas. Força da iluminação divina que os impeliu, ao poeta, à professora,
um para o outro. Conheceram-se, amaram-se. Naturalmente, pode haver quem
pergunte com que amor se amaram? Foi com o verdadeiro amor, o amor que
consorcia desde a primeira hora as almas, as vontades e os pensamentos para
nunca mais se separarem. Nunca mais. O poeta real-izou sua vida de versos e
sonhos. A professora real-izou sua vida de ideais de verdade e de justiça
social e política.
Amaram-se
pois. Quê amor profundo e verdadeiro existe entre eles! Quê vida de entregas
este amor lhes proporciona! Quê harmonia e sin-cronia existem entre os desejos
e ideais que nutrem pela vida! É preciso observar que o poeta tinha sede de
amor, tinha sede de con-templar o conhecimento, a vida. Atravessara um deserto,
onde as miragens sucediam-se de hora em hora, e chegava ao oásis da vida, uma
fonte, um rio de águas cristalinas, uma floresta silvestre, uma palmeira.
Determinou não seguir em frente e descansou, com a longa caravana das suas
ilusões, sorrelfas, fantasias, e utopias, sobre a relva, à sombra da palmeira,
à beira da fonte, à soleira do rio sem margens, sem pressa... Desculpe esta
linguagem romanesca e oriental: é própria da imaginação exaltada que adquiri
com a leitura de Tagore.
O amor
do poeta e da professora prosseguiu cada vez com mais força e mais intensidade.
Mil projetos, mil planos formavam ambos na doce intimidade dos seus corações.
Eram duas almas sinceramente poéticas. Viam e con-templavam o resto do mundo
pelo prisma do amor e da fantasia, do respeito e solidariedade pelas pessoas,
pelos pobres e miseráveis, pela fé em Deus, pela esperança do verdadeiro amor
entre as criaturas como Jesus pediu-nos que o real-izasse.
Não
desejo entrar nas mil particularidades do amor entre o poeta e a professora.
Versos, flores, ósculos sinceros e castos, tudo isto que se troca entre casais
enamorados, todos esses episódios romanescos e tão velhos como o mundo, tudo
isso se deu entre os meus amigos. A professora não versificava, de vez em
quando contava, escrevia contos cujo tema era o amor sincero entre as criaturas
de Deus, não publicou, doou-lhes ao marido que os guardava com muito carinho,
para se inspirar neles e versificá-los.
São
nove da manhã.
Passei
uma noite tranqüila – creio haver sido resultado de me cansar com a arrumação
de minha gaveta, as lembranças e recordações que me habitaram. Não acordei
única vez. Há alguns meses que isto não acontece. Acordo e fico a pensar na
vida, na minha ida deste mundo. Sonhei que estava bom e vivia com minha mãe em
nossa casa completamente arborizada, estávamos sentados num banco de mármore
encostado na amurada da sala de televisão de janela de vidro. Deitado em seu
colo aconchegante, lia poemas de Mário Quintana, enquanto ela, ouvindo, olhava
para os transeuntes passando, saltando a linha do trem de ferro. Voltavam os
meus dias de poeta, e eu cantava em estrofes inspiradas a ventura que me dava a
paz do coração e do espírito.
Não
sei por que, esta perspectiva de felicidade já me não desgosta, e nem já me
causa ressentimento a alegria sensaborona, expansiva e radiante da natureza,
como ontem pude viver assim que acordei e me deparei com os raios de sol vivos
e radiantes entrando pela veneziana aberta de meu quarto de dormir.
Ao
mesmo tempo, a idéia tão poética dessa vida difícil e dolorosa de quem não tem
mais muito tempo de vida, está-se despedindo do mundo, dos íntimos, dos amigos,
das noitadas escrevendo versos, vivenciando outras emoções e sentimentos,
experimentando outros reais e realidades, dos encontros com os ad-miradores, de
suas recitações de passagens de meus poemas de que tanto gostaram, e lhes deram
outras esperanças e fé. Isto me traz a vida real, e eu olho já os sonhos do
passado e o desta noite como ilusões sem realidade prática. A prática é outro
verso. Não trans-igir com os desvios dos homens, mas viver preparado para eles,
tal é a lei regular que se me afigura devem ter todas as consciências honestas,
dignas e previdentes.
Sou
agora o homem-prosa, vivo terra-a-terra, livre das quimeras que me atordoaram e
nas quais não encontrei senão
expectativas e ansiedades. Quis forçar a ordem das coisas e opor aos
sentimentos comuns a idealidade dos meus sentimentos. Hoje, se não reneguei o
culto da poesia, não faço praça dele, de modo que ontem que me vi tão
desanimado com a idéia de que não me restam muitos dias de vida, logo, logo,
serei mais um habitante do “jardim santo”, lá me tornarei cinzas, ficarei só na
memória dos amigos e íntimos, de alguns leitores e admiradores, foi, por assim
dizer, o último dia de um poeta.
Henrique
prometeu-me voltar hoje para mais uma visita. Mas tive a alegria de recebê-lo
por volta das sete e meia em minha residência. Pedi-lhe que se sentasse à
máquina de escrever, datilografasse o que iria ditar-lhe. Exímio datilógrafo
que é não demoraríamos a noite toda ditando eu, datilografando ele. Ditei-lhe
este Águas de outros atrás, que o felicitou muito, por anos vem esperando
voltar eu ao conto. Terminamos às onze e meia da noite. Despedimo-nos com um
projeto: mandar publicar um livrinho só com este conto.
-
Procure esquecer, meu amigo, sua doença, e, sem esquecer a missão que Deus lhe
deu, não confie de um mundo frio e egoísta as santas aspirações e inspirações
de sua espiritualidade e do seu ser – disse-me ele, dando-me um abraço afetuoso
e amigo.- Agora, tome um leite frio e descanse. Amanhã será outro dia para
você.
-
Obrigado, Henrique... Muito obrigado por tudo.
Ouvi
seu assobio, fechando o portão de minha residência. Assobiava Sem lenço nem
documento, de Caetano Veloso.
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