DE ALMA!... SEGREDOS E MISTÉRIOS - Manoel Ferreira
Sei que são fortes os motivos que insisto em viver,
buscar o verbo amar com entrega e doação; sei também que foram grandes as
perdas, mas sem elas não teria despertado e querido ver-me superá-las com
engenho, e em poucos anos de lutas e desejos os mais profundos consegui não
apenas superá-las, mas construir o que por longo tempo estive à procura.As
dores tomaram-me de assalto o que para mim era o mais importante.
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Não perdi tudo – necessitava perder o
que fora perdido para o novo encontro, desencontros, e o que lera como
dedicatória num livro de presente de um dos maiores e melhores amigos: “Há
instantes em que encontramos. Há outros que desencontramos, mas é preciso não
deixar o fogo da lenha da fornalha apagar”.
Ninguém, enfim, perde tudo – creio que
perde o que tem a perder, o que imprescindível para o crescimento, o
amadurecimento. Existe uma chama dentro de mim, de todos os homens, que nunca
se apaga. Inevitável mesmo é soprar sobre ela, mesmo diante destas ou daquelas
situações, de pessoas que desarrumaram nosso lar. Cada situação ou
circunstância de cinza no humano é a revelação de uma chama divina.
Ás vezes, não sabendo se atribuir isto
à condição, à natureza humana, é difícil admitir encontrar uma saída. Torna-se
para o homem mais fácil deixar as pedras rolarem ladeira abaixo, rápidas ou
lentas, o tempo seguir o seu itinerário. Isto não exige quaisquer esforços,
empreendimentos.
Preferimos ficar em nossos ódios,
ressentimentos, mágoas, rancores, culpando o mundo e os que nele habitam por
nossas infelicidades, vivendo como vítimas do destino, querendo piedades e dós
de todos os que nos cercam.
Refazer a vida não é fácil, mas é
possível! Devemos tentar quantas vezes forem necessárias. A persistência, a
insistência.
Para mim, não fora difícil – isto
significando que fora fácil de modo algum -, desde quando intuí o caminho seria
o de deixar as águas fluírem normalmente. As águas prometeram-me devolver as
primaveras, não me queriam ver um mar morto. Deixe-as vazarem, levarem-me para
bem longe tudo fora mágoa em minha vida.
Pedi que as águias levassem-me para bem
longe das praias as lembranças que me amarravam em muitas dores e sofrimentos.
Escrevi com as mãos, ainda que vazias, a palavra “silêncio”, nas areias de
todos os desertos por que passara. Pedi ao silêncio que não deixasse a
esperança perder-se nos sibilos de ventos de entre as serras. Pedi aos verbos
que devolvessem ao meu coração a oportunidade de tentar de novo. De tentar mais
uma vez amar.
Digo, dizendo, a vida não forçar
ninguém à infelicidade ou à alegria, o último gesto é ser o homem a manifestar,
os últimos passos são o homem a dar nas trilhas a serem percorridas. Aos
pedidos todos que fizera, recebi como resposta que se encostasse o que fora
rompido, perdido, a forma voltaria, e de novo os sonhos visitariam os meus
anseios...
Seria muitíssimo para mim, se nalgum
instante interrompesse a caminhada perdida e confusa, olhando para trás e
percebendo que passei toda a vida com a sensação de ser apenas cacos. Não podia
viver em metade, ou estava todo, ou algo de mim ficaria fora da história, que
me desejava inteiro.
Acreditei em tantas coisas. Na beleza,
na sinceridade das pessoas, no eterno que abrigava as amizades e deixava, na
memória dos ventos e sibilos, um disfarçado ar de herói, passei a vida em
brancas nuvens – adulterando um pouco o sentido do adágio: “Quem passou a vida
em brancas nuvens não viveu, vegetou” -, não sofri e tive dores como os homens.
Sabe, viajante do sublime, eu
acreditava poder ser feliz. Acreditava num mundo grande, onde os homens
pudessem se saber solidários, compassivos, onde de mãos dadas se satisfaziam
com as conquistas dos outros. Acreditava que a minha rua daria nas estrelas...
a fresta de uma árvore, em verdade, um mangabeira, daria no infinito, na eternidade.
Algo veio a bater de frente com tudo
isso. Devastou as florestas que cobriam minhas serras e encantavam as estrelas
que velavam o ossuário da terra. Tudo foi parecendo um vazio, uma abismo, eu
querendo um caminho que levasse ao verbo amar, sempre, que me levasse a ser,
sempre, um humano melhor, e tendo que conviver com a sensação de não conseguir
ouvir-me ser.
Sonhei as sementes do sagrado
desvelando-se a mim e dando ao mundo motivos maiores, podia sentir o gosto dos
frutos que colhia. Sonhei com os homens grandes, capazes de tudo por terem dito
suas palavras. Homens capazes de dar a vida por um sonho de liberdade e
solidariedade, vidas capazes de amar o impossível. De não temerem as madrugadas
escuras e solitárias, com suas chuvas, na hora de estenderem a mão a quem quer
que fosse. Cavaleiros solitários, sempre partindo, deixando para trás rastros
de saudades e melancolias e um desejo de reencontro.
Acho que tinha conhecimentos, sabia
como viver melhor porque admitia ser possível viver melhor. Fiz de minhas mãos
uma estrada para ir mais longe.
Não sei porque estou falando isso. É
que foram tantas as vezes que fiz silêncio, ao escutar as águas seguindo o seu
itinerário sem pressa, sem margens, ao escutar o grito do mundo, e hoje calou o
mundo e eu posso falar. Às vezes, tudo o que preciso é que alguém me empreste o
coração e deixe minhas palavras tão guardadas irem como uma cabeça se abrigar
entre o peito e o ombro.
Venho, mais uma vez, à beira deste rio
de águas límpidas. Trago, como uma escrita a ser ainda traduzida, sinais de
tudo que a vida escreveu na minha face. Linguagem que poucos entendem,
compreendem. Falas silenciosas, vozes mudas. Só quem é muito íntimo chega,
aborda e compreende.
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