BREVES LAPSOS DE SOSSEGO - Manoel Ferreira
Há
pessoas, por todos os milênios haverá, até a consumação dos tempos, que, por
preço nenhum, por sentimentos verdadeiros dos amigos e íntimos, se animaria a
entrar num cemitério à noite. Por que será, hein? Nunca entendi isto, já
espremi os miolos à cata de uma explicação, desisti de fazê-lo. A dúvida era se
por medo de virem almas penadas ou da morte mesma que o cemitério mostra. Só
quem tem o dom de ver almas pode vê-las, o número destes dotados é bem
reduzido. Não é necessário estar andando dentro de um cemitério à noite para
depararem-se com elas, pode vê-las a qualquer momento, em qualquer lugar; de
tanto vê-las, acabam-se acostumando, torna-se uma coisa normal. Pensando deste
modo, acabei por acreditar quem, por preço nenhum, não se anima a entrar num
cemitério à noite, é que tem medo da morte, apesar de que, como diz S.
Agostinho num poema, a “morte não em nada”. Já passei diversas vezes à noite na
rua do cemitério a passos largos, nalgumas vezes corri, tive medo, não sei se
de fantasma, se de a morte estar ao meu lado, desejando persuadir-me a
entregar-me a ela, tornarmo-nos uma só coisa, e seguirmos juntos por este mundo
sem porteiras e cancelas. Noutras vezes, do ladinho dos dois portões, passei
tranqüilo e sereno, fumando, olhando para a escuridão lá dentro, enxergando as
lápides claras, as cruzes, não tive qualquer medo, pensando com os meus botões
quem lá dentro estava não sairia jamais.
Haveria
algum dia em que as almas exsurgissem para um passeio no mundo dos vivos? Que
dia seria este? Por muito tempo esta pergunta não saía de meus pensamentos,
idéias, tive medo de se tornarem fixos, não mais me desvencilhar dela, até a
morte, quando pudesse respondê-la com eficiência e sabedoria. Não a respondi,
mas não se tornaram fixos os pensamentos e idéias, isto porque tive certeza
absoluta, quase uma iluminação divina, de que algum dia seria capaz de
res-pondê-la, era o a-núncio da esperança. Se continuasse com ela nos
pensamentos e idéias jamais seria capaz de res-pondê-la, teria de deixá-la
livre dentro de mim, e nos breves lapsos de sossego que isto me causasse pensar
quando a vida mesma se exsurge dos mistérios e enigmas e mostra a sua sagrada
face.
Não
faz muito, duas semanas, passando à porta do cemitério de manhã, onde não
entrava por quase seis meses, havia dito a mim próprio que não mais o faria, só
meu cadáver entraria para ser sepultado, a razão deixo de explicá-la, aqui não
importa, tive vontade de visitar a sepultura de um grande amigo. O coveiro está
na calçada de fora, varrendo, perguntando-lhe eu se poderia informar-me onde
era a sepultura Randolfo Barata, dizendo-me que não sabia, era necessário olhar
no livro. Algumas vezes estive nesta sepultura rezando em memória deste grande
amigo, agradecendo-lhe por sua amizade sincera, seus conselhos que me
orientaram e muito nos caminhos de minha vida, lembrando-me a sepultura estar a
poucos passos do portão de entrada. O coveiro estava no portão ao lado do posto
de gasolina. Se não fosse naquele portão, teria de atravessar no meio das
sepulturas até a entrada do outro ao lado da rodoviária, e isto eu não queria
fazer, o que acontecera comigo no cemitério deixou-me verdadeiramente com medo.
Para que o coveiro olhasse no livro, teria de ir com ele até a administração,
andaria um bom espaço. Estive por desistir do empreendimento, poderia rezar
para ele do lado de fora. Desejava tocar na lápide de Randolfo Barata, sentir a
sua presença, lembrar-me de nossos encontros. Só haveria uma possibilidade:
entrar pelo portão ao lado da rodoviária. Assim o fiz. Andei uns dez passos e
encontrei o que procurava. Orei por sua alma, fiz-lhe os meus agradecimentos.
Saí às pressas.
Descendo
a avenida, não é que me veio a resposta da pergunta que fazia havia um senhor
tempo: se haveria algum dia em que as almas exsurgissem para um passeio no
mundo dos vivos. Coisas deste gênero já haviam acontecido comigo diversas
vezes, tendo eu explicação mais que real, isto é, há tempo para tudo. Só não
imaginava, se não houvesse acontecido, continuaria sem imaginar haver tempo
para saber que dia as almas exsurgem para um passeio no mundo. “Somente no Dia de Finados”, dissera com os
meus botões, isto porque não queria falar comigo, eu estava um tanto quanto
espantado, e uma resposta desse naipe a queima-roupa poderia assustar-me inda
mais, sentir medo de estar à beira de minha hora irreversível, por isto estava
respondendo. Os botões aceitaram com tranqüilidade, sentiram-se sossegados e
calmos, podendo continuar a dizer a mim próprio que somente no Dia de Finados é
que exsurge dentre os mármores, as sepulturas de chão duro e seco, um que outro
fantasma. Se em qualquer dia, teriam de sair do cemitério, andarem pelas ruas
da cidade, estarem no meio dos vivos, e retornarem quando sentissem que a
saudade da vida e dos homens havia se dissipado. No dia de finados, não, os vivos estão por todos os lados visitando a
sepultura de seus entes queridos, colocando flores nela. Mas seria que os
poucos fantasmas prestassem atenção a qualquer vivente? Se em dias normais
prestariam, é que assim esperariam que os vivos pensassem neles, lembrassem que
estavam enterrados, recordassem de suas relações, seus momentos de felicidades,
suas trocas de dedos de prosa pelas ruas, nos bares, esquinas, praças da
cidade, os sentimentos de amor, carinho, ternura que nutriram uns pelos outros.
Andaram, andaram e não sentiram de perto que os vivos se lembravam deles.
Apesar de frustradas, ninguém se lembrou delas, enquanto no meio dos vivos
estiveram, mas a saudade que sentiam do mundo, da vida, foi dissipada, houve a
ilustríssima compensação. No Dia de Finados, não teriam qualquer necessidade de
prestarem atenção a qualquer vivente, com o fim real de se lembrar delas, isto
porque se encontram sobremodo ocupadas em limpar do limo suas próprias lápides,
em roubar de outros defuntos flores para as dispor, artisticamente, ao pé de
seus túmulos esquecidos.
Se é
uma coisa que não entendo é plantarem árvores à porta do cemitério, em nossa
comunidade são plantadas palmeiras. Só tenho uma explicação para isto: enfeitar
o cemitério. Os mortos não precisam de enfeites, não precisam da beleza da
entrada de cemitério. Árvores, palmeiras dão sombras às sepulturas. Às vezes,
dão sombras às que estão próximas às amuradas, mas não são só elas que lá
estão, há tantas outras ao longo que são castigadas pelo sol e pela chuva. Não
pensando em beleza, em aparência da entrada do cemitério, com suas árvores ou
palmeiras, mas pensando no que a sombra dá de alegria aos vivos, seria
interessante dar alegria aos mortos, plantar árvores por toda a extensão do
interior do cemitério, haverá sombras incidindo em todas as sepulturas. Isto
será feito jamais. As palmeiras continuarão à entrada, quem as plantou ou
possibilitou serem plantadas se sentirá orgulhoso, cheio de vida, por havê-lo
feito. Dizem por aí que fora um político quem mandou plantar as palmeiras nos
meados do século XX, e que até a sua morte vangloriou-se de seu grande feito.
Quando
as pessoas morrem é que as coisas acordam, no silêncio da paz recuperada.
O
relógio de parede pode tricotar descansadamente os seus segundos, sem que os
mortos venham meter o nariz no seu trabalho, ora achando-o muito rápido,
apressando o dia da morte, ora arrastado demais, postergando o fim inevitável,
a vida está muito difícil, complicada, não há qualquer realização, os sonhos
foram esquecidos, não, o relógio está sendo arbitrário em trabalhar arrastado.
O mais singular é que, se o relógio parava, o vivo, que agora está morto,
dava-lhe corda, para que ele não deixasse de bater nunca, e ele pudesse contar
todos os seus instantes perdidos. Invenções há, que se transformam ou acabam;
as mesmas instituições morrem; o relógio é definitivo e perpétuo. O derradeiro
homem, ao despedir-se do sol frio e gasto, há de ter um relógio na algibeira,
para certificar-se e saber com eficiência a hora exata em que morre.
Dominus
Paixão era da categoria das chamadas pessoas sensíveis, dessas que tudo lhes
toca e tange. Se alguém lhe perguntava: “Como vai, Dominus?”, ao que qualquer
pessoa normal responderia: “Bem, obrigado” – com Dominus a coisa não era assim
tão simples. Primeiro fazia uma cara de indecisão, depois um sorriso triste
contrabalançado por um olhar heroicamente exultante, até que esse exame de
consciência era cortado pela voz do interlocutor, que começava a falar em
coisas outras, que, aliás, Dominus Paixão não estava ouvindo... A pergunta de
como estava, como ia, lembrava-lhe sempre de depois das quatro horas da manhã,
tendo dormido cedo, por volta das dez horas, mais tarde, por volta das duas
horas, não importava, acordava às quatro e até a aurora estava sentado na
poltrona da sala de visita, olhando o pêndulo do relógio, pensando que cada
badalada do pêndulo significava um segundo a menos de sua vida, de nada
adiantaria ele atrasar o relógio, os segundos, minutos, horas do mundo
continuavam a trajetória até a sua morte, e continuaria badalando para os
outros vivos.
Estava
eu na sala de visitas de sua casa, o relógio da parede continuava badalando os
segundos, e Dominus nos últimos segundos de sua vida, estava de câncer na
próstata. Chamaram-lhe o padre para lhe dar a Extrema-Unção. E, quando o
sacerdote lhe fez a tremenda e horripilante pergunta, chamando-o pelo nome:
“Dominus Paixão, deseja arrepender-se de seus pecados capitais, veniais?”, vi
que, na sua face devastada pela erosão da morte, a Dúvida começava a redesenhar,
reanimando-a, aqueles seus trejeitos e caretas, numa espécie de chinfrim
ressurreição. Que sujeito esquisito, estranho era o Dominus Paixão! Nunca
respondia as perguntas que o faziam. À pergunta do sacerdote se era de seu
desejo arrepender-se de todos os pecados estabelecidos e dogmatizados pelo
cristianismo da Igreja Católica – há um cristianismo advindo e professado por
Jesus Cristo, por Deus, há outro cristianismo dogmatizado pela Igreja Católica.
A resposta não foi nem “sim” nem não”; seria acaso um talvez, se o padre não
fosse tão compreensivo. Ou apressado. Despachou-o num átimo e absolvido. Que
fosse aborrecer São Pedro à porta do Céu com a sua indecisão de se arrependia
ou não de seus pecados que Cristo professou no mundo. Se não respondesse, iria
para o inferno; conforme os pecados cometidos de que estava arrependido,
poderia até ficar no céu, desfrutar os prazeres, felicidades e alegrias do
paraíso celestial, caso contrário, iria direto para o inferno. Não teria
alternativa, respondendo ou não, iria para um ou outro lugar. Para São Pedro,
quem não responde se está arrependido dos pecados, é que sabe que irá para o
inferno, o silêncio é apenas uma chantagem barata e ridícula.
Até
hoje, eu imagino Dominus Paixão a indagar:
- Mas
o senhor acha mesmo, tenente Amarildo, que o sacerdote poderia ter me absolvido
dos meus pecados?
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