LETRAS DE INFINITUDE RE-CRIADA - Manoel Ferreira
O equivoco
supremo é crer que algo inventamos, quando em verdade o que fazemos é continuar
ou simplesmente copiamos. Tanta gente pasma ou vocifera diante de pecados, sem
querer ver que outros iguais pecaram, sem se dignarem a olhar para eles como
coisas bem naturais, humanas, e ainda outros estão pecando, por várias outras
terras pecadoras. Pecados são semelhantes a notícias ruins: encontram-se por
todos os cantos desse mundo sem fronteiras e cancelas, andam em grandes velocidades, lugar algum pode
ficar sem eles, são inerentes à vida, sua natureza, condição, instintos, e tudo
o que se desejar imaginar, elucubrar.
Andamos
em boa companhia. Não nos hão de lapidar por atos que são antes efeito de uma
epidemia do tempo. Andamos na companhia da luxúria, da inveja, da gula; andamos
na companhia da ladroagem deslavada dos políticos, da cobiça das mulheres
alheias, de matar os outros sem causas ou motivos. Ou lapidem-nos – como será
possível diante de tantas epidemias de nosso tempo? -, mas no sentido em que se
lapida um diamante, para se lhe deixar o puro brilho da espécie. Neste ponto,
força é confessar que ainda há por aqui impurezas e defeitos graves. Há
inépcia, por exemplo, muita inépcia. Quando não é inépcia, são inadvertências.
Todos
os juízos sobre o valor da vida se desenvolveram ilogicamente, e portanto são
injustos. A inexatidão do juízo está primeiramente no modo de se apresentar o
material, isto é, muito incompleto, em segundo lugar no fato de que cada pedaço
do material também resulta de um conhecimento inexato, e isto com absoluta
necessidade. Nenhuma experiência relativa a alguém, ainda que ele esteja muito
próximo de nós, pode ser completa a ponto de termos um direito lógico a uma
avaliação total dessa pessoa; todas as avaliações são precipitadas e têm que
sê-lo. Entre as coisas que podem me levar ao desespero supremo está o
conhecimento de que o ilógico é necessário aos homens e que do ilógico nasce
muita coisa boa. Apenas os homens sobremodo ingênuos podem acreditar que a
natureza humana pode ser trans-formada numa natureza puramente lógica. Mesmo o
homem mais racional precisa, de tempo em tempo, novamente da natureza, isto é,
de sua ilógica relação fundamental com todas as coisas.
O que
mais encanta na humanidade, deixa-me em estado de êxtase? É a perfeição. Há uma
quantidade incontável de conflito de lealdades de por baixo do sol. O concerto
de louvores entre homens pode dizer-se que é já música clássica. A ópera de
proselitismo entre as autoridades pode dizer-se que é já peça de teatro
satírico. O teatro das hipocrisias entre os homens pode dizer-se que é já
cântico dos cânticos. A maledicência, que foi antigamente uma das pestes mais
perniciosas da terra, serve hoje de assunto a comédias fósseis, a romances
arcaicos. A dedicação, a generosidade, a justiça, a fidelidade, a bondade, a
lealdade, a sinceridade, andam a rodo, jamais se viu tanta numa só década de
início de século, como aquelas moedas de ouro com que o herói do grande e
inigualável Voltaire viu os meninos brincarem nas ruas de El-Dorado. Se vivemos
próximos demais delas, de uma pessoa em cujo íntimo elas habitam viçosas e
frescas, é como se repetidamente tocássemos uma boa gravura com os dedos nus:
um dia teremos nas mãos um sujo pedaço de papel, o in-verso de todas elas, e
nada além disso. Também a alma de uma pessoa, ao ser continuamente tocada,
acaba se desgastando; ao menos assim ela nos parece afinal – nós jamais vemos
seu desenho e sua beleza originais. – Sempre se perde no relacionamento íntimo
com pessoas desta índole, dedicadas, generosas, justas, fiéis, boas, leais; às
vezes, perdemos a pérola da própria vida. Os contemporâneos costumam relevar
muitos equívocos, enganos, erros, tolices, hipocrisias, e mesmo atos de grossa
injustiça dos seus grandes homens, de suas personalidades, de suas autoridades,
de seus artistas, se encontram alguém que, como verdadeiro animal de
sacrifício, possam maltratar e abater para aliviar os sentimentos.
Bem
que eu amaria, sentir-me-ia feliz e exultante, se pudesse dispensar a
organização social. Contudo, por mais que não deseje, sinta náusea dela, é
prudente e inteligente conservá-la por algum tempo, como um recreio útil. A
invenção de crimes, para serem publicados à maneira de romances, vale bem o
dinheiro que se gasta com a segurança e a justiça públicas. O torneio das
palavras, a que dá lugar entre advogados, constitui excelente escola de
eloqüência. Os jurados aprendem a responder aos quesitos, para o caso de
aparecer algum crime. Às vezes, como sucedeu há alguns anos, enganam-se nas
respostas, e mandam um réu para ver o sol nascer quadrado, ao invés de o
devolverem à família; mas, como são simples ensaios, esse mesmo erro é
benefício, para tirar aos homens alguma pontinha de orgulho de sapiência que
porventura lhes haja ficado.
Todo
homem tem o seu preço, dependendo da necessidade, o olho da cara, para se divertir, por poucos
tostões se vendem – isso não é verdadeiro. Mas para cada um pode haver uma isca
que tem de morder. É assim que, para ganhar muitas pessoas para uma causa,
basta que se lhe dê o brilho da filantropia, da nobreza, da caridade, da
abnegação – e a que causa não se poderia dá-lo? – São os doces e guloseimas de
sua alma; outras pessoas têm outros.
Não
negligencio que um pouco de filosofia possa ter entrada nesta coluna, contanto
que seja leve e ridente. As sensações também podem ser contadas, se não
cansarem muito pela extensão ou pela matéria; para não ir mais longe, o que se
deu comigo, por ocasião da posse, na Câmara Municipal. Terça-feira, quando ali
cheguei, já achei mais convidados que
vereadores e oradores, e mais pulmões que ar respirável. Na entrada da
sala das sessões, enfrente à entrada do gabinete do presidente, muitos senhores
e senhoras iam invadindo o lugar, sentando-se nas cadeiras. Daí a pouco, alguns
vereadores e mesmo algumas prosélitos do prefeito ofereciam às senhoras as suas
cadeiras, e todos aqueles vestidos claros vieram alternar com as casacas pretas
dos políticos. Quando isto se deu, tive uma visão do passado – eu não sei mesmo
explicar como é que sempre tenho visões quando vejo políticos reunidos para
sessões, reuniões -, uma daquelas visões chamadas imperiais (duas por ano), em
que o regimento nunca perdia os seus direitos. Tudo era medido, regrado e
solitário. Faltava agora tudo, até a figura do porteiro, que nesses dias de
solenidades mais que pomposas calçava as meias brancas e os sapatos de fivela,
enfiava os calções, e punha aos ombros a capa. Os vereadores, como têm seus
ternos especiais, vinham todos com eles, exceto algum padre, que trazia a
batina da igreja. Se o vereador João Castanho, quem, por ser honesto,
incorruptível, sofreu todas as pressões, não conseguiram destituí-lo do cargo,
conseguiram-lhe um enfarto fulminante devido a todas as pressões sofridas, se
ressuscitasse, compreenderia, ao aspecto da sala, que as instituições são
outras, tão outras como provavelmente a sua cadeira. Aquela gente numerosa,
rumorosa e mesclada esperava alguém, que não era o presidente, nem o grande
orador Virgulino Pontes. Com efeito, eu amo a regra e dou pasto à ordem. Nos
atos públicos também; aquela mistura de damas e cavallheiros, de legisladores e
convidados, não das instituições, mas do momento, exprimia um “estado de alma”
popular. Não seria propriamente um efeito da arte, concordo, admito, consinto
que assim seja, e sim da natureza; mas o que é a natureza senão uma arte
anterior?
Quando
bons amigos elogiam um político talentoso nas tramóias e vigarices, ele com
freqüência ficará alegre por cortesia e benevolência, mas, em verdade, isso lhe
é indiferente. Sua autêntica natureza fica inerte diante disso, e não é
possível movê-lo um passo para fora do sol ou da sombra em que está; mas as
pessoas desejam causar alegria mediante o elogio, e significaria magoá-las não
se alegrar com ele. É indício de completa falta de nobreza alguém preferir
viver na dependência dos favores e benefícios políticos, à custa dos cofres
públicos, apenas para não ter que trabalhar, e geralmente com secreta amargura
em relação àqueles de quem depende. Parece risível esta minha deferência, mas
pensando bem tal mentalidade é muito freqüente nos homens, e também muito mais
perdoável, isto por razões históricas, infelizmente ninguém pode entender
porque não conhece tais razões. Não sou
quem as vai dizer. Deixo para os leitores a investigação percuciente – quanto a
rirem ou verterem lágrimas, isto é com eles.
A
idéia que tive naquela terça-feira, quando cheguei à Câmara Municipal, em parte
se pode comparar ao chapéu escovado de encontro ao pelo; mas será culpa da
escova ou do chapéu? Cuido que do chapéu. O dia corria fresco. A noite passada
foi fresquíssima. As estrelas fulguravam extraordinariamente, e se o meu
funcionário na redação tem razão, foram elas que me influíram o pensamento.
Não há
razão para amiudar as votações de leis, fazê-las algumas vezes semestrais,
bimestrais, mensais, quinzenais, anuais, e, tal seja a pouquidade do cargo,
semanais. O espírito público ficará descolado; a opinião será regulada pelos
lucros, e dir-se-á que os princípios de um partido nos últimos meses têm sido favorecidos
pela Fortuna que os princípios adversos. Que mal há nisso? Os antigos não se
regeram pela Fortuna? Gregos e romanos, homens que valeram alguma cousa,
confiavam a essa deusa o governo da República. Um deles (não me lembra quem)
dizia que três poderes governam o mundo: Prudência, Força e Fortuna. Não
podendo eliminar esta, regulemo-la, que é bem prudente e inteligente.
O
interesse público de conhecer os projetos será enorme. Haverá palpites,
pedir-se-ão palpites, o povo sabe ser palpiteiro, falou em palpite é com ele
mesmo; far-se-á até, se for mister, uma legião de adivinhos, incumbidos de
segredar aos cidadãos as leis prováveis ou certas que serão votadas.
Se uma
situação crítica (como os vícios de uma administração, ou corrupção e
favoritismo em entidades políticas ou culturais) é descrita de forma bastante
exagerada, a descrição certamente perde efeito junto aos perspicazes, mas age
com tanto mais força sobre os não-perspicazes (que teriam permanecido
indiferentes, no caso de uma exposição cuidadosa e moderada).
Os
males não são gerais, mas são sobremodo grandes, quase inconcebíveis de todo.
Há eleições boas e pacíficas, mas a violência, a corrupção e a fraude
inutilizam em algumas partes as leis e os esforços leais dos políticos. Votos
vendidos, votos inventados, votos destruídos, é difícil alcançar que todas as
votações sejam seguras e puras. Para a violência havia aqui em nossa comunidade
uma classe de homens, felizmente extinta, a que chamavam de “capangas”. Eram
esbirros particulares, assalariados para amedrontar os eleitores e, quando
fosse preciso, quebrar as urnas e as cabeças. Às vezes quebravam só as cabeças
e metiam nas urnas maços de cédulas. Estas cédulas eram depois apuradas com as
outras, pela razão especiosa de que mais valia atribuir a um candidato algum
pequeno salto de votos que tirar-lhe os que deveras lhe foram dados pela
vontade soberana do país. A corrupção
era menor que a fraude; mas a fraude tinha todas as formas. Enfim, muitos eleitores,
tomados de susto ou de descrença, não acudiam às urnas. O tempo dos capangas
acabou, felizmente. Mas agora surgiu uma outra classe não de homens, mas de
políticos, chamam-lhe de “Lex - éticos”, são aqueles que ameaçam os
correligionários de lhes denunciar as faltas de decoro político, as corrupções
atrás do pano, se eles não votarem a favor de suas leis, Enfim, muitos
políticos, tomados de medo, de tremedeiras, de virem seus nomes na boca do
povo, risco de perderem o poder, usufruir os salários gordos, não querem nem
saber se o povo vai ser prejudicado, votam na lei, o resto que se dane, o
importante mesmo é estarem livres das denúncias, do nome sujo na praça.
Dissera
antes que a humanidade me encanta, o que me encanta nela é a perfeição.
Como,
na perfeição, as dimensões sensíveis dos valores e virtudes estão bem
organizadas, em comunhão plena, geralmente o homem perfeito é aquele que jamais
pecou, nunca cometeu qualquer deslize de caráter e personalidade, só praticou o
bem, seguiu à risca os Dez Mandamentos, louvou os dogmas do cristianismo, não
há modo de me não sentir encantado com a humanidade.
Diante
de tudo o que é perfeito, diante de todas as perfeições dos homens, estamos
acostumados – juro por Deus que eu mais que todos os homens de todos os tempos
– a omitir a questão do vir a ser desfrutar sua presença como se aquilo
houvesse desabrochado, tivesse brotado magicamente do chão. Acredito estejamos
os homens sob o efeito de um sentimento mitológico arcaico, sob o encantamento
de uma sensação lendária erudita. Por um triz sentimentos que certa manhã um
deus, por brincadeira ingênua ou por sarcasmo deliberado, Zeus era mestre nesta
brincadeira, construiu sua morada com blocos imensos, ou que subitamente uma
alma encontrou por encanto numa pedra, e agora deseja falar por seu intermédio.
Sei
que a minha obra só tem efeito pleno quando suscita a crença numa
improvisação - que improvisação melhor
que me encantar com a perfeição da humanidade, quando é a imperfeição e as
calhordices de todas as laias e estirpes que imperam -, numa miraculosa instantaneidade
da gênese, e assim ajudo essa ilusão e introduzo na arte, no começo da criação,
os elementos de inquietação entusiástica, de
desordem que tateia ás cegas, de sonho atento, como artifícios enganosos
para dis-por a alma do espectador ou ouvinte de forma que ela creia no brotar
repentino do perfeito.
Todos
os homens se dividem, em todos os tempos e também hoje, em perfeitos e escravos
dos pecados; aquele que não tem dois terços do dia para re-fletir sobre as
calhordices dos políticos é escravo de seus interesses e ideologias, não
importa que seu nome seja um gostinho de apetitosa feijoada no paladar do povo.
Entre
as correções que necessitamos fazer no caráter da humanidade está fortalecer em
grande medida o elemento contemplativo. Mas desde já o indivíduo que é perfeito
e constante de cabeça e de coração tem o direito inalienável de acreditar que
possui não apenas um bom temperamento, mas uma virtude de utilidade geral e
que, ao preservar esta virtude, está mesmo real-izando uma tarefa superior, não
importando se árdua ou não, a arduicidade fica a critério das línguas com suas
diferenças de pronúncia e sonoridade, a não-arduicidade fica a critério dos
princípios e dogmas que imperam na cretinice da modernidade.
Falar
de perfeição, quando sou o mais imperfeito dos homens, se não é chamar a
atenção para as letras criativas, é justificar as minhas calhordices...
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