DE ARESTAS SENSÍVEIS: MORRER - Manoel Ferreira
Ferluci que
entenda os colunistas sociais!
Toda a
gente aqui me diz, que o meio de fazer sucesso, ser famoso, eternizar-me sem
fazer esforço demasiado, de modo simples, é sair nas colunas sociais, de
preferência na companhia de personalidades, autoridades, artistas consagrados
nacional, mundialmente, abraçados, com um belo sorriso no rosto, ou quando
morrer um deles escrever homenagem póstuma, bem sensível, de modo que as letras
vertam lágrimas, mostrando a sensibilidade deles, o coração bom, terno,
meigo, a alma amiga, o espírito
solidário, compassivo, como a amizade entre o falecido e eu aconteceu, as coisas que aprendi com ele, que muito
contribuíram para re-fletir na vida, atitudes de não, ações arbitrárias, que me
espiritualizaram, tornaram-me outro homem, um novo homem, e a ausência que fará
em minha vida, em todos os instantes, diante destas ou daquelas situações e circunstâncias, me
lembrarei dele com carinho e amor, saudades imensas e inestimáveis.
As letras,
assim, vertam lágrimas na página do tablóide, nas entre-linhas a tinta estará
borrada, quase impossível sendo de lê-las, os leitores verterão lágrimas com as
letras, e re-conhecerão com simplicidade a minha sensibilidade, saberão de meus
sentimentos e emoções mais profundos, a profundidade da amizade que trago no
peito para doar aos homens. Ainda o mais importante: serei considerado um grande
escritor com a minha homenagem ao falecido, as letras com que a escrevi serão
lembradas por todo o sempre, serão lidas quando alguém amigo, íntimo,
companheiro lembrar-se dele, serei elogiado, a admiração de como encontrei
linguagem e estilo para re-presentar e re-tratar os sentimentos e emoções que
em mim perpassavam naquele momento de tanta dor, tristeza, desolação, para
mergulhar tão profundo na alma e espírito do falecido, sendo tão fiel a quem
ele era, estará presente e forte.
Não devo me
esquecer de no corpo da homenagem escolher alguma fotografia tirada com ele,
para ilustrar a matéria, os leitores virem com os seus olhos a sensibilidade
nossa, a reciprocidade de nossos sentimentos, a alegria e felicidade por que
éramos tomados em nossos encontros. Uma foto minha sozinho, se possível tirada
logo após haver sabido do falecimento da personalidade, pois que nela estarão a
minha tristeza, as dores que me perpassam o coração, espírito, alma. Não devo
colocar mais de duas fotos no corpo da matéria, será carregá-la bastante; se
colocar três, as letras não abarcarão as três em seus momentos di-versos e
diferentes, o importante não são as fotos, são as letras que revelarão os meus
sentimentos, emoções, as fotos são arrebiques e ornamentos para confirmarem e
de-monstrarem os meus estados de alma.
São
princípios bem interessantes a serem seguidos na escritura de uma homenagem
póstuma, se fossem verdadeiros, sinceros, sérios, o falecido no além
sentir-se-ia muitíssimo feliz e alegre por saber haver sido tão querido, amado,
reconhecido como homem e personalidade. Mas os colunistas sociais estão em
busca do sucesso, da fama, montados na imagem do falecido, nas suas glórias,
méritos, feitos. São verdadeiros urubus, no fundo desejam que personalidades e
mais personalidades passem desta para a melhor, de bago em bago a galinha enche
o papo, a eternidade estará entupigaitada de homenagens póstumas, de
preferência os que são de minhas relações, com quem estive próximo, bem íntimo. Escrever
homenagem póstuma para personalidade a quem não vi nem mais gorda nem mais
magra é tarefa árdua, tem de ser muito artista para dizer de sentimentos que
nunca se sentiu; mesmo assim há quem consiga, a hipocrisia sua já foi por
inteira re-velada, são os ossos do ofício dos colunistas, de tanto viverem de
imagens, de letras sociais, não é difícil coisa nenhuma, facílimo, em verdade.
Os experts, e são tantos, conseguem até ser mais sensíveis e fraternos com os
seus sentimentos em relação ao falecido com quem nunca se encontraram, sensibilizam
os leitores, no fundo desejando serem tão sensíveis quanto eles, do que os com
quem conviveram, atrapalham-se todo, as dores e os sofrimentos são tantos que
se torna difícil registrá-los, tornarem-lhes verdadeiros, acabam sendo fingidos
e mais hipócritas ainda.
Mostraram-me
um tablóide, cuja especialidade é a “coluna social”, ilustrificou-se com isto.
Não leio tablóides, as hipocrisias tantas cansaram-me a beleza, irritaram-me.
Sendo sensível com o amigo, folheei, não de página em página, lendo este ou
aquele título das matérias, frases, no máximo parágrafo, quando pequeno. De
imediato, abri aleatoriamente. O leitor não vai acreditar, estou dis-posto a
jurar com a mão esquerda sobre o Livro Sagrado, mas abri justamente na página
de uma homenagem póstuma: fotografia do falecido, fotografias do colunista. Li
algumas frases aqui e ali. Caí na gargalhada. O sorriso do colunista numa das
fotografias mostrou-me com perfeição a sua hipocrisia, farsa, falsidade, estava
feliz por estar escrevendo a homenagem póstuma, mais uma que garantiria a sua
eternidade, e na foto que ambos estiveram juntos no passado a felicidade dele
não era de estar com o amigo, mas de saber que ele era uma personalidade, a sua
especialidade sempre foi sair abraçado com personalidades, rindo a bandeiras
soltas. Sensibilizei-me com o falecido, nem morto era respeitado, quem dizia
ser seu amigo estava ali mostrando outras arestas sensíveis, o quanto a morte
de uma personalidade assina a eternidade da “colunidade”. Não digo isto
sustentado na náusea e ojeriza que sinto de colunas sociais, colunistas
sociais, mas por conhecer o cujo-dito colunista, saber de suas farsas,
hipocrisias, falsidades, por uma foto junto com alguém de méritos, glórias, é
capaz de vender a alma a Ferluci, não acrescentaria outra coisa porque já o
faz, não por haver vendido e gostou muito, mas por prazeres os mais inusitados.
Mesmo que não o conhecesse, jamais o tivesse visto, lido as suas matérias,
saberia reconhecer em suas letras o fingimento, a hipocrisia. Conheço de
letras, de sentimentos, de letras e sentimentos, vice-versa, sei reconhecer
neles a hipocrisia, isto se chama sensibilidade, o que os colunistas sociais
não têm a mínima noção, os leitores ingênuos e inocentes caem de pato no
conto-do-vigário.
Não cai na
gargalhada por isto só. Havia muito que esperava oportunidade de destilar a
hipocrisia que lhe é tão peculiar, sua eidos, sua essência. Passaria o tempo
que passasse, a esperança é a última que morre, haveria um deslize, na gíria
para melhor me expressar, “cairia matando”. Cair matando é a minha
especialidade; já me disseram que se eu estivesse na ativa no tempo da ditadura
militar seria desaparecido como milhares de intelectuais.
De tão
envolvido, sendo que é, vivendo a plenos pulmões e fôlegos a hipocrisia, não
pode perceber as arestas de suas atitudes, não enxerga além de seu umbigo
colunável, de seu nariz vaidoso, alguém está de olhos bem abertos para na
primeira oportunidade identificar-lhe o caráter, personalidade. Numa homenagem
póstuma, não há alternativa: é-se hipócrita ou se é verdadeiro; num tablóide de
colunismo social, a hipocrisia se veste de verdade, a intenção de sensibilizar
os leitores é imprescindível, o colunista se veste de lebre, as palavras
mostram o lobo faminto. Havia chegado o momento. Guardei – memória, de modo que
a qualquer instante pudesse lembrar-me, os sentimentos que me perpassaram, as
intuições que se me anunciaram com as frases lidas aqui e acolá. Pensava
comigo, enquanto lia: “Até imbecil sabe que isto é hipocrisia. Infelizmente, há
quem acredite, atribua-lhe um bom
coração, um homem de inestimável amizade pelos amigos, solidário, humano”.
Lembrou-me
ainda a fala de um terapeuta, dizendo-me não me esqueceria mesmo de olhar as
coisas que me cercam, perceber a presença das oportunidades, elaborá-las,
canalizá-las, construir a vida com elas, “o artífice da vida que é, que lhe
habita, será revelado com as oportunidades”. Em nove anos, após nossos
encontros, foram inúmeras as oportunidades, não passaram batidas, não as perdi,
soube canalizá-las, o que em quarenta e dois anos não construir, construí em
onze.
Era mesmo
razão de cair na gargalhada. Escreveria sobre a sua homenagem de modo a dar-lhe
oportunidade de responder, não fecharia as cercas, abrir-lhes-ia a todas. Um hipócrita, quando se explica, mostra e
revela mais os subterrâneos de sua personalidade, caráter medíocres, frente á
sensibilidade dos leitores não lhe será possível persuadir do contrário. Não
acredito que o faça, condições tem por lhe estar dando, mas sabe que terá de se
explicar aos leitores, aos amigos e íntimos do falecido, ao Brasil inteiro, não
a mim, a sua pena não registra sua voz, a sua coluna social visa sua
imortalidade montada de bota e estribo na imagem das personalidades mortas,
falecidas, que passaram desta para a outra melhor, nas fotos com os grandes
artistas, escritores, em todos os eventos, com os ensaios vangloriando as obras
dos falecidos. Ah, leitores, desculpem-me a franqueza e sinceridade, os
colunistas sociais são nojentos!
Imaginei se
houvesse morrido de enfarto. O cujo-dito colunista iria correr ao tablóide com
a sua matéria em minha homenagem, só Deus sabe com que lindas e maravilhosas
palavras, sensibilizando os inimigos capitais e congênitos, mostrando a grande
importância que exerci na cultura, chorando muito, soluçando, enquanto
escrevia, e no encontro com os meus amigos as lástimas, sofrimentos, dores, e
aquela fala mais que ridícula: “Foi um grande homem, será lembrado por todos
pela eternidade. Fará muito falta em nossas vidas, em nossa comunidade”. Diante
de alguns amigos, passaria por mais que ridículo, um imbecil, pois que sabem de
suas hipocrisias. Não diriam nada, apenas olhariam, e no íntimo pensariam, com
efeito: “Isto é que ser colunista social, viver de imagem de personalidades”.
Não morri. Mas ele próprio saiu por toda a cidade dizendo que havia sofrido um
enfarto. Dei nele uma “traulitada” de que nunca se esquecerá enquanto estiver
vivo, creio que até na outra vida lembrar-se-á. Eu sempre vivi de minhas obras,
não de colunas sociais, de estado de saúde.
- Está
aqui, Bernardo, algo que já tomei minhas providências... – disse ao amigo,
apontando a fotografia do colunista com o falecido.
- Como
assim?
- Coluna
social?
- Não
entendi.
- Você já
viu alguma foto minha nas colunas sociais?
- Não.
- E jamais
aparecerá uma sequer. Proibi. Não haverá quem ousará fazê-lo. Sabe que
descascarei os pepinos do tablóide.
- Isto é
verdade. Conheço a sua habilidade em descascá-los, vai até a medula do pepino –
sorriu.
- Não é
apenas neste sentido tomei minhas providências.
- Em que
outro?
- Sou
personalidade. Sei que se cair duro e fedendo amanhã, os tablóides todos vão
estampar nas manchetes o meu falecimento,
todos irão escrever sobre mim, o quanto a morte vai afetar o mundo da cultura,
o quanto vou fazer falta no mundo. Elogios e mais elogios. Reconhecimentos e
mais reconhecimentos.
- Isto não
é bom para você?
- Qual
nada! Não é aquela questão discutida e falada a todos os ventos: por que tantos
reconhecimentos não aconteceram em vida? Isto é até medíocre. Ninguém jamais o
foi em vida como mereceram mesmo.
- Que
providências tomou?
- Disse à
minha senhora que, falecido, coloque-me no esquife, não anuncie na rádio, avise
somente os amigos mais íntimos. Leve-me às escondidas para o cemitério. Como
tenho amigos em outros Estados, se eles puderem comparecer, espere algum tempo.
Ninguém vai desconfiar que é o meu corpo que está na “casinha” do cemitério.
Assim que chegarem, espere uns quinze minutos para se despedirem de mim,
enterre logo. E não permita que saia qualquer matéria a meu respeito nos
tablóides.
- Não dará
certo. Só a presença de pessoas de suas relações no cemitério será motivo para
desconfianças. Sendo tão conhecido como o é, todos sabem de suas relações íntimas.
- E quem
lhe disse que serei enterrado? Não. Serei enterrado junto com as minhas mães
noutra cidade.
- Isso é
que eu chamo de ódio da imprensa.
- Sim.
Folheei o
tablóide. Entreguei-o a Bernardo, dizendo-lhe não ler. Despedi-me dele, estava
tirando umas cópias numa copiadora, e ele lá estava escolhendo um presente para
o aniversário do filho. Tinha outros afazeres. Encontrar-nos-íamos noutra
ocasião.
Morreu e é
personalidade de renome de todos os buracos e recantos aparecem pessoas –
andando, pensava com os meus botões – para prestarem a última homenagem, virem
o cadáver pela derradeira vez, e guardarem na memória a imagem, a vida que foi
doada aos grandes feitos, às grandes obras, quem sabe até mais tarde escrever
as memórias, para mostrar a importância dela na história, seja ícone da
história, sigam-lhe os exemplos das gerações futuras.
No velório
lágrimas, angústias, tristezas perpassam os íntimos, a perda foi inestimável,
todas as línguas falam da vida do falecido, o curriculum vitae presente com
contundência, encômios os mais variados, embora de alguns sejam a verdade
insofismável, o falecido não sabia, não soube, que em vida acumulara tantos
méritos, se houvesse resquício de vida no corpo, não para se levantar do
esquife e perguntar se não está havendo muito exagero nas considerações e
reconhecimentos, pedir para fazer por menos, mas para se mexer em sinal de
incômodo, enfim pessoas que, soubera de fontes fidedignas, o criticaram com
todos os verbos, invejavam-lhe, viravam-lhe as costas, tratavam-lhe com finesse
e diplomacia em sua presença, mantendo as aparências para não ser chamado de
hipócrita ou “puxa-saco”, na ausência, de por trás, a velha e surrada ripa
descia mesmo, dizendo de valores e virtudes os mais plenos e puros.
Em sua
tratando de pessoas comuns, simples, humildes, quem, de algum modo, estiveram
presentes em sua vida, sem serem do rebanho das personalidades, não sabem e não
têm condições de fazê-lo, as coisas neles transcendem as percepções e
intuições, compreende-se, porque a morte toca fundo na vida, e estas pessoas
arrependem-se com sinceridade de suas atitudes de não, sentem-se culpadas de
suas palavras arbitrárias e gratuitas, num velório colocam-se no esquife e
imaginam os comentários das pessoas, coisas que vão pesar bastante no juízo final,
podem valer-lhes o inferno se São Pedro “acordou com a macaca”.
Mas das
personalidades, quem mais criticaram e destilaram os ácidos críticos, para se
defenderem, não serem esquecidos, as cenas deles não serem roubadas, não se
sentirem negligenciados, não se é possível entender os encômios.
E é assim,
nobre leitor: um morto ilustre é um naco de glória que não se perde; é além
disso uma excelente, maravilhosa ocasião, e às vezes única, de superar os
contemporâneos.
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