MANGOFA ATRAVESSADA NA GARGANTA - Manoel Ferreira
Nalgumas
páginas atrás – não acredite quem quiser, verdade é que jamais leio uma edição
terminada; em certas ocasiões, denomino-as “bem especiais”, visto as
considerações do leitor a um texto, faço-o para me certificar das
interpretações feitas, das gargalhadas que causaram a ponto de alguém íntimo se
ad-mirar por estar ele rindo sozinho, bem inusitado, inédito, nem sempre
concordo, mas respeito, sinto grande estima por ele, no mais repudio não a
interpretação, as gargalhadas, mas o texto, poderia haver sido melhor; quando escrevi
achei o máximo, o tempo é mestre em desfazer os delírios da vaidade -, dizendo
eu que tenho cinqüenta e umas beiradinhas de anos, acrescentando até com uma
pequena mangofa atravessada na garganta: “Sinto que o meu estilo não é tão
sublime como em tempos idos, aqueles da volúpia e êxtases idolatrados”.
Há quem, quiçá,
ache esta frase incompreensível – tudo que é empolado demais acaba sendo
incompreensível, há-de se escrever não com os sentimentos à flor dos instintos,
mas no sangue que percorrer o corpo inteiro -, sabendo-se o meu atual estado,
larguei um pouco da apena fissurada com a linguagem profunda, dou asas às
mangofas críticas; e isto pelo que ouço dos leitores está agradando bastante, o
estilo é mais escorreito, a profundidade caiu nas pernas das entre-linhas;
chamo a atenção nestas linhas para a sutileza daquele pensamento, pois que foi
senão esquecida negligenciada em nome da análise fácil, o que sempre deturpa as
idéias.
O que desejo
dizer – esclarecer não vale, a sutileza seria eliminada por inteiro, elucidar
não tem o mínimo sentido, acabaria no puro solipsismo barato – não é que agora
esteja mais velho do que quando comecei a garatujar palavras no papel; na
juventude não estava velho, estava jovem de ideais e sonhos, embora velho desde
sempre fora, não se escreve sem experiências, vivências, é na velhice que são
verdadeiras e eternas, e são respeitadas pelos mais novos, objetos de reflexão
para a vida ser diferente, o jovem não tem quaisquer, quando as tem são fúteis.
Quero dizer, sim, em cada fase de minha vida de letras, quimeras e fantasias
di-versas, experimento a sensação de o estilo estar envelhecendo, suas
experiências foram várias e verdadeiras, quiçá a pena tivesse talento para as
re-velar a todas, e mesmo que tivesse negar-me-ia a ser-lhe servil, odiaria ser
amouco de penas. A morte não envelhece, e que ironia do destilo, o estilo
envelhece, só que ele não morre. Valha-me Deus! é preciso explicar tudo. Quanto mais se explica menos inteligível se
torna, passa-se a vida inteira explicando, só a morte pode dar termo a ela, e é
quando se torna inteligível.
Conto-lhe,
leitor, uma historieta que ouvi num dos botequins da vida – quem ma contou
fê-lo com aquele espírito comum às pessoas, o escritor se empola todo ao saber
destas historietas, são objetos de grandes e inesquecíveis inspirações, são
tesouros da crônica. Um fazendeiro muitíssimo rico parou num botequim para um
aperitivo depois de uma longa viagem, levando um gado de corte vendido para o
matadouro. Montava um cavalo bonito, crinas grandes. O proprietário mostrou-lhe
todas as qualidades do animal Vendeu por um preço absurdo, tudo que é caro é de
boa qualidade. Passados três meses, o fazendeiro voltou ao botequim da estrada.
O proprietário rasgou todos os verbos, xingou o fazendo de tudo quanto é nome
feio, o cavalo não era nada do que havia dito, um verdadeiro pangaré. O
fazendeiro ouviu com bastante atenção as reclamações do proprietário, e quando
terminou de vociferar, disse-lhe: “Não fique falando mal do seu cavalo; assim
não faz negócio com ele”.
Não estou
falando mal de meu estilo hoje, com ele até me sinto orgulhoso e lisonjeado, os
leitores estão apreciando muito, elogiam, reconhecem, sentem que a
sensibilidade e visão da vida e mundo está amadurecendo, estão aprendendo de
modo bem sutil as observações críticas, vêem tudo com outros olhos – houve quem
já me pedira que escrevesse um “bons dias” sobre os olhos, a única dificuldade
deles é como atuarem com os olhos, que trejeito lhes dar para enfatizar os
sentimentos de mangofa que lhes perpassam o íntimo; respondi-lhes que não
saberia isto escrever, porque não me olho no espelho no momento das observações
críticas; fosse assim, se me preocupasse em saber como os olhos reagem, teria
de estar sempre com um espelho em mão, mas se me pedisse para escrever sobre a
língua que depois da observação se revela, teria muito a dizer.
Estou apenas
explicando que, jovem, imbuído dos sonhos e ideais da eternidade, aquilo de ser
considerado e reconhecido sábio, e, portanto, idéias e linguagem transcendem as
experiências do mundo, o estilo deve fazer-lhes jus. Os tempos são idos. O que restou, apesar de todas as esperanças
da imortalidade, não são os sonhos e ideais da importância e glória, mas a
eternidade da vida, que é feita com todos os sofrimentos e dores, não com os
braços acolhendo a lua, as pernas cobrindo o sol e as estrelas, de cabeça para
baixo, rindo das hipocrisias e farsas da humanidade, mas com os pés no chão e
sapatos sujos de poeira e lama.
Publiquei o meu
jornal – é o momento mais feliz de todo o processo de feitura, no mais, tudo
são grandes esforços e preocupações com a qualidade em todos os níveis, saber
que os leitores irão ler, apreciar, rirem, gargalharem, admirarem com a
criatividade, com as idéias e pensamentos frescos e suaves, só mesmo com
talento para realizar um jornal de porte e postura. Apesar de meu secretário
sair pela manhã de sábado, entregando os exemplares a domicílio aos leitores,
há muitos que só eu o faço, é uma oportunidade minha de re-ver os grandes amigos,
sentir o prazer de suas presenças, trocarmos uns dedos de prosa, é sempre uma
grande alegria re-ver-lhes. Ademais, a idade já não me permite tanto andar por
todos os cantos da cidade, em direções opostas, da rua Santo Antônio da Estrada
à rua Chile, do bairro Curiango ao Esperança, canso-me bastante. Houve tempo
que saía às sete horas da manhã e só retornava a casa às dez da noite, deram
bolhas de água nos pés.
Quarenta e oito
horas depois, aparecia em outro jornal uma declaração do Barbosa Pernóstico,
dizendo, em substância, que, posto a velhice re-velar com propriedade os
valores mesmos de um homem, isto é, mostra que ele nada é, suas experiências
não contribuem com nada, só chamam a atenção de pessoas que não sabem separar
os alhos e bugalhos. Acho conveniente esclarecer ao leitor que este homem,
diretor-proprietário do jornal, não está envelhecendo, sempre foi um velho
caquético nas letras, não tem idéias, só tem instintos, o que, aliás, é a razão
de sua popularidade com os sensacionalismos de sua linha editorial, isto lhe
proporciona a cerveja e as porções nos barzinhos com os jovens de sua grande
preferência. Reprovo inteiramente suas idéias e procedimentos.
Não podia acabar de crer nos meus olhos.
Esfreguei-os uma e duas vezes, coloquei os óculos, apanhei na gaveta de minha
mesa uma lupa, e reli a crítica feita as minhas palavras na frase: “Sinto que o
meu estilo não é tão sublime, como em tempos idos, aqueles da volúpia e êxtases
idolatrados”. Se Barbosa Pernóstico tem-me como um grande e perfeito imbecil,
um sujeito cujas idéias não passam de disparates e despautérios, que lhe
importava dizer eu que o meu estilo não é o mesmo de outrora, na aurora de meus
sonhos e utopias das letras? Não se dá atenção ao que não tem qualquer valor,
desconhece-lhe com categoria, não se emite única palavra verbal acerca, é-lhe
indiferente até nos pensamentos. O que justifica desperdiçar espaço de coluna
para criticar o que não tem sentido? Por que pensar nos despautérios e
disparates? Por que tirar o tempo do leitor com coisas chinfrins? Tais
perguntas não são de sua cepa; ainda que fossem de antemão às revezes sei e
conheço as qualidades de respostas. Era mister que fizesse a crítica,
sensacionalismo é o seu valor supremo na imprensa, ridículos são as virtudes
primordiais. Se houvesse compreendido o sentido delas, não tomaria da pena para
escrever, pois as suas letras iriam denunciar-lhe nos brios, o seu estilo ser
caquético, enchafurdado nos dogmas e chavões da atualidade jornalística, não
escreve, não garatuja palavras no seu jornal, rabisca idiotices para ser servil
àqueles que não têm quaisquer condições de ver a realidade. Se fosse
inteligente como se empola todo para mostrar, teria descido a pua na frase-feita,
outro despautério por não o ser, e analisaria o lugar-comum daqueles que
desejam imortalizar-se às custas dela, comunizarem-se na língua do populacho,
serem espirituosos, deixarem polêmicas as mais di-versas. Escrevendo o que
escreveu, não há duvidar que esperava com ela que seu jornal alcançasse maior
crédito, esgotasse a edição em poucas horas de único dia. Saíram pela culatra
todas as suas intenções, pois três dias depois os exemplares estavam na banca
de revista, foram vendidos dois únicos, garantiu-me o jornaleiro. Enxerguei com
os meus próprios olhos o seu funcionário distribuindo os exemplares na praça da
cidade. Recebi inúmeros telefonemas de leitores indignados com a sua ousadia de
escrever asnice ao meu respeito, o que me deixou sobremodo lisonjeado, alguns
sugeriram até que judicialmente
recolhesse a edição. Não era preciso tanto, mais valia as opiniões e
considerações dos leitores.
Nem todos os
cidadãos, leitores, personalidades que acham bons ou maus os meus “bons dias”
fazem declarações escusas, pois que são de idônea inteligência. Realmente só há
uma explicação cabível e real para o que disse em sua coluna “Leitura Fútil”,
que antes era “Cultura”, uma verdadeira rasgação de seda a algumas pessoas por
seus livretos, além de leitura desvirtuada do contexto, com intenções claras e
transparentes de fazer ideologias.
Nossas relações jamais foram lhanas e benévolas, embora só agora lhe dou
o troco de dezessete e setecentos dos vinte réis que me deu para cobrar dois e
trezentos, e com categoria não terá resposta. Rogo a Deus que não seja vítima
de prisão de ventre com tanto sapo seco que lhe sirvo de menu; não me lembro de
nenhum dissentimento entre nós, diretamente, faz suas críticas quase nas minhas
barbas, a minha reação é tergiversar o olhar para outras direções da rua,
observando os transeuntes que seguem a jornada de suas vidas com muito trabalho
e esforços para recuperarem o prejuízo. Acho graça mais pela vulgaridade de
seus instintos.
Sendo realmente
um estilista nas letras, o que Barbosa Pernóstico dissera em sua matéria a
favor de minha velhice estilística serviu-me de inspiração para anexar à minha
filosofia uma parte dogmática e litúrgica. A sátira há-de ser, comecem os
despautérios da vida num século, terminem nalgum milênio longínquo, uma
religião, a do futuro – Apuleio escreveu O asno ; hoje o asno é verdadeiramente
reconhecido como o imbecil da raça, e como na Literatura tudo são metáforas,
símbolos, signos e significados, é pensar o homem, a única realidade nua e
crua. O homem sozinho é verdadeiramente é uma dádiva divina, mas, se juntar a
outro, é uma praga de Ferluci.
Os fenômenos da
consciência – escrevendo a frase, não o fiz sustentado nalgum subjetivismo da
insatisfação por as mudanças de estilo estarem sendo bem visíveis, e nestes
termos o medo de perder as alegrias da glória, os elogios e reconhecimentos dos
leitores, não saber em que trilha estou andando, para onde estou indo são
gritantes, mas com consciência de que são mudanças peculiares à velhice das
experiências e vivências – são de difícil análise; por outro lado, se revelasse
um deles, com sutilezas e perspicácias indescritíveis, teria de revelar todos
os que a ele se prendesse, e acabaria fazendo um capítulo de critica literária,
e quando alguém se mete a se teorizar, pode-se sem qualquer pejo julgar que
está imbecilizando tudo o escreveu. Afirmo somente que é a fase mais brilhante
de minha vida. Os pontos de vista são gozados, então, quando se truncam nas
teias de aranha da realidade e da in-versão das hipocrisias e farsas, causam
fissura aos instintos adormecidos no vulcão do ridículo, os risos são
inevitáveis; têm a monotonia da desgraça e da vergonha pública, que são tão
aborrecidas como a do gozo precoce, e quiçá pior. Mas a alegria que dá a alma
dos que necessitam deles para a continuidade da vida, daqueles que têm sede e
fome de perceberem com categoria a hipocrisia humana para não se frustrarem e
fracassarem nas relações, é recompensa de algum valor; não me diga alguém que é
negativa, niilista, por só recebê-la o obsequiado. Não. Recebo tais risos dos
leitores de um modo reflexo, é tanto que a frase me veio pura e singular, e
ainda assim grande, tão grande que me dá excelente idéia de mim mesmo.
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