ESCOVANDO A CASACA E O ESTILO - Manoel Ferreira
Antes de tudo e
acima de mais nada, deixem-me dar um abraço caloroso e terno no delegado Sérgio
Farisau, por suas contínuas atitudes e ações, sempre com sucesso, em nome da
segurança e do bem estar de nossa comunidade. Delegado cumpridor de suas
funções e responsabilidades em nossa modernidade é o mesmo que encontrar agulha
no palheiro; Sérgio Fariseu merece sim reconhecimento de toda a nossa
comunidade.
Os homens
casados, quando estão distantes das digníssimas e amadas esposas, cuidando de
seus negócios, têm sérias dificuldades de dormir, passam noites em claro no
apartamento de hotel, assistindo à televisão, se fumam, um maço é muito pouco;
se têm o costume de pular a cerca, passam a noite inteira brincando,
divertindo-se. Não tenho este costume, tenho o costume de ficar acordado,
assistindo à televisão. Ansioso por o dia amanhecer, ir tomar o suculento café
da manhã do hotel, sair para uma caminhada, antes de começar as minhas andanças
por todos os recantos da cidade para realizar os meus negócios.
Sete horas da
manhã, abrira a janela – não vou dizer que estava uma manhã agradável, um
friozinho delicioso, só para não cair na mesmidade, dizendo os raios de sol já
estavam castigando, calor insuportável, isto é natural nesta cidade, sou eu
quem não se adapta, aprecio o clima ameno, delicioso, mas é verão, em qualquer
cidade a temperatura é alta, quanto mais nestes tempos de “efeito estufa” –
dera mais uma daquelas espreguiçadas, como todos os dias o faço, independente
de haver dormido sono profundo, leve, de haver passado a noite em claro.
Deparei-me com algo inusitado, cinco carros da polícia civil, em fila, alta
velocidade, subindo a avenida, três descendo, com o alarme peculiar ligado.
Rindo, dissera: “A polícia civil acordou com a macaca” – isto é, acordou
hiperativa”
O que estaria
acontecendo? – pergunta não apenas minha, mas de todos que perambulavam pela
avenida, de quem estava acordando com o alarme das viaturas naquela manhã, de
quem tomava o seu café nas padarias, antes de irem para o trabalho. Algum
assalto a banco? Virou moda assaltarem bancos de cidadezinhas pacatas, os
riscos são menores de os bandidos serem presos ou abatidos pela polícia. Algum
crime hediondo? Quem não é assassino hoje está à margem da sociedade e do seu
tempo. Mais tarde, saberia, assim que saísse do hotel. Mesmo que não, ninguém
ainda sabia de coisa alguma, o dia acabava de amanhecer, tinha mesmo que ir à
Delegacia de Polícia Civil, lá ficaria sabendo da verdade mesma.
Tomara o banho,
cantando a musiqueta da Josefina que
criei especialmente para cantar na hora do banho, feita de situações inusitadas
que a Josefina vivia no seu dia-a-dia, devido ao fato de a sua perna direita
ser grossa, a esquerda fina. Na infância, estudante, aprendia com facilidade
aquelas músicas indecentes e imorais, as rimas é que identificavam a indecência
e imoralidade, e enquanto tomava banho cantava-as, sob protestos e ameaças de
castigo de minha avó e mãe. Cresci, tornei-me adulto, não as cantaria mais, e
ficar sem cantar na hora do banho é sempre um tédio inestimável. Surgiu a
inspiração de compor Josefina da perna fina, criei-a com prazer.
Pensei ouvir
barulho de helicóptero. Se verdade, a macaca com que a polícia acordara estava
em estado de êxtase, eufórica. Nada melhor que acordar com a macaca eufórica,
são dúzias de bananas e muita casca no lixo, não para ingeri-las a gosto e
paladar, mas para mandá-las aos devidos destinatários. No que tange a isto, são
os juízes que enviam as bananas aos delegados, cumpre descascá-las com
categoria, enjaular os bandidos, criminosos.
Terminei o
banho, que fora rápido, por não ter lavado nem os cabelos, nem os ouvidos,
produzi-me a rigor – homem como eu que se relaciona com as personalidades da
comunidade precisa estar bem vestido, cheiroso. Fui tomar o café da manhã.
Perguntei à cozinheira se estava a par dos acontecimentos, a polícia estava com
a macaca naquela manhã. Não soube informar-me, apesar de estar curiosa por
saber, viaturas e mais viaturas pelas ruas, helicóptero, ou seja, polícia em
terra e no ar. Não era fruto de minha imaginação fértil, o helicóptero estava
no ar, comandando a trajetória dos carros.
Saí do hotel.
Dirigira-me à padaria, sita no Mercado Municipal, para comprar um maço de
cigarros. Disseram-me que dois corpos de estudantes uniformizadas foram
encontrados num terreno baldio nas imediações de uma escola no bairro Casa
Verde às três horas da manhã. Estupro seguido de enforcamento. Crime hediondo.
A macaca da polícia era para aprender dois assassinos extremamente perigosos,
estavam altamente armados. Não sou daqueles que acreditam na primeira
informação, o povo é muito criativo, inventam e aumentam. A violência hoje
ultrapassou todos os limites, não apenas da razão e da sensibilidade, mas de todos
os instintos da raça humana, é animalesca. Às vezes, nas cidades do interior, a
hediondez do crime supera a das capitais.
Comprado o maço
de cigarros, andara uns quatro quarteirões, ouvindo outras histórias. Fugitivos
de grande periculosidade da cadeia de Afonso Pereira, cidade há sessenta e
cinco quilômetros de Atenas do Sertão estavam aqui. Assaltantes do Banco do
Brasil em Serra das Esperanças, outra cidade de nossa região estavam aqui. O
que mesmo acontecia? Carros e mais carros da política circulavam pelas ruas e
avenidas, o helicóptero atravessava o céu da cidade de lá para cá. O comentário
mais divulgado era do assassinato das duas jovens estudantes.
Andei até às
oito e meia por vários lugares, tirando fotos no celular, que é o meu hobby nas
cidadezinhas que vou para fazer assinaturas de meu jornal, receber propagandas
a serem publicadas, entrevistar vereadores, delegados, diretores de
instituições sociais, ouvindo histórias e mais histórias, diferentes, não
diferentes, mas com nuanças novas. E as viaturas circulando. Não acreditei em
nenhuma delas. Retornei ao hotel, apanhei de minha pasta, saí novamente, agora
para o trabalho, seria um dia bastante ocupado, tinha de contatar inúmeros
clientes, se me sobrasse tempo para almoçar era milagre.
No escritório
de um amigo, ele próprio me dissera a respeito do assassinato, dizendo-me,
inclusive, que era mesmo de se esperar, pois que à noite difícil é haver
policiamento no centro da cidade, mesmo na porta do banco que a viatura com
dois policiais fica durante toda a noite. Precisou comprar cigarro, andou bem,
a distância de sua residência à rodoviária, único lugar que fica aberto vinte e
quatro horas, não viu única radiopatrulha. Nos bairros então não há nenhuma. A
cidade fica aberta a todos os crimes possíveis e impossíveis. Compreendi,
explicando-lhe: “A polícia militar está mais interessada em fazer investigação
para a polícia civil, receber dela uns tostões a mais, que cumprir a sua função
e responsabilidade, o patrulhamento da cidade. A criminalidade está com a faca
e o queijo em mão, pode fazer o que bem aprouver”. Claro, a polícia civil não
aprova isto, mas tem de respeitar os direitos. Enfatizei esta informação, não
para não me envolver, não me envolveria, estava conversando com o amigo
delegado Sérgio Farisau, dizendo-me isto, mas por conhecer e reconhecer a
idoneidade da polícia civil.
Encontro rápido
entre mim e o amigo. Tinha de ir à Polícia Civil para apanhar matéria a ser
publicada sobre a visita do Delegado Regional à nossa cidade, para discutir o
tema da Segurança Pública. Tinha de falar diretamente com o delegado Sérgio
Farisau. Entrando no prédio, encontrei-me com o agente Hilário quem me dissera:
“Você que trabalha com um jornal deveria escrever sobre esta ação nossa hoje”,
respondendo-lhe, “Excelente sugestão”. Nada lhe perguntei a respeito, preferi
fazê-lo ao amigo delegado. Assim que abri a porta, estava ele de pé, ao lado de
sua secretária, cumprimentando-o, dizendo-me não podia atender-me, o bicho
havia pegado, estava agarrado, voltasse depois, à tarde por volta das quatro e
meia seria um bom horário. Pedi-lhe
informações rápidas sobre a macaca da polícia com que levantei naquela manhã,
polícia em terra e no ar. Havia eu sabido do assassinato de duas jovens
estudantes, uniformizadas, se isto procedia. Não havia sabido ainda, não
recebera os boletins de ocorrências todos. Poderia saber desta informação na
portaria. Regozijei-me, orgulhei-me, lisonjeei-me com as palavras do delegado,
o alto nível de sua confiança em mim. Jamais em minhas páginas escreveria
in-verdades, e mesmo as verdades saberia como dizê-las. Agente seguiu-me lado a lado,
perguntando-me se tinha alguma relação com as estudantes, se era parente delas.
Respondi-lhe que não, queria saber apenas a verdade, a cidade inteira estava
falando deste crime, visto o povo inventar e aumentar e muito. Fomos à
portaria, nada disso estava registrado. A mocinha olhou no caderno de
ocorrências. Em verdade, havia sido encontrado um corpo à beira de um rio, mas
não era em Atenas do Sertão. A macaca da polícia civil era devido à traficância
de drogas, o juiz expedira dezesseis mandados de prisão de traficantes. A
questão era esta. Saí da delegacia com a verdade em mãos feitas concha,
perguntando-me com ansiedade e angústia: “por que os homens hoje preferem as
drogas para fugirem à realidade? Por que os traficantes fissuraram com a venda
de crack, sabendo que ele mata não só os compradores, mas a eles também? Será
que os agentes do Apocalipse são eles? Seria porque não mais acreditam na punidade,
e, drogados, estão isentos dos medos de todas as conseqüências de uma
sociedade, de um tempo violento?”.
Por todos os
lugares, por onde andei neste dia – calor em demasia, cabelos emplastados,
parecendo que acaba de tomar banho e não enxugava a cabeça, a camisa molhada,
não podia nem me aproximar dos clientes, o cumprimento era verbal, sem apertos
de mão – procurei esclarecer o que mesmo acontecera por a polícia civil haver
“acordado com a macaca”, o que serviu de mofa de algumas amigas, dizendo que alguns
policiais, tanto militares, civis, só podia dormir e acordar com a macaca, de
tão feios, mulher alguma iria querer dormir com eles, só se colocassem um
travesseiro na cara, mas isto é feito pelos homens; outras mulheres diziam o
mesmo, mas com uma nuança: a feiúra era necessária na polícia, dá medo nas
pessoas, autoridade linda não suscita respeito, suscita sedução. Mas todos
acharam bem engraçada a minha expressão para caracterizar a hiperatividade da
policia naquele dia. A macaca euforia terminou em jantar solene de leite com
banana e açúcar para todos. No final da tarde, soubera que todos os traficantes
haviam sido presos com sucesso. A traficância continua, quase impossível acabar
com ela vez por todas, mas a polícia civil estará sempre alerta em nossa
comunidade, defendendo a nossa segurança, a nossa dignidade.
Fosse assim,
hein leitores, em todos os lugares, polícia que nos defende, entrega-se por
inteiro ao cumprimento do dever, como em nossa comunidade, as coisas seriam bem
diferentes, viveríamos mais tranqüilos nestes tempos tão difíceis de nossa
modernidade.
À noite, após o
banho, antes de sentar-me para cobrir a “macaca da polícia civil”, sentei-me à
mesa, e intitulando a matéria, dera uma gargalhada, pois senti que eu também
levantei com a macaca, escovei a casaca e estilo durante todo o dia para
escrever com categoria sobre um dia numa comunidade. Se os leitores admirarem a casaca e estilo bem
escovados, dou-me por satisfeito e contente, se não fico apenas com os meus
interesses de levar as informações a todos de modo mais simples e tranqüilo.
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