**NO CAOS DAS COISAS, SOU EU!** GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto/Graça Fontis: PROSA





Agora começou a chover. Venta e faz frio. Meu corpo molhado treme e a tristeza é ainda maior. Nem percebi a tristeza chegando; quando vi, estava triste. Nunca manda um bilhete, um aviso de quando vai chegar. Já tivemos algumas bungas-bungas por mostrar sua face quando não é convidada, sempre em horas impróprias. Teimosa como ela, não adianta brigar, rasgar os verbos, jamais irá mudar isto, não questiono com quem se diz dona da verdade.


Caminho por ruas esburacadas e, por vezes, enfio o pé em poças d´água, com certeza contaminadas pelos dejectos que os transeuntes jogam. Minha alma está triste até à morte - a tristeza mergulha profundo no meu coração, consome-o. Meu eu agora é esquálido, magro, quase um nada e a tristeza não deixa de corroê-lo, daqui a átimos de segundos não mais existirá e como a tristeza é insaciável, em pouco tempo, tempinho de nada, consumirá a si mesma, como as chamas ardentes do fogo sem nada onde se aderir; dar-se-á a metamorfose; serei uma águia, livre, leve, bom, e voarei para além desse chão lamacento, para além dessas nuvens escuras, e me fundirei, num amplexo de amor e carinho, com o azul infinito deste céu diáfano que meus olhos cegos já começam a ver.


Queria escrever versos gritados, ferozes, versos selvagens, versos rebeldes, versos revoltados, versos que explodissem em mil sons, versos gargalhadas terríveis, versos risos amareliçados com aquela pontinha de cinismo, ironia, versos em voz rouca, versos "limão capeta", sai de baixo, ardem até nas prefundas da alma, versos realisticamente fantásticos, versos que confundissem o coração e ferissem a inteligência, versos ecos em abismo e labirintos, versos mistérios de fundo oceânico, queria escrever vida em versos.


Não queria escrever versos de tristezas tristes, estes versos corróem as palavras, são ácidos. Vou garatujando letras nas linhas da página sob o feitiço, mau olhado, macumba da tristeza, daqui a pouco, quiçá, estarei livre, estarei alegre e contente. Não escreverei versos, escreverei prosa. Os mistérios da prosa insinuam-se, convocam. É e está. Nas cordas interiores vibram os dedos da mão. Versos vertem lágrimas pujantes, prosa revela brilhos no olhar, nesta me entrego.


Não estou triste e nem alegre agora. Estou. Não vou investigar o que estou, não vou obter resposta plausível. Deixo-me estar. Deixo-me estar sentado aqui na mesa do restaurante, olhando a chuvinha que cai lá fora, a agenda aberta, a mão sobre a mesa segurando a caneta, logo uma imagem acompanhada de metáfora. Deixo-me estar garatujando estas letras.


Canção da Liberdade...
Olhar perdido... Imensidão
Nada silencio do dia a dia,
Levo-me circunspecto,
Em ristes passos de encontro ao vento
E a brisa que o tempo de longe traz.
No convite, o perscrutar os sinais
Das percuciências a serem compreendidas
Ao longo da estrada a perder-se, perder de vista,
Alamedas sinuosas advirão até primevas estações
Cujos porvires são de outras paisagens, panoramas,
Aquando se incidem no silêncio
As cores que compõem
Rastros de outros sonhos a galgarem
Ondas siderais e seus boreais profetizadores,
Trilhas de muitos passantes rumo ao desconhecido.


O vento incoerente prepara o caos das coisas. Murmúrios e estrondos estão lado a lado. O que me ensina? Ensina-me a ontologia do pressentimento. Enleva-me na pré-audição. Pedem-me que tenha consciência dos mais débeis indícios. Tudo é indício antes de ser fenômeno nesse cosmos de limites. Quanto mais débil é o indício, mas tem sentido, pois que indica uma origem. Ascendem e acendem as chamas calientes da verdade na alma, quando o cântico evidenciado nas mãos da esperança a lacrimejarem os olhos da liberdade, o coração ouve o ritmo de canções de virtudes que não se compactuam, pactuam com as diferenças presentificadas na quotidianidade e seus valores embutidos ou expressos sem quaisquer níveis de pudores.


Ah, inteligência quiçá de outros tempos
Em que a hipocrisia não reverberava as indefinições!...
Há, contudo, hoje,
A consciência de seus danos, consequências,
A que patamar do nonsense e da bestiloidia levam,
Há-de superá-la, suprassumi-la.


Triste tristeza. Tristeza triste. Triste tristeza triste. Brinco com as palavras. Estão elas abertas para mim, consentem plenamente que eu as registre nas linhas da página, mas eu, tomado desta triste tristeza triste não estou conseguindo mergulhar em mim. Deixo-me.


Deixo a triste tristeza... triste.


#RIODEJANEIRO#, 28 DE FEVEREIRO DE 2019#

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