**NIHIL SUB SOLE NOVUM** GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA




Farto de vendavais, dilúvios, naufrágios, boatos, mentiras, polêmicas, fofocas, farto de ver como se des-compõem os homens, bancários e diretores, advogados e engenheiros, políticos e delegados, papas e padres, farto de mim, de todos, de um tumulto sem vida, de um silêncio sem quietação, de uma solidão sem quimeras e sorrelfas.


Na infância, ouvia minha avó dizer: “Estou farta de ser paraplégica. Estou farta de ficar sentada nesta cadeira dias, meses e anos, faça sol, faça chuva, faça frio”.


Tudo isso cansa, tudo isso exaure, o suor frio corre no rosto a todo instante, haja lenços de linho ou seda para enxugar – é só ligar o aparelho de televisão em jornais: crimes, drogas, desastres de ônibus, aviões, corrupções políticas, sensacionalismo barato com papa manter correspondência íntima com filósofa casada. Estou mesmo de “saco cheio” de tudo. Este sol é o mesmo sol, de por baixo do qual, segundo uma palavra antiqüíssima, os tempos são imemoriais, nada existe que seja novo. A lua não é outra lua. As estrelas não são outras estrelas. O céu azul ou embruscado, as nuvens, o galo da madrugada, baratas passeando no quarto, é tudo a mesma coisa. Lá vai um para o fórum, defender culpado, enjaular inocente, outro para o consultório médico, prescrever receitas, este vende, aquele compra, aqueloutro empresta a juros exorbitantes, enquanto a chuva cai ou não cai, o vento sopre ou não; mas sempre o mesmo vento e a mesma coisa.


Tudo isso cansa, tudo isso exaure. Não fosse tudo isso o suficiente, a vida é a mais velha, juntamente com os homens, tão logo a vida, de imediato o homem e todas as criaturas de Deus; o corpo dividido em três partes, cabeça, tronco e membros, o corpo dos hipopótamos, dos jegues, das galinhas, o corpo de cada um deles é o mesmo, salvo pouquíssimas aberrações da natureza. A morte é a mesma para todos: cerimonial de velório, lágrimas verdadeiras e de crocodilo, angústias, tristezas, o fechamento do caixão, quatro homens carregando-o, o enterro; ou são alimentos dos lixeiros da humanidade, em se tratando de animais.


Em quaisquer ângulos que se analisem tudo é velho neste mundo sem cancelas, sem cercas de arame farpado ou liso. Os homens de vinte anos dizem-se jovens, fantasiam tudo, têm namoricos fugazes, vão aos botequins e restaurantes encher a cara, às festas para a paquera, entram na universidade, tornam-se profissionais graduados, com ou sem qualquer eficiência. Os de cinqüenta dizem-se não tão jovens, mas ainda jovens, há muita água para passar debaixo da ponte. Os de setenta, oitenta dizem-se velhos, mas não senis, caducos. Esquecem-se de que isto é visto em termos de idade, de estar habitando o mundo, não se lembram de pensar que tudo isto é ilusão, fantasia, quimera, quiçá doidura das bravas: a vida é velha, antiqüíssima. Tudo isso cansa, tudo isso exaure.


Nada sobra: idéias, ideais, pensamentos, sonhos, utopias, angústias, tristezas, etc., etc. Ninguém pensa ou quer fazê-lo, é acumular dores e sofrimentos, tédios os mais sublimes e variados, não restando alternativa senão o suicídio em massa, no mundo ficarão só as coisas e objetos, que, ao longo do tempo extinguirão com a ação das chuvas e sol.
Tal era a reflexão que eu fazia comigo, enquanto trabalhava na nova edição de meu tablóide O Sertão Mineiro – pensava que também é velho na imprensa bichas, viados, homossexuais, franchonas, jornalistas, colunistas, diretores.


Que me diriam eles que não fosse velho? O que menos apita, quem menos importa no tablóide é o leitor, isto é, de nossa atualidade mesquinha e hipócrita, o que diria eu ser estupidez, o leitor desde tempos imemoriais gosta de escândalos, crimes, corrupções, vulgaridades, por isso sobreviveu até a modernidade, sobreviverá até a consumação dos tempos. Res-ponder-me-iam a plenos pulmões: “antigamente, a língua era usada com critério e conhecimento, não era necessário freqüentar escolas, ouvir as lições do professor, para assimilar as regras e exceções dela, quando hoje a língua não diz qualquer coisa, não tem a mínima importância, ela impede a consciência, forte ad-versária, dos problemas que estão aí a olhos cegos ou vendados, além de instituir e institucionalizar a “liberdade de expressão”, que é a febre icteróide do momento, como sempre houve, há, sempre haverá o “icteróidismo”.


A guerra é velha, quase tão velha como a paz: guerra nas Malvinas, guerra no Vietnã, guerra no Iraque... Os próprios diários são decrépitos. A primeira crônica do mundo é justamente a que conta a primeira semana dela, dia por dia até o sétimo em que o Senhor descansou. O cronista bíblico omite a causa do descanso divino; podemos supor, com qualquer espécie de ignorância que nos habite, tipo de alienação, que não foi outra senão o sentimento da caducidade da obra. Deus dizendo, sentado em seu trono: “Agora, vivam o mesmo por todos os séculos, na consumação dos tempos a caducidade de minha obra estará por inteira re-velada”.


Repito, que me trariam os diários? As mesmas notícias locais e estrangeiras, a mulher que matou o marido com duas facadas, porque ele se drogava e dava-lhe surras constantes, as colunas sociais eivadas de pessoa sem qualquer importância social, artística, política, científica, retratos de colunista com personalidades importantíssimas do métier cultural e artístico, com o mesmo sorriso e olhos brilhantes, dizendo na cara mesma “estão vendo como sou importante! Minha imortalidade está garantida”, incêndios, notas de falecimento de deixar caírem o queixo das sete maravilhas do mundo, uma tempestade daquelas que deixou milhares de pessoas na miséria insofismável, a crise política de Honduras, o aniversário de jovem, filha de Fulano e Beltrana, as cebolas do Egito, o carnaval do Rio de Janeiro, a corrupção deslavada no Brasil.


Abro as páginas sem qualquer curiosidade, leio sem interesse algum, deixando que os olhos caiam pelas colunas abaixo, ao peso do próprio tédio e fastio.


Antes de continuar escrevendo este editorial, que, com efeito, não será lido por ninguém, se alguém o fizer é capaz de molhar a ponta da língua com estricnina, consequência da consciência do tédio de tudo, do fastio de todas as coisas, não haver modo algum de re-verter, para isso seria necessário a vida ser outra, e nunca será, faz-se mister saber a idéia que faço de um legislador, e a que faço de um salteador. O leitor perguntará: “O que têm as idéias que ele faz do legislador e salteador com o tédio e fastio, tema deste editorial?”; pergunta mais que percuciente, vale isto ressaltar e sublinhar. O legislador é o homem deputado pelo povo para votar os seus impostos e leis. É um cidadão – não indivíduo qualquer, embora seja encontrado às pencas nas câmaras – ordeiro, ora implacável e violento, ora tolerante e brando, membro de uma câmara que redige, discute e vota as regras do governo, os deveres do cidadão, as penas do crime.


Advogado mais que conceituado dissera-me que de semana em semana é preciso adquirir outro livro da Constituição Brasileira, de minuto a minuto outras leis, emendas são feitas. O salteador é o contrário. O ofício deste é justamente infringir as leis que o outro decreta. Os gênios e intelectuais mesmos dizem: “lei foi feita para ser infringida” e o populacho endossa a unhas e dentes. Inimigo jumentado e juramentado delas, contrário à sociedade e à humanidade, tem por gosto, prática e religião tirar a bolsa aos homens, e, se acaso for necessário, a vida. Foge naturalmente aos tribunais, não passam na porta das delegacias, e, por antecipação, aos agentes da polícia, corre léguas e milhas deles. A sua arma é um revólver, um punhal, uma faca, pedaço de pau; para que lhe serviriam penas, a não serem de ouro? Um revólver, um punhal, olho vivo, pé leve, e mato, eis tudo o que ele pede ao céu.


Dadas estas noções mais que elementares, imagine o leitor com que alvoroço li esta notícia de uma de nossas folhas: “Foi preso o vereador Thalis Josefino, e expediu-se ordem de prisão contra outros, por fazerem parte de uma quadrilha de salteadores, que infesta a nossa comunidade”. Acredito terem sido poucos os leitores que leram essa matéria, se é que há alguém, visto que já estão enfastiados de tanta corrupção na política.


Sim, essa mistura de discurso e espingarda – não creio seja coisa nova, até o que não existe, jamais alguém ousou fazer, é já velho: não me consta que algum vereador tenha feito discurso na tribuna com uma espingarda em mão -, esse apoiar o ministério com um voto de confiança às três da tarde, e ir espreitá-lo às cinco, à beira da estrada, nos jardins da avenida Sanitária ou da Integração, para tirar-lhes o resto do subsídio, não é comum, nem excêntrica, muito menos rara e inusitada, é única. As instituições parlamentares não apresentam em parte nenhuma esta variante. Ao contrário, quaisquer que sejam as modificações de clima, de raça ou de costumes, o regimen das câmaras difere pouco, e, ainda que difira muito, não irá ao ponto de por na mesma curul Nero e Pilatos. O leitor cai na gargalhada! Tem todo o direito de fazê-lo, não o fizesse, acabaria eu por acreditar não haver atingido o objetivo, desde que tomei da pena para escrever este editorial, identificando em todos os níveis possíveis e impossíveis, transcendentes e contingentes, o mesmo que impera, a velhice de todas as coisas e da vida mesma. O tédio também é leitmotiv de riso, só que nervoso e desesperador.


Há alguma coisa nova de por baixo do sol?
Senti-me fora de mim, estupidificado, bestializado. A situação é, em verdade, aristofanesca. Só a mão do grande cômico grego podia inventar e cumprir tão extraordinária facécia. A folha que dá a notícia da prisão do vereador Thalis Josefino e seus comparsas não dá conta de provável confusão de linguagem que há de haver nos dois ofícios, salteador e legislador. Quando algum daqueles vereadores tivesse de falar na Câmara, ao invés de pedir a palavra, podia muito bem pedir a bolsa ou a vida dos presentes. E nada ficaria, em absoluto, fora do seu lugar; com um minuto de atenção e agilidade se tira o relógio a um homem, e mais de um na Câmara preferiria entregar a bolsa a ouvir um discurso de justificativa da corrupção que fora a razão de haverem sido presos.


Por todos os deuses do Olimpo, caríssimo leitor! não há gosto mais perfeito na terra. A novidade está no mandado de prisão aos legisladores corruptos – jamais ouvi dizer que algum vereador de nossa comunidade tenha sido preso mesmo, atrás das grades. Foi a primeira vez que o mandado foi expedido. Fiquei triste, não com a prisão dos corruptos, não com a corrupção que realizaram, mas pelo fato de que foi uma coisa nova de por baixo do sol de nossa comunidade.


A própria poesia perde com isto; ninguém ignora que o salteador, na arte, é um caráter generoso e nobre, e o legislador é que faz leis a favor do plágio, contra os direitos autorais, contra a liberdade de expressão e inspiração, contra a sensibilidade; re-criando Voltaire, não é negócio para os legisladores que as artes identifiquem suas mazelas e corrupções. Thalis – se é assim que se lhe escreve o nome, neste sentido a liberdade é total e absoluta, pode-se-lhe escrever Talis, Thális; aliás, já vi, li nota de falecimento com o nome da pessoa completamente distorcido: Maria Elva Licorda se tornou Maria da Silva Lacerda, uma mulher que não se casou, não se divorciou, não teve filhos, não teve netos e bisnetos, quando tudo isso na vida dela aconteceu – pode ser que tivesse ganho um par de galochas de grife a tiro de espingarda; mas estou convencido e persuadido que proporia à Câmara uma pensão à viúva da vítima. São duas operações di-versas, e a di-versidade é o próprio espírito grego. Adeus, minha ilusão de instante de mostrar aos homens o tédio de tudo que há no mundo, a velhice da vida, dos sistemas, das idéias, ideais, pensamentos!


Tudo continua a ser velho; nihil sub sole novum.
Nem sempre res-pondo por papéis velhos, por matérias e artigos velhos; mas aqui está um que parece autêntico; e, se o não é, vale pelo texto, que é substancial, cabendo ao leitor apenas ler não com os olhos da razão e da galhofa sem limites e fronteiras, mas com a sensibilidade. Se amanhã, depois de lida esta matéria, a população resolva vez por todas tocar fogo no prédio da Câmara, não sou eu o res-ponsável, o culpado, enfim tudo isso é de tempos imemoriais.


#RIODEJANEIRO#, 18 DE FEVEREIRO DE 2019#

Comentários