#AFORISMO 601/MORANGOS SILVESTRES# - GRAÇA FONTIS: PINTURA(TÍTULO: #REMEMBERINGS#)//ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO



Lembrança... Quê palavra estranha, esquisita! Escrevo-a à margem esquerda da folha de papel, olho-a com atenção. Pronuncio-a. Soa bem aos ouvidos. Mas o que significa? Que sentido tem? Seria "lembrança" o haver estado há alguns minutos sentado na cadeira de balanço, pés sobre a mesa, olhando as nuvens escuras do céu? Não pode ser lembrança isto. Seria lembrar as palavras escritas por Lelê - nossa, não gosta mesmo que a chame Lelê: "Chame-me Lê, mas não Lelê. Não sou despirocada", diz quase aos sussurros, voz rouca, assim expressa a sua insatisfação; "Querida, tem o circunflexo no último "e", não é acento agudo, Lelé, aí sim é insinuação de que os pensamentos estão virados de cabeça para baixo", dá aquele sorriso amareliçado -, dizendo de seu amor, quando ama, ama mesmo, ama com pujança, o amor é dela, deem-lhe licença, mas é assim que se expressa? Isto é lembrar? Escreveu isso há alguns dias. Parece-me que "lembrar" é algo que está guardado a sete chaves na inconsciência, e que se anuncia, revela, após um esforço, desejo de a coisa já passada se mostrar, poder vê-la outra vez, não é mais a coisa fresca e viçosa do momento, em mim ela se transformou.


Mendigo bêbado se aproxima de minha mesa. Baba escorre-lhe queixo abaixo. Sujo, fede. Passo o dedo indicador da mão esquerda no nariz. Continuo olhando a palavra lembrança escrita na margem da folha. Não sei porque venho a esta rodoviária de quando em vez para tomar uma cerveja. Bêbados, traficantes, pessoas de condutas duvidosas e espúrias, passageiros sentados no banco esperando o ônibus estacionar, colocarem a bagagem no bagageiro, mostrarem a passagem ao motorista, subirem os degraus, sentarem-se na poltrona que compraram. A todo momento um bêbado chega para incomodar. Não dou atenção.


- Dá um cigarro aí, moço... - diz, engrolando as palavras, a língua está anestesiada, as palavras saem misturadas com a baba, felizmente não as acompanha. Há bêbados que cospem na pessoa, quando falam, esse não, a baba escorre queixo abaixo, as palavras saem engroladas.


O proprietário traz-me a porção de carne seca com mandioca. Sai de dentro do balcão, dançando ao som de uma música Pink Floyd. Calça rasgada, botina de cano longo, luzindo, chapéu de coro, barba por fazer. Quer chamar atenção dos clientes com a dança, homem alegre, extrovertido, assim faz a sua freguesia, clientela. Coloca o pratinho de porção sobre a mesa. "Mais alguma coisa, Herisberto?" Olhando ainda a palavra "lembrança" escrita à margem do papel, respondo-lhe quase em silêncio: "Não, obrigado..." Levanto a cabeça, olho-o. Perscruta-me com o seu olhar frio, seco. Balança a cabeça de um lado para outro como quem está dizendo: "Não lhe dou a mínima".


O nada é o tudo e o tudo é nada. O vazio é o cheio e o cheio é vazio. Escrevo estas frases ridículas para passar o tempo? Escrevendo-as ou não, o tempo passa. Quero acreditar que as escrevo para me persuadir e convencer de que não estou vazio, há palavras dentro de mim. O que é o nada? O que é o tudo? O que é o cheio? O que é o vazio? Tais palavras saíram de mim sem sentido, sem significado algum. Deslizei a pena na folha, escrevi-as. Livrei-me delas, não sairão do papel e voltarão para dentro de mim. Largo a caneta sobre a folha. Recosto-me à cadeira. Os olhos tergiversam-se por todos os lados, não se fixam. Vão sair das órbitas. Perambularem pelas ruas da cidade.
Semana passada falecera uma grande amiga, artista-plástica. Estive no seu velório.


Largo a cerveja pela metade, o prato de carne seca com mandioca, a folha e a caneta sobre a mesa, dirijo-me ao balcão, pago a nota. Saio correndo do botequim.


(**RIO DE JANEIRO**, 25 DE FEVEREIRO DE 2018)


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