ÚNICO SENTIMENTO VERDADEIRO GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA






Isto de dizer “sentimento verdadeiro” é, em todos os aspectos, dificílimo de estabelecer; enfim, exige in-vestigação de características reais, dimensões espirituais íntimas, nada podendo contestá-las; é o que mostra a essência do “ser”, se é que se possa dizer de “essência”.


“Único sentimento verdadeiro” significa que todos os outros não apresentam as características e dimensões exigidas e necessárias para a comprovação de sua veracidade; só o que está sendo mostrado, identificado.


Ademais, mesmo que seja feliz no concernente a mostrar esse sentimento, acaba que sendo verdadeiro somente para mim, alguém perspicaz e inteligente faz uma leitura que contradiz os princípios em que me sustentei para a demonstração, inspirei-me, olhando-me dentro, mergulhando-me profundo na alma.


Pergunto-me, ora, diante destas considerações, se o interesse é de estabelecer os princípios, de fundamentá-los a partir das vivências e experiências. Pergunto-me se me interesso por mostrar a verdade do sentimento estou a viver.


Assim ajo por saber que o ser se faz continuamente, apesar de haver sido feito por todos esses anos. Resta muito a ser feito, quem sabe consiga apenas esboçar ao longo do resto da vida.


A título de exemplo, o desejo de amor só vive de entrega. À medida que me vou entregando ao outro, de modo e estilo compassivo, solidário, humano, o amor vai se fundando; esta entrega é ilimitada, infinita, o que celebra o seu caráter universal, imortal, eterno. O amor verdadeiro só se tornou real em Cristo; havia n´Ele a semente, ser filho de Deus, mas fora as suas atitudes, ações, aceitar morrer na cruz em nome de salvar a humanidade do pecado que realizou o Amor. Os homens somos a sua busca, o seu desejo, e, se queremos estar à sua luz, devemos nos entregar inteiro à compaixão, solidariedade, reconhecermos no outro os seus sentimentos mais profundos, compreendermos-lhes os sofrimentos, dores.


Não resta dúvida de que a intenção fora de dizer a respeito do amor, este único sentimento verdadeiro que poeticamente habita os homens. Intencionava fazê-lo, identificando-lhe com as minhas atitudes, ações, considerações, realmente o sentir no íntimo, saber-lhe verdade minha.


“Sim, isto o que sinto é amor. Não apenas sentimento de amor. Sentimento de amor é ainda anunciação; significa que o tempo e as ações o transformarão em amor”. Vi-me diante de uma presunção sem limites. Quem sou para dizer que “amo”? Quem sou para dizer que sou possuidor de “amor” inconteste? O amor que sinto deve ser inspiração para todos os homens?


Ah, isto de o homem querer ser deus é ilusão, quimera, fantasia absurdas, aliás, impedindo-lhe de realizar a vida, mesmo que apresentando deficiências, falhas.


Não. Não quero ser deus. Quero apenas realizar a vida à luz do amor verdadeiro, do sentimento de verdade que me habita, o que me faz prolongar, prosseguir a jornada sempre buscando o para que sou vocacionado.


Este sim é o único sentimento verdadeiro, o sentimento da busca de amor, de perfeição, de sublimidade. Se tenho consciência de que o trabalho contínuo já me proporcionou conquistas sensíveis, clareza da linguagem, transparência das idéias, pensamentos, sonhos e utopias, não significa que não mais preciso trabalhar, posso refestelar-me na cadeira de balanço, olhando a roda-viva da vida. Há muito a ser conquistado, a ser realizado. A vida inteira não será suficiente para atingir a dimensão que intenciono.


Verdade é que, diante da clareza da linguagem, transparência das idéias, vou atingindo conhecimentos profundos de quem sou e represento neste mundo, os sonhos e utopias que poeticamente me habitam o ser. O trabalho contínuo devolveu-me a esperança, os ideais que, na juventude, imaturo e quimérico, vi distanciarem-se nas curvas longínquas e sinuosas. Jovem, fui muito ansioso. A todo custo desejava mostrar as minhas capacidades, valores, virtudes, negligenciando o tempo e as experiências. O que mais fez distanciarem-se a esperança e os ideais fora a vontade de provar as capacidades que tinha.


Não recebendo reconhecimento algum destas capacidades, valores, virtudes, tornei-me angustiado, desesperado, frustrado com a vida. Precisava entregar-me a algo de corpo e alma, sabendo que a luta seria eterna, o que interessava era superar os problemas, conflitos com as rejeições e discriminações alheias. O trabalho contínuo só tinha um fundamento verdadeiro: aprender a amar-me.


Ensinou-me a vida a reconhecer os dons gratuitos que recebi das mãos de Deus, pondo-me deliberadamente a desenvolvê-los não a nível egoísta, egocêntrico, mas no sentido de contribuir com os homens, de fazer-lhes questionar a respeito de suas vidas, de seus sonhos, utopias, desejando tornar-lhes realidade.


Lembrou-me algo que escrevera aos vinte e seis anos: “O homem é a síntese: indivíduo e humanidade”. Fora esta a bússola que me orientou os caminhos à procura de uma realização, de sentir-me útil à vida.


Naqueles tempos, havia somente o orgulho de um pensamento profundo. Aliás, enquanto tomava uma cerveja acompanhada de uma branquinha com a senhora, conversando sobre alguns assuntos familiares, disse-lhe que na juventude me orgulhara muitíssimo da inteligência que a mim fora doada gratuitamente por Deus; hoje, não me orgulho mais. O orgulho precede o fracasso, isto é o que penso. Não me sinto fracassado. Por que me orgulharia? Não tem qualquer sentido.


Sou homem consciente desta inteligência, não apenas dela. Sou consciente de valores e virtudes que, ao longo da vida, fui construindo, e eles só se fundamentam para mim, se penso que servem, serviram para alguém.


Ser consciente não significa que as lutas terminaram, não mais necessito de lutar. Ao contrário, agora é que preciso mais, pois que, maduro e experiente, posso ainda mais aprofundar esta consciência a partir das realizações.


Sempre se ouve alguém dizer: “Ah, se jovem eu tivesse esta consciência que tenho hoje de mim e de minha vida!... Seria outro homem. Teria realizado coisas que até Deus duvidaria”.


À soleira destas palavras, até eu próprio já as disse em inúmeras situações, porém apenas seguindo o que outros disseram, digo: “Quem dera se, com a consciência da vida que tenho hoje, possa no futuro não apenas realizar o para que sou vocacionado, mas sentir o único sentimento verdadeiro sendo semente para quem necessita”.


Aí, sim, sentir-me-ei homem. Por enquanto, busco esta completude, se assim posso dizer.


#riodejaneiro#, 21 de junho de 2019#

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