LÚCIFER PERNÓSTICO X QUINCAS BABOSO GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA SATÍRICA




“Que idéia de jegue é esta? Dá licença...”, sendo assim que muitos se expressam, quando desejam se referir a uma idéia absurda, quais as perdas e benefícios, os ganhos e prejuízos, enfim, nada, isto é o que qualquer homem no seu juízo comum e são irá afirmar, se preciso entregar-se às mãos do destino...


Mesmo que três quilômetros e meio ida e volta não seja tanto para um asno experiente, muitos anos só fazendo isto, subindo e descendo ruas, a carroça cheia de alguma coisa, ainda assim não é uma distância que se percorre a troco de chicotadas. Só mesmo no momento de minhas teimosias, e isto não é um dos instintos, características, já bem não o posso distinguir a menos que passe a considerar a idéia ser mesmo a de um jegue, também não saberia dizer de que se trata isto em mim.


Ora veja, não estou acostumado a ir buscar boi morto para os açougues, mas há quando os açougueiros precisam de um boi extra, é tempo de evento musical importante em nossa comunidade, a cidade estará abarrotada de gente para o grande espetáculo da noite, a Vesperata. Então contratam os donos de carroças para o frete, o que é normal acontecer, um grupo se reunir e ir buscar os quartos e tudo o mais, fígado, rins, coração, fato, etc., etc. Não sendo um grupo, o carroceiro costuma cobrar mais para buscar em duas ou três vezes.


Posso ser surrado, mas me recuso a sair quando o contrato inclui que devo estar presente no momento do sacrifício do animal. Não vou. Digo-o com dignidade. Sou surrado até morrer, não movo um pé sequer. Puxar carroça, sim, muito trabalho, mas se vive, embora não saiba eu o sentido disto que é viver, então viver é só esperar, é só vencer etapas e fases, etc., etc.


Donde é que já se viu alguém criticar as atitudes de alguém, mostrando-lhe as mazelas e pitis do quotidiano com todas as letras e vírgulas, se não sabe o nome desta pessoa, alguma instituição ou entidade, se não se sabe o nome da primeira, as divisões burocráticas que a cada uma é de direito. Se se deseja realizar a crítica, mudar o quadro das relações sociais, é necessário a pesquisa, a investigação, a extrema acuidade na interpretação dos fatos e dos acontecimentos, deixando estes dizerem o que significam. Bem...


Certo editor-chefe de um tablóide de nossa comunidade, Quincas Baboso, decidira criticar instituições e personalidades de nível no quadro político, econômico, social, artístico, e tudo o mais que se possa imaginar, o que, em verdade, a resposta é um relincho. Ouvira ser comentado por todas as esquinas que, sem informação da realidade mesma, o editor-chefe acabou se envolvendo com situações complicadas.


No fritar dos ovos, fora publicado edição-especial, com mudança até na cor do jornal, a fim de constar nos anais de nossa história, um direito de resposta.


Comentaram que o editor-chefe fora chamado de viperino, ignaro-escritor, homem sem princípios, moral, ética. Em verdade, fora muitíssimo comentado em muitas rodas e grupos de nossa sociedade. Era manhã de sábado, “sábado no mercado”, quando alguém chega empunhando um jornal, dizendo que o editor-chefe tinha recebido o que merecia. O que lhe valeu uma pergunta: “E você aprova isto!”. “E por que não?”, causando um mal-estar entre ambos até que o mais velho decidiu não se envolver com aquela estirpe de homem.


A resposta do editor-chefe também estava sendo publicada no mesmo número do tablóide, mas como sempre suas respostas sempre se remontam à infância, adolescência, juventude, maturidade, isto e aquilo que justificam suas atitudes e ações, e assim ficam-se o senhor e a vítima em todas as situações possíveis.


Convenhamos, isto não será nunca algo de sua consciência, são palavras escritas num tablóide, mesmo que alguns não guardem, muitos não têm os números em ordem de publicação, outros tendo, sendo os especialistas, os historiadores, os que gostam de saber o que está acontecendo, mas alguém sempre tem o número e se alguém pesquisar, investigar, vai dar direto com esta realidade. São coisas que não se esquece: de modo e de outro faz parte da história, e ninguém que ostenta uma posição, um renome admite que se lhe chame de ignaro, quanto mais um escritor. As marcas ficam, não haja qualquer dúvida.


Os quartos do boi estavam sendo entregues no açougue, só se viam homens com sacos de aninhagem ao ombro, carregando os quartos, que não são leves, boi magro ou gordo, não importa. Ouvi este comentário, o que me deixou de orelhas em pé, querendo ouvir os mínimos detalhes. Então, alguém que se ostentava um dos grandes escritores da nossa comunidade de repente é chamado de ignaro. Bem, há muitos estilos, individualidades, características, problemas patológicos, psicológicos de artistas e gênios, mas jamais ouvi alguém dizer que são ignaros. Sem dúvida, isto deixa marcas profundas.


Fosse comigo, se alguém dissesse que sou um equus asinus estúpido e grosseiro, não me sentiria nem um pouco satisfeito, aliás, muitíssimo magoado e ressentido. Ainda mais, como muitos já disseram que só me faltava falar, sempre havendo dúvidas se já não penso. Será que ele realmente ressentiu, se há possibilidades de o fazer.


Quanto a este senhor Quincas Baboso há muito a ser relinchado, quanto ao que já ouvi dizer a respeito dele. Estive presente nesta ou naquela ocasião. Enquanto meu dono termina o serviço, fico a ouvir o que se é comentado. Esta é a nossa grande diferença. Puxo a carroça, mas como neste mundo tudo é compensação me foi dado ouvir as conversas enquanto o serviço está sendo terminado por meu dono. Situação confortável, bem o sei, mas nada posso fazer neste sentido, a menos que deixe de ser Lúcifer Pernóstico, o asno, para ter nome importante de ser humano. Não é isto que pretendo..


Sei que alguém comentara que numa conversa alguém dissera respeitar a linguagem e estilo de outro escritor, de nossa comunidade, mas não se era possível entender bulhufas do que estava dizendo, o que mesmo estava querendo expressar. Então, amigo deste escritor dissera ao editor-chefe que entender o que seu amigo diz seria necessário conhecer de onde ele vem. Alguns caíram na risada, e ele próprio não teve qualquer possibilidade de resposta.


Agora, está ele à porta de uma farmácia, enquanto a chuva está começando nesta manhã, olhando-me de soslaio, um ar cínico e irônico. Olho-o e não compreendo a sua atitude. O que justifica um ser humano olhar para um asno de soslaio? O que pode explicar? A não ser que já esteja sabendo da correspondência-resposta enviada ao senhor-autoridade. Sendo muito amigos, não diria íntimos, não lhes conheço as cumplicidades, conquistas juntos, mas pode ser que com ele haja comentado sobre a correspondência, até acreditando que a tenha mostrado, ainda comentando: “Agora um asno resolve ser a personalidade mais importante, interferindo, melhor dizendo, tendo a ilusão de interferir nas questões dos homens em nome da História. Dar atenção para um asno”.


O que a mim importa se ele esteja dizendo para si mesmo: “Dar atenção para um asno. Ora lá, se nos vale...”, dando a esta expressão um enorme valor, um estilo jamais encontrável em qualquer obra de toda a humanidade. Não estou nas tintas para o que pensa, deixou de pensar... Ainda que achincalhe que a atitude do meu dono de construir a espécie de varal a minha frente, numa distância tal que não me seja possível comê-la, já mostra claramente que sou um asno, um ignaro quadrúpede. Ora, se me vale dar importância a este tipo de tentativa de achincalhamento, mas em verdade a mim não me fora dado o pensamento, a razão.


Talvez até esteja imaginando, se é que seja possível um asno pensar, saber o que está acontecendo, analisar, interpretar, ser capaz de discernir os benefícios e prejuízos, os ganhos e perdas, o que estaria eu pensando a seu respeito. Mas não se digna a vir perguntar-me: “Enfim, por quem me toma?”. Se o fizer, não haverá quem nas redondezas que, assistindo à cena, não vá ridicularizar. “Está ficando pior a cada dia que passa...” Perguntar a um asno por quem é tomado, isto só cabe aos insanos.


Também qual a resposta que receberia se rompesse com os preconceitos, discriminações a ponto e natureza, perguntando-me. Não sendo um especialista em mostrações dos dentes brancos, os relinchos, como é que irá saber o que estou pensando. Não lhe fora dado o conhecimento da língua dos anos. Seria insanidade, embora tenha dúvidas acaba admitindo. Estaria exposto ao ridículo.


Não sei se ele ainda continua me olhando, ficou para trás, mas penso se não seria muito interessante enviar-lhe uma correspondência, lembrando-lhe de haver estado em eventos artísticos e culturais, lançamento de livro de filosofia, cujo autor é um de seus grandes inimigos, mas fora necessária a sua presença. As diplomacias e formalismos estão sempre presentes nestas ocasiões, assim tiraram foto juntos. Nalguns grupos, outra conversa não se apresentava senão na “farsa do ano”, dois inimigos se cumprimentam.


Saberia, então, o que penso dele, se é que a minha opinião lhe interessa; se interessar, não haja dúvida que se torna suspeito, enfim agora está nas tintas para as opiniões de um asno. Não vê que as sociedades sempre necessitam de crenças e idolatrias sem quê nem porquê. Agora é Lúcifer Pernóstico.


Não creio mesmo que, se decidisse enviar-lhe correspondência, teria condições de interpretar nas entrelinhas o que estou querendo dizer, estando sempre a olhar para a página, especulando e tirando conclusões disto e daquilo, não sabendo o que dizer.


“Mas tem chovido, hein!”. Só se ouve isto. As donas de casa preocupadas com a umidade, as roupas molhadas. Continuo subindo a rua Francisco de Sá.


#riodejaneiro#, 17 de junho de 2019#

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