DOMINGO# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA





Quando alguém parece ter-se resolvido em definitivo a passar o domingo em casa, quando vestira um shorts, colocara uma camiseta, a que boi mastigou, conversara com a companheira sobre coisas fúteis, ligara o aparelho televisor, assistindo a alguns filmes nesta ou naquela emissora – sempre há um que termina numa, começa noutra -; à tarde, tomara em mãos um livro que ganhara de presente, começando a ler pela segunda vez.


Saíra pela manhã com o propósito de comprar cigarros. Há três anos que se encontra na cidade, na condição de residente e domiciliado, casado, acredita sim conhecer bem os falsos, enganadores, que à noite se erguem com as mãos estendidas, desejam repartir com todos o que há nelas, como taverneiros, emergindo das ruas laterais; que rodam em torno dos postes de propaganda, ao lado, como se divertissem à beça com a brincadeira de esconde-esconde, e espiam do lado oposto do poste, pelo menos com um olho: a complacência diante do destino alheio colore-lhe a face descoberta.


Emergir de um estado de melancolia – ou deveria ser mais categórico, dizendo nostalgia, por haver sido o que em primeva instância se anunciou em seu espírito – deveria ser muitíssimo fácil, mesmo à força de puro desejo.


Procura erguer-se da rede em que está deitado, na varanda de sua residência, sendo cinco horas e trinta minutos, fim de tarde, está lendo desde por volta das duas e meia, quando desistira de continuar assistindo a cenas de filmes nesta ou naquela emissora, sendo tolos por inteiro, iniciando a leitura do livro.
Rodeia a sacada – ou deveria dizer varanda, mas a repetição do termo mostraria um limite de vocabulário sem fronteiras – com os olhos, olha ao longe as serras, os campos, em seu íntimo o desejo de avistar o Pico do Itambé, mas a localização de sua residência isto não permite.


Põe em movimento a cabeça. Quando sai a caminhar de noite por algum beco qualquer da cidade, e alguém, visível desde muito longe – por o beco é empinado e há lua cheia -, caminha em sua direção, a fim de algum dedo de prosa, vira as coisas e desce, tomando outra direção bem adversa ao que antes havia pensado, se é que pensara antes em quais lugares passar.


É noite. A culpa não é sua que o beco seja em declive e a lua cheia. Com direito, é responsável por todos os chamados nas portas, por todos os golpes sobre a mesa de afortunado que espalha as cartas, por todos os brindes e “Tim-tins” de amigos e conhecidos, cúmplices, álibis, comemorando estes e aqueles negócios bem conquistados, por todos os casais de amantes em suas alcovas, trocando carícias e palavras ternas e meigas, a promessa da felicidade e prazer eternos, nos andaimes das construções, nas alamedas escuras, nos becos muito iluminados do centro da cidade, apertados contra as paredes das casas, nos divãs dos prostíbulos.


Aquele que vive só – é quem, não lhe resta qualquer dúvida -, e que, contudo, deseja vez por outra vincular-se a alguém, a algo, se não houver possibilidade de quem; quem, considerando as mudanças do dia, do tempo, do estado de negócios e outras “cositas”, deseja súbito ver um braço ao qual poderia se aferrar, não está em condições de viver muito tempo sem uma sacada que dê para um cenário de tão esplendorosa beleza.


Quando já se torna ininteligível e insuportável – ao entardecer de qualquer dia, inverno, primavera, verão, outono -, cansado de ir e vir pelo estreito tapete de seu quarto, e de evitar a imagem da rua iluminada, se volta para o fundo do quarto, e na profundidade do espelho encontra um novo rumo, e grita, para ouvir seu próprio grito, que não encontra resposta nem nada que diminua seu vigor, de modo que sobe, sem resistência, sem cessar nem sequer quando já não é audível.


E se lhe agrada não continuar a leitura, deixar o livro sobre o banco de madeira onde se encontra o cinzeiro com tocos e cinzas de cigarro, encostar-se ao parapeito da varanda, ficando a olhar a esplendorosa paisagem que se anuncia à frente das serras e montanhas, dos campos, dos abismos que, mesmo não vistos, existem. Aproxima-se do parapeito da sacada como um homem que estivera lendo por muito tempo, embora o estilo e linguagem do autor seja por inteiro agradável, não sentira o tempo passar, cujo olhar oscila entre as serras e alguns transeuntes que descem ou sobem a rua, cotovelo sobre o parapeito, mão amparando o rosto, e assim se sentindo finalmente na harmonia humana: fim de tarde, princípio de noite, domingo, não saíra por tempo algum durante o dia, só pela manhã quando fora comprar o seu maço de cigarros.


A vida é curta. Agora, ao recordá-la, aparece-lhe tão condensada, que por exemplo quase não compreende como o homem pode tomar a decisão de segui-la sem quê nem porquê, é-lhe confortável, sente-se bem vendo os dias, meses, anos, décadas passando, sem nada haver construído, sem nada haver criado, cuidou apenas de ter dinheiro no bolso para satisfazer as necessidades e futilidades.


Quando se compreende com mais clareza que de costume, que se possui mais poder que necessidade de provocar e suportar com facilidade as mais rápidas mudanças, e quando percorre os becos e alamedas, às vezes maiores um pouco, adquire sua verdadeira imagem e representação.


Como terminar o seu domingo. Quem sabe ficará mais um pouco, enfim a noite chegou, as luzes da cidade todas se acenderam, alguns transeuntes se não vão a um barzinho, tomar algum drink, vão à igreja agradecer a Deus pelo pão que recebera durante a semana.


#riodejaneiro#, 12 de junho de 2019#

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