LÚCIFER PERNÓSTICO - PATRIMÔNIO CULTURAL DIAMANTINENSE GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA SATÍRICA




Não sei se devesse chamar de expressão, de ditado, de adágio. Contudo, a fim de superar esta dificuldade, prefiro dizer “linguagem de gozação”. Há inúmeras delas que são felizes, achincalham as pessoas, mostram-lhes o lugar que devem habitar ou estar por longo tempo. Ademais, fazem os presentes cair na gargalhada sem dó nem piedade.


Andava devagar, subindo a rua do hospital, uma ladeira difícil. Não há quem ao atingir o topo não pare por alguns instantes até recuperar a respiração normal. Algumas pessoas dizem com as letras em ordem: “Só falta o bofe sair pela boca. Está na garganta”.


Talvez por esta razão esteja andando devagar, cabeça baixa. Não tem interesse algum de chegar ao fim da ladeira com um palmo de língua para fora. Vi-o outras vezes desembestado nesta mesma subida. Só não pude saber se ao final colocou a língua para fora, empacando-se, recuperando a respiração. Estava eu no início.


A curiosidade de imediato se apresentou. Surgiu-me à mente que a cenoura estivesse murcha, não mais lhe despertando a vontade de comê-la. Assim, não teria mais sentido algum andar desembestado com a esperança de abocanhá-la. Olhei com bastante atenção. Não estava murcha. Ao contrário. O carroceiro trocou a que estava velha por uma novíssima, o seu brilho natural era intensificado pelos raios solares.


Quem sabe estivesse aborrecido por seu dono haver trocado. Era com a cenoura velha que estava acostumado. A contestação com a atitude arbitrária era andar devagar, cabeça baixa. O seu dono, ao final do dia, sentado ao degrau da escada de seu barraco, iria despertar-se para a razão de haver ele andado devagar desde as seis da manhã até às sete da noite.


Uma das duas alternativas explicaria a razão da troca: primeiro, correu tanto no “beco do moinho”, outra ladeira que deixa os transeuntes com o bofe na garganta, que o carroceiro fora jogado ao chão. Não quebrou alguma parte de seu corpo por milagre; segundo, fazia uns três dias que andava devagar, de cabeça baixa. Era a cenoura. Estava velha.


Intuição infeliz. Não era a cenoura. A velhice. È um asno de muitas primaveras. Já se encontrava cansado de suas andanças por toda a cidade levando e trazendo fretes. Estava cansado, necessitando de férias.


Curioso com a atitude do asno, veio-me à mente o melhor teria sido se o carroceiro houvesse tirado a espécie de varal que mandara colocar à frente do asno, com a cenoura dependurada. Assim, correria, quem sabe até mais. Nalgum lugar da cidade, iria encontrá-la, abocanhá-la, comê-la com maior prazer ainda.


A especulação fora infeliz. A ansiedade por compreender o que estaria acontecendo fez-me pensar besteira.


Saberia a razão. Mesmo que tivesse que correr atrás da carroça até alcançá-la. Perguntaria ao carroceiro o que estava acontecendo. O seu asno só é visto desembestado pelas ruas. Naquele dia, ao contrário. Qual seria a razão? Já era demais a situação, a preocupação com Lúcifer Pernóstico, o nome real do asno, embora com letras sábias, as que movem fáceis, construo algum acróstico que no momento não me é dado saber, por não estar escrevendo, esteja subindo a rua do hospital. Algo inconsciente, mas em se tratando de Lúcifer Pernóstico acabei de crer tudo ser possível, realmente me inspira e muito. É a oportunidade que tenho de mostrar o lugar que ele ocupa dignamente na história da humanidade, o patrimônio nosso de cada dia que ele representa.


Ora, se desejava tanto saber tinha de adquirir fôlego e correr atrás da carroça. Impossível. Se andando devagar, ao final, só não coloco a língua para fora por precaução de comentários jocosos. “Nem Lúcifer Pernóstico a põe”. Colocar-me-iam no lugar do asno. No sentido de realizar a língua alheia, teria de arrumar uma carroça para puxar por todo o dia, levar e trazer fretes. Paro. Recupero a respiração. Sigo em frente. Às vezes, passando no barzinho de um grande amigo, um poeta, com quem tenho prazer de alguns dedos de prosa.


Assim, diante de tanta curiosidade, só me restaria uma alternativa. Perguntaria a algum transeunte que subia a rua junto comigo o que estava acontecendo com o asno. Temi a resposta. Poderia responder: “Por que você não pergunta para ele?” Resposta malcriada, mas, em verdade, inteligente: quem melhor sabe de seu estado de espírito é quem o vive na alma.


Quem sabe o melhor seria perguntar ao carroceiro. Sabia. Para isto, teria de correr atrás da carroça. Não era possível. O hábito do fumo está acabando com o meu fôlego. Isto é uma justificativa: em verdade, tinha medo dos comentários dos transeuntes. O asno não corre mais, agora é ele quem corre atrás dele. Poderiam até encontrar uma solução para o problema: seria aconselhar o carroceiro a trocar o asno por mim.


Uma lembrança me surgiu, quase na metade da rua: o que as pessoas dizem, quando alguém age de modo arbitrário, mostrando bem a ausência de inteligência, a falta de estratégias para realizar os seus desejos mais íntimos e ocultos. Dizem: “Aquele ali só falta as penas para burro”. A fala contrária surge: “Mas burro não tem pena”. Conclui o outro quem disse: “Então, não falta nada”.


Inclusive, não havia percebido algo diferente na carroça, devido ao fato de me haver centrado no andar lento do asno. O carroceiro a havia pintado de vermelho. Seria uma explicação. O cheiro forte de tinta fresca incomodava Lúcifer Pernóstico. Movido pela intensa curiosidade, não encontrei qualquer outra alternativa senão a de perguntar algum transeunte. Olhei para todos que subiam, observando a fisionomia, os traços.


Desejava perguntar a alguém que me inspirasse confiança, fosse educado, não me desse resposta malcriada. Uma moça de cabelos curtos, corte que muitos chamam de “Joãozinho” por quase ser possível ver o couro da cabeça. Trajava uma blusa “amarelo-cheguei”, decotada, calça preta, olhos azuis. Pareceu-me alguém muito educada, gentil. Aproximei-me, perguntando se poderia me dar uma informação. Sorriu, dizendo que sim. O que desejaria saber?


- Você conhece aquela carroça?


- Sim. Esta carroça é famosa aqui na cidade. Quem não a conhece?


- Por que será que o asno está andando tão devagar? O costume dele é andar desembestado.
- Moço, aquele ali só falta a pena? - Para ser burro!...


Mas ele já o é.


- Não. Com a pena, escreveria a nossa História com tanta dignidade e sinceridade que faria o queixo de muitos cair. Nada de interesses e ideologias chinfrins.


Dei uma gargalhada daquelas. Uma resposta muitíssimo espirituosa.


#riodejaneiro#, 17 de junho de 2019#

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