#AFORISMO 494/FRIO NOS PÉS E A MORTE NA ALMA# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO


Sinto cada vez mais frio nos pés e a morte na alma. É o desvio que o pudor da verdade obriga a fazer à inteligência, e o pudor da amizade, ao coração. É o desvio que salvaguarda a justiça, colocando a verdade do lado daqueles que se interrogam. A verdade que nós, os homens, mais interrogamos é o nosso sentido neste mundo, para que, enfim, estamos vivendo, nem é preciso esta interrogação, há outras verdades muito mais importantes, o por quê de amarmos tanto que nos falta a palavra, e temos sempre de mentir isto, envelar de qualquer modo, ocultar, para brincar às ocultas. E não há dúvida de que o pagamos bem caro.


Só ao crescer entrei na classe ordinária; ao nascer, saí dela. Hão de rir-se quem me estiver ouvindo pensar isso, por me apresentar modestamente como um prodígio. Seja, mas depois de rirem bastante, que encontrem um menino que aos oito anos de idade os romances prendam, interessem, transportem a ponto de o fazerem chorar ardentes lágrimas. Então considerarei ridícula minha vaidade, e concordarei em que não tenho razão.


A fé dogmática é um produto da educação. Além desse princípio comum que me prendia ao culto dos meus pais, eu tinha a aversão ao catolicismo peculiar à nossa cidade que no-lo fazia considerar como uma horrenda idolatria, e onde nos pintavam o clero com as mais negras cores. Esse sentimento casava – e tão bem comigo que nunca entrevia o interior duma igreja, ou encontrava um padre de sobrepeliz, ou ouvia as campainhas duma procissão sem ter um estremecimento de susto ou de terror; é verdade que essa impressão era singularmente contrastada pelos agrados que os padres dos arredores de Lágrima dos Insanos proporcionam de bom grado aos meninos da cidade.
A humanidade teve sempre tendência no seu conjunto para organizar-se.


(**RIO DE JANEIRO**, 24 DE DEZEMBRO DE 2017)


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