#A COMPAIXÃO E A EIDÉTICA D´O EU LIVRE# - GRAÇA FONTIS: FOTO DE CAPA/Manoel Ferreira Neto: ENSAIO


Convite inusitado, e de imediato sendo o primeiro verso do poema "LIBERTEMOS", em O EU POÉTICO, de Ana Júlia Machado: "Soltemos o intelecto". A imagem que se patenteia no tangente ao verbo "Soltar" é legar a liberdade. Curarmos as chagas, os sofrimentos.


O budista teme o sofrimento. O sofrimento, que corresponde ao desejo insatisfeito, a obstáculos enfrentados etc., permeia, assim, toda a existência senciente. Ademais, quando um desejo acaba sendo satisfeito, a natureza metafísica do mundo - a falta de base da Vontade - certifica-se de fazer com que outro desejo ocupe seu lugar, causando assim, mais sofrimento, ad infinitum. Se por acaso todos os desejos da pessoa são satisfeitos (o que só pode ser um estado de coisas temporário), então o tédio e a inquietude entram em cena. Esse temor se estende para ele da preocupação pessoal, tornando-se também a recusa em con-sentir, aceitar o sofrimento alheio. De modo evidente, como o sofrimento faz parte da essência da vida, a ponto de o "temor ao sofrimento" equivaler, na verdade, ao "temor à vida", o cultivo budista da compaixão é, de fato, apenas uma extensão de sua negação, subjacente à vida.


Noutro ensaio, elucidamos a enorme contribuição do intelecto ao "Eu Livre", "Estampar o devir com o caráter do ser - essa é a vontade do intelecto, e essa vontade se faz presente, a-presenta-se, pres-ent-ifica-se, quando "... o intelecto contempla o planeta/em toda a sua excelência.", a questão do intelecto é a con-templação do planeta, da existência e contingências. E neste poema, noutra dimensão da sensibilidade e do tema, é a Liberdade, e, nesse sentido, outro verso, ouvimos voz sussurrando, murmurando ao lermos o verso "Não aguardem que a claridade raie." De quem é a voz ou qual é a sua metáfora? É do intelecto lembrando à liberdade a sua responsabilidade, o seu compromisso, raiar-se, e isto é patenteado com desejos, vontades, força, coragem, ousadia, muito trabalho, reflexões e meditações, ao mesmo tempo a voz se dirige aos homens, à humanidade: "Façam a compaixão ser!..."


A invitação da poetisa e escritora é soltar o intelecto, deixar-lhe livre para atingir a compaixão. Em primeira instância, apresentamos a compaixão à luz da filosofia budista, fundando-nos e fundamentando-nos o budista temer o sofrimento, a compaixão é extensão da negação do sofrimento. A compaixão a que se refere ela é a que permite olvidar e inocentar, a claridade do Eu Livre expandir-se, ampliar-se, o intelecto é o objeto para a liberdade, pedra angular para consciência da id-entidade.


A primeira pessoa do plural do imperativo do verbo "soltar", no verso, traz em seu eidos o "sentimento de compaixão", a poetisa invita a todos à liberdade, ao "eu livre". Soltar o intelecto é a via da liberdade. A liberdade do intelecto, que origina a compaixão, é um estímulo para a vida, com a vida representando qualquer crescimento, seja intelectual, estético ou físico. Ter a honestidade e a cor-agem - ação do coração - de aceitar este mundo de brutalidade, tristeza e contradição tal como é, mas ao mesmo tempo ter a força para não o condenar como injusto, ser a "alteração que vocês ambicionam/Que suceda. Atrevam-se sem ponderar." Atrever-se a reconhecer as diferenças de etnias, de raças, de filosofias, de continentes, morais, éticas, de personalidades, caráteres, as con-tingenciais de cada um. Atrever-se a ser livre. Atrever-se O Eu Livre: "O que passou não retornará." Sine qua non sublinhar que o Eu Livre não descarta a con-tingência, a ec-sistencialidade, o que passou é arquivado no âmago, "... quedará arquivado no âmago.", "reminiscências permanecerão". Não se esquecendo de que a claridade raia se ela é desejada e artificiada, e é na continuidade do tempo que o intelecto vai raiando, emitindo suas luzes, e o intelecto sabe e conhece a verdadeira face é o outro, uma de suas a-nunciações primeiras é a compaixão, conforme a poetisa Ana Júlia Machado, a eidética do Eu Livre.


Na Contrapa de "O EU LIVRE", a poetisa autoriza-nos isto de a compaixão ser-lhe a eidética: "O lar do eu livre/Acha-se onde o infinito é o mundo de cada um de nós", a casa do eu livre é a compaixão, a choupana do intelecto é a liberdade, a sua voz, o nirvana do intelecto é o raiar-se, criando-se, re-criando-se, inventando-se, re-inventando-se.


"As atitudes permanecerão/E evocarão incessantemente..."




(**RIO DE JANEIRO**, 24 DE DEZEMBRO DE 2017)


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