ÚLTIMO REFLEXO DE RADIÂNCIA GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA
Reconheço
sou impetuoso e de temperamento exaltado.
Minha
educação confusa deixou-me uns traços de cisma e desconfiança. Não posso
pretender que seja um desses homens consagrados que murmuram preces desde a
mais tenra infância, habituam-se desde cedo a retiros espirituais e docemente
repelem as moças que assediam nas feiras ou cafés.
Contudo,
como me seria possível descrever os estados de alma em que, às vezes, de súbito,
me encontro, ora quando caminho sozinho pelos becos e alamedas, ora quando
estou num quarto silencioso e escuro? São momentos de estranha apreensão e
intuição.
Difícil
presenciar a cena de estar andando em companhia de conhecidos ou amigos. Sou
visto sozinho por lá e acolá, de pressa; andar devagar irrita-me: não tenho
forças para subir as ruas ou a questão é não chegar ao lugar onde estou indo,
se é que estou me dirigindo a algum. Sendo esta última hipótese a verdadeira,
por que estar caminhando rápido? Nada sei responder.
Houve época
em terras outras, escravo de tristezas e frustrações, conversava sozinho,
virando esquinas, seguindo direto, prestando atenção se ninguém estava a
assistir aos longos colóquios comigo. Tinha medo de me tomarem como louco. O
que interessava aos homens se havia mais um louco, menos um na cidade? Nada.
Era a solidão que falava em mim, eram os sonhos fracassados que buscavam se
justificar diante da realidade. Não me lembra como isto terminou.
No quarto
sozinho, às vezes escuro, pois apaguei a luz, decidi perder-me inteiro na
escuridão, pensando nalgum tempo difícil, eivado de problemas e conflitos, o
coração atravancado de angústias, tristezas. Se olho para o presente em que
vejo os frutos colhidos de sementes que semeei, agradeço a Deus por esta
dádiva. Por vezes, ouvindo músicas, com a luz apagada, lembra-me amizades que
construí, os momentos que passamos juntos envolvidos em colóquios de prazer e
alegria. Por último, já com a luz acesa, confio ao branco da folha de papel os
sentimentos e sonhos que poeticamente me habitam, e sou agradecido ao mundo por
este dom. Pergunto-me: “Sem o dom, o que faria de mim na ausência de pessoas
amadas e queridas? Nos instantes de solidão, como me seria possível dar
continuidade ao quotidiano?” Respondo-me: “Deus sabe o que faz”, aliás uma das
frases mui queridas do mestre Dostoiévski.
A escuridão
virá mais tarde, tão próximo ao alvorecer que a aurora mal poderá brilhar
ligeiramente no firmamento alto e pálido. Estou sentado junto à janela aberta
da pequena sala de estudo. Minha atenção se desvia do caderno de exercícios
para a encantadora cena noturna com um sentimento profundo da efemeridade da
beleza.
Por que
motivo continuo ainda aqui, suportando isto de não estar conseguindo concatenar
as idéias, elaborar os pensamentos que me surgem com extrema dificuldade, essas
confusões e esses sentimentos embaraçosos? Não se trata de experiências,
sentimentos e atitudes de consciência. Não possuo o direito dos apátridas, dos
vagabundos, dos irresponsáveis, de afastar-me deste vazio e rir-me de tudo
isso.
Sim, esse
direito me é concedido e eu não passo de um louco em querer procurar
explicações e fundamentos para estados de alma que não estou sendo capaz de
vislumbrar, pagando um alto preço por nada.
Sinto-me
irritado por verificar que estou dizendo tais coisas – embora as diga não para
os outros, o que isto lhes importaria, qual o valor disto para os ouvidos e
interesses, mas exclusivamente para mim. Os ardentes sentimentos que
experimento se tornam coisa fria, quando transportados para o papel.
Jamais fui
homem de procurar alguém íntimo ou mesmo quem pudesse entender o que me passava
no íntimo, desabafando. Não disse de dores e sofrimentos nem tampouco de
alegrias e prazer. Nada disse. Não desabafo com ninguém. Não descrevo qualquer
felicidade que me habita por pouco tempo, não mais que dois dias consecutivos.
O contraste
entre o alvoroço de meu coração, este último reflexo de radiância, e este mundo
hibernal, calmo e oferente, deixa-me surpreendido: como, de que modo
enternecedor e piedoso as serras e os vales, a colina se abandonam ao sol, ao
vento, à neblina (hoje, pela manhã, não se via as serras, estavam cobertas de
neblina)?
Nas noites
frias, sinto-me contente e o coração exultante de sentimentos diversos, quando
me posto junto à janela, atrás da qual cintila uma luz, tudo que pode existir
de felicidade e de paz neste mundo sinto nas noites frias.
Devo
prosseguir dizendo, vez por outra confiando ao branco da folha, para fixar
nessas linhas o sentimento profundo de que sou criatura humana, sentimento que
me inspira, através das trevas, a profunda convicção de que, sob medidos,
imutáveis e fatais movimentos do Universo não me é possível emergir do nada nem
nele me abismo ao fim da existência terrena.
Deixo que o
coração extravase tudo quanto nele está represado. Se “eu” penso e sinto como
uma dessas criaturas “consagradas”, por que não me aventuro a dizer algo de
grande sabedoria e inteligência, banhando de ácido crítico as grandes massas de
indiferentes, de desdenhosos materialistas do mundo de hoje?
Tenho muito
a conhecer a respeito desta criatura que sou eu, consagrada ou não, estou-me
nas tintas para isso, cheia de um sentimento, honestidade, beleza de alma que
crepita no íntimo como uma chama. A voz se torna mais grave e mais cheia de
compreensão do que antes.
O amor sem
libertinagem é algo de novo que, arrancando-me de hábitos comuns, afaga-me ao
mesmo tempo o orgulho e a volúpia.
A exaltação
que o bom senso desdenha parece-me encantadora.
#RIODEJANEIRO#,
18 DE MAIO DE 2019#
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