DE ONDE A CURVA RE-CONSTITUI VENTOS GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA
Encontro da
vida, a vida de encontros, a vida de re-fazendas...
De tempos em
tempos, tenho de acreditar que sei por que existo. Se me é assim tão difícil
saber, sirvo-me do talento e dom gratuitos para desejar esta sabedoria, para
estabelecer um saber, para inventar um conhecimento, e sigo a longa estrada de
onde a curva re-constitui ventos, mesmo que me conscientize de que a sabedoria
desejada e sonhada não é ainda aquela que a minha espécie acredita não poder
germinar sem uma confiança periódica na vida. Os estabelecimentos e invenções,
assim acreditam os de minha espécie, não são ainda a fé na razão de viver.
Se a vida
não me reservara nenhuma felicidade, quanta vez assim o pensei, quanta vez
assim o senti, mas algo de mais profundo gritava e murmurava no intimo, dizendo
que se não me reservara a vida felicidade alguma, deveria, então, criar e
re-criar os incomensuráveis momentos dela, acreditando que são eles que criam a
felicidade, pelo menos assemelham-se muito à felicidade, sobretudo pela
intangível e etérea qualidade que desaparece a um exame mais minucioso.
Diziam-me as
muitas vozes que a gozasse enquanto pudesse, não fizesse perguntas, não
murmurasse palavras de não, mas contribuísse com o que fosse possível para me
sentir feliz.
Com aquele
aspecto infantil, melancólico, embora às vezes jovial e parcialmente
inteligente, aparecia pela fresta da cortina da janela, observando a monotonia
das ocorrências quotidianas com um interesse inconsequente e virando-me a cada
palpitação do meu coração para o quarto solitário de todo.
Da janela,
ouvia o silvo estridente da locomotiva e, se me inclinasse um pouco, veria de
relance os carros brilhando rapidamente no final da rua, esperando-a passar.
Minha emoção era sempre nova e parecia afetar-me tão desagradavelmente e com
tanta surpresa na milésima como na primeira vez. Nada revela tanta decadência
quanto esta perda de lidar com os homens, com as pessoas, e de acompanhar o
momento atual. Só podia ser uma animação transitória a passagem da locomotiva à
porta de minha residência, pois, se o poder desta afetação perecesse, de pouco
valeria a imortalidade.
Precisava do
silvo estridente da locomotiva, de um mergulho nos sons de ventos
reconstituídos pelas curvas por onde ela passava e seguia o seu itinerário,
onde ficasse imerso por algum tempo, para depois voltar à vida vigoroso,
reintegrado no mundo e dono de mim mesmo.
Reconhecia
no fato de ficar à janela de meu quarto, enquanto passava a locomotiva, a
proteção divina para comigo, pobre criança abandonada, que devia ser perdoada
por me considerar um deslocado, esquecido e deixado ao sabor de encarniçado
limite.
Há sempre
uma enorme confusão quando o espírito foge do momento presente, seja para o
passado, seja para o mais longínquo futuro, tornando-se o corpo guia de si
próprio. Confusão maior deveria ser a minha cujos deveres atuais estão
compreendidos em tão minuciosos detalhes. A vida e a realidade de minhas
emoções tornam todas as circunstâncias imateriais como fantasma de um cochilo
semiconsciente.
De qualquer
modo, acho a imensidade suficientemente grande e a eternidade suficientemente
longa para todos os homens, para toda a raça humana, para toda a humanidade.
Tento entabular um itinerário propício para as descobertas essenciais, impelido
pelo bondoso impulso de tornar as horas mais agradáveis que as anteriores e as
que ainda sobrevêm os sentimentos mais sublimes, por vezes angustiantes.
A presença
da vida – sonhei que sentira de todo a presença da vida em mim, tão forte e
refulgente esta presença que me olhei de cima a baixo procurando-me, não me
lembra se encontrei esta vida no que olhava em mim, o corpo – é tão agradável
como um brilho de sol caindo sobre o chão através da sombra de folhas
balouçantes, ou como o revérbero da luz da lareira, dançando na parede,
enquanto a tarde se transforma em noite.
Dia claro,
luminoso, de atmosfera santificada, em que o céu parece difundir-se sobre a
terra, num solene sorriso. Hoje, se fosse suficientemente puro, sentiria em
mim, em qualquer que estivesse, o culto natural da terra.
#riodejaneiro#,
27 de maio de 2019#
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