AO LONGO DOS TEMPOS E DO ETERNO GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA
Deliciosas
horas que soube viver na minha per-versidade, reduto polvilhado de nostalgia,
covil de insolências e irreverências! Escapadas dos riachos, salvas dos
devaneios esquecidos num canto, recebem a confidência daquilo que carrego de
mais ignorado, no fundo de mim -, penetrando na alma das coisas que fizeram a
beleza desta casa interior.
Sou em
caminhos sinuosos, declive contínuo. Águas não sobem montanhas ou serras,
pequenas subidas ou grandes que nelas temos de caminhar no quotidiano pela
cidade. Seguem o itinerário. Quem já não viu a longitude do olhar ao seguir as
águas de rio sem margem? Águas que se deslizam em alegrias, cristalizam-se em
realizações, saudades, sonhos que há no amor, entrega. Pode-se fugir delas sem
esperança de retorno, mas a curva amada tem os poderes das origens: é um apelo.
São olhos,
mas não vêem, porque estão na luz. É tudo, em mim e à volta, tão obscuro!... Há
muito pensava em esclarecer o que há de tão in-inteligível a olhos nus,
desejava enxergar através de meu "pincenez" - o estilo dos óculos de
Machado de Assis -, se não me engano quanto à grafia deste termo. E talvez, já
que a hora é propícia a con-fidências e con-fissões, me digne a res-ponder
isto: “Por que, no de-curso destes anos todos, não usei da inteligência para
dissipar as trevas, libertar-me espiritual e intelectualmente?” Oh, não é a
qualidade de alma que está em causa. A profundidade é in-alcançável, mas
fulgurante de segredos e gargalhadas, enigmas e risos.
O verdadeiro
conhecimento não se descreve; sente-se, e sente-se tanto melhor quanto menos se
pode descrever, porque não resulta dum conjunto de fatos, mas de estado
permanente.
As mãos
desenham nuvem, barco aberto ao céu por sobre as florestas, um nome que o
silêncio e paredes me destinam estranha casa que se mantém na voz e que o vento
habita. Sigo a vereda sob véu de chuva, a casa parece elevar-se por sobre a
gaze mais transparente, uma gaze tecida num alento que tinha expirado. Vocação
de felicidade, longe de ser nociva à vida prática, alimenta-lhe os atos.
O molusco é
emblema do ser humano completo, corpo e alma. Faço da concha o emblema do corpo
que encerra, num invólucro exterior, a alma que anima o ser por inteiro,
representado pelo organismo do molusco.
A
pedra-concha recebe as águas, deixando-as seguir o itinerário, mas um volume de
água permanece preenchendo o espaço dessa pedra-concha. É aqui o ser que é
doado, o deixar-me-ser ao longo dos tempos e do eterno, sou o viajante da
ressurreição que se defende e se protege.
A alma
exaltada tem sede de liberdade, espaço. Acima de minha cabeça, a abóbada
celeste estende-se até o infinito, as estrelas calmas cintilam. Do zênite ao
horizonte aparece, indistinta, a Via-Láctea. Noite serena envolve a terra.
Torres brancas e cúpulas douradas destacam-se sobre o céu de safira. Opulentas
flores de outono, em redor da casa, adormeceram até a manhã. A calma da terra
parece confundir-se com a dos céus, mistério terrestre confina com o das
estrelas.
Estou
dis-posto a sustentar com palavras e obras que a persuasão de que devo indagar
o que ignoro me tornará mais tenaz e menos indolente, do que a opinião de ser
im-possível des-cobrir a verdade e inútil procurá-la. Expresso-me sobre o
presente, como penso e sinto, ajo e relaciono – pudesse sentir algum desejo de
deixar de observar e con-templar essa relação com quem sou! Quem dera pudesse
deixar de ser uterino - alguém disse que quanto mais uterino for o homem mais
pode deitar a cabeça no peito da humanidade, com a responsabilidade de buscar a
revelação.
Há
felicidade, meiguice. Em tudo respiro de estarem na velhice ou na mocidade as
virtudes. Penso ser hostil caracteres exprimirem arranjos de estilo.
Continuo a
olhar a noite fixamente. Atrai-me. Convida-me a penetrar-me nela, em seu
mistério, sem vontades nem pensamentos. Se os sentimentos não são poucos, não
são estéreis, ao contrário. Gozar todas as paixões, paisagens, fora do
autoritarismo dos homens. Onde vamos esquecer a cúpula do edifício do
pensamento e sentimentos da humanidade? Livre.
Instante-Limite.
Impulso absurdo. De quê raízes não sei. Faz-me lançar o desejo donde a língua
esguicha em repuxo. Os ouvidos gritaram todos da minha lucidez.
Qualquer
sussurro de cochichos. Veredas alcançam tempos – verbo que traduz a máxima
concisão. Há idéias de eternidade, na exaustão álibi do amor. Corcovas expulsas
dos envelopes de memórias. Diante da sombra no chão e no ladrilho de ausência
soletrada.
O que no
silêncio de ser aproxima-se rastejando em semelhante noite? Que quer?
Persegue-me e segue-me – não estando dis-posto a ouvir as vozes muitas,
encontro-me perdido e sem localizar o lugar em que estou. Aproximou-se demais!
Ouve-me respirar, espreita o meu coração, ciumento e despeitado! Mas, de quem
tem ciúmes, despeitos? Deixe-me, afaste-me daí? Para que essa escada? Quer
penetrar no meu coração, penetrar os mais ocultos pensamentos e omissas idéias!
Atrevido! Desconhecido! Ladrão! Que pretende roubar? Que deseja ouvir? Ou terei
de me arrastar na sua presença como um cão, entregando-lhe o amor, acorrentado
e fora de mim?
#RIODEJANEIRO#,
21 DE MAIO DE 2019#
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