CÂNTICO DA ANUNCIAÇÃO GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA
Ainda é
inverno.
A tarde é
límpida e fina como um enorme diamante, abre-se pelo céu como uma flor de
vidrilhos. O ar frio, gélido, adstringente – interessante é que durante o
inverno, fizera um calor diferente, ao longo do dia, um calor que produzia um
aperto, uma compressão no peito, - os enormes espaços noturnos dispersam-se a
um cismar de recordações.
Passam
algumas bicicletas, homens debruçados sobre o guidão. Um grupo de jovens
solitários, melancólicos, sonolentos, passa carregando enxadas, depois duas
mulheres jovens, pedalando devagar, alheiadas, as bicicletas balançando
desajeitadas porque as moças estão com sono. Parece que as pessoas, como as
ruas, se tornam transparentes e fluidas, pois junto a elas, atrás delas, entre
elas pairam os mortos.
Por detrás
de casas em ruínas, erguem-se os contornos e formas da cidade que será ainda
reconstruída de por trás de alguns homens dinâmicos e empreendedores, há sempre
a sombra de relações arbitrárias e gratuitas.
A brancura
das nuvens se confunde com a brancura do silêncio. Choro de alegria, prometi-me
não o fazer estivesse triste ou desconsolado, desesperançado ou deprimido. Os
sinos bradam para o vazio do mundo. Espero que me retornem ao ventre, acocorado
em miséria sobre o lume que se extingue.
Cântico dos
anjos da anunciação!...
Cântico dos
anjos das trevas e do desastre!...
Numa espécie
de calendário interior, os acontecimentos vão marcando, pela incerteza,
ambigüidade seqüencial, ao longo do tempo a memória, tanto pode haver ocorrido
antes ou depois.
Oh, míseros
compassos e traços de um instante sem fim e início, filhos do acaso e da
preguiça, da bebedeira e insanidade, porque me obrigam a dizer o que não seria
nem um pouco conveniente - se houver conveniência é o aprender a tocar qualquer
instrumento, amar apaixonadamente estes ritmos de qualidade e belo estilo -
dizer o que não seria, em suma, bom ouvirem?
O melhor
para um indivíduo, quem sente o ar calmo e temperado, brisa suave, sombras
frescas, o aroma da relva, brilho suave do céu sem estrelas e sem lua, patear
compassado e o resfolegar dos cavalos – todos os encantos da estrada, da
primavera e da noite penetra-lhe na alma, - é não ter nascido, não ser, ser
nada.
Águas correm
ruelas, avenidas, estradas, caminhos do campo, em direção às nostalgias e
lembranças de tempos que re-nascem, re-novam em cada movimento de lábios que
buscam palavras a expressarem ao sabor de esperanças os desejos íntimos de
corações selvagens, rebeldes e solitários, de mentes humildes e sinceras, de
caracteres pernósticos e dissimulados, de personalidades chinfrins e simuladas.
Conheço
sobremodo o meu destino. Tenho a impressão de que uma extraordinária e doce
melodia se prepara para visitar-me: já arde e se agita, já sinto o langor e o
deleite de sua aproximação, mas não a aguardo até ao fim. Um dia meu nome vai
se suspender nalguma parede, apresentando a sua sagrada face, por um profundo
choque de consciência, uma decisão contra tudo o que fora dito, impresso,
publicado, contra tudo que foi acreditado, santificado, divinizado. Pensar que
sou aparentado com o canalha do tabernáculo de imbecis é uma blasfêmia e
perjúrio contra a minha santidade.
Às vezes,
tenho a voluptuosidade de rasgar os verbos todos, dizendo que não sei ao certo
se o inconsciente não acabara mastigando e engolindo aquele que se entrega ao
escrutínio de hipocrisias, a entrega simplesmente será sublime, e não sei
também ao certo se quem se entregou a ele será suficientemente intuitivo e
perceptivo para sustentar seus pontos de vista e opiniões verdadeiros diante de
uma existência e mundo o mais estranho e esquisito possível.
Em direção
ao infinito, águas re-colhem de nossas vidas o húmus de recordações simples que
preencheram os vazios esplendorosos do olhar ensimesmado e triste por cima dos
acontecimentos inenarráveis, indescritíveis.
Rumo ao
eterno, águas acolhem de nossos prazeres a alegria de instantes, a paz de
entregas e mortes, desejando a felicidade que afagamos no íntimo. Resta olhar o
acinzentado do dia de chuva, a certeza, quem sabe, de erguer uma taça ao som de
silêncios e vozes que percorrem o espírito, desejando o paladar da alegria e
realização.
A vida, aos
sons de imagens dispersas e sinuosas, mostra sua fragilidade, sua investida em
deixar não só recordações mas o orgulho de sua verdade. O difícil mesmo é
aceitar e admitir a eternidade é esperança, amor, confiança. O amor transcende
a tudo e, diante de seu poder, projeta sentimentos.
Caminhando
em silêncio, revolvo um sentimento que se me apresenta. Encolho os ombros,
cerro os olhos, como um homem que aprendeu a custa de duras, duras penas, a
linguagem da renúncia. Toda a sorte de idéias de amor, de devoção absoluta, de
sacrifício, invade-me deliciosamente – enquanto os olhos se esquecem, se
perdem, enlevados na reliosa solenidade deste princípio de noite. Com uma voz dolente,
sob a frente fria deste início de setembro, permaneço deserto e desconsolado. O
olhar alegre com que sou envolvido, resultado do amor pelo inverno, irrita-me
mais, sentindo no seu brilho ameno, no sorrir suave, quando está em mim.
Não é
absoluto preciso, nem mesmo imaginável e desejável, tomar partido de meus
interesses e achaques: ao contrário, uma dose de curiosidade e bestialidade,
hostilidade e irreverência, como diante de um oponente frágil e taciturno, com
uma resistência irônica de não assinar ou endossar a nota promissória que me
apresenta, me pareceria um comportamento e postura incomparavelmente mais sutil
e inteligente em relação a mim.
Atrás da
esperança não há senão a esperança. No silêncio absoluto, as palavras de
outrora estremecem de insanidade, o silêncio estala a minha boca como uma
pedra, estala-me os ossos. Toda essa água que anuncia Deus é isso mesmo – um
anúncio, do que jamais foi, na pálida auréola do ar, das casas silenciosas, da
copa das árvores ao longe, raiadas de pingos de chuva, aquando o silêncio é tão
profundo que me ouço ser. Há um instante em todo esse sentimento em que devem
estar todas as coisas nascendo – há um momento não sei quando.
De novo me
assalta a presença obcecante de mim próprio, esta enorme presença, esta coisa,
isto que mora comigo, que é absurdamente vivo, independente, que desaparece,
que retorna, num jogo de reflexos em que me vejo, perscruto-me, sinto-me
“eu”... Escuto por trás das palavras o chiste, o achaque, a ilusão, o espírito
galhofeiro da demência dando risadas a plenos pulmões.
Se não se
está nestes estabelecimentos, em outros, mesmo que a três ou quatro passos,
quase não se ouve os clientes, não se sabe de que tratam, há certo conforto e
prazer em neles estar a gastar o tempo com arbitrariedade. Sendo em cidade do
interior, todos sabem quem esteve no lugar a tal hora assim e assim, com
alguém, sozinho, olhando as horas passarem. Se em capitais, ninguém conhece
ninguém, cada um vive a sua vida diante destes ou daqueles problemas e dramas,
dificuldades e misérias pessoais.
#RIODEJANEIRO#,
20 DE MAIO DE 2018#
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