ALGUM VERNIZ DE CELEBRIDADE GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA
É, sem
dúvida, desde este início de perceber que se deve estar mui atento para as
devidas compreensões dos desejos e interesses os mais espúrios, melhor que haja
menos sentimento nestas falas e colóquios – que tivesse navegado mais junto às
pedras das serras e montanhas, ao invés de lançar às palavras de moral, de
conduta ilibada, da imaginação e da intuição. Mas, enfim, e disto posso
afiançar não apenas com palavras, as mais mesquinhas e medíocres já criadas,
mas com a vida inteira, é uma questão de estilo e de forma. Creio na harmonia
entre os desejos e as relações, inclusive até dizendo que superei as próprias
expectativas.
Devia ter
percebido interiormente para que porto o coração selvagem e rebelde se dirigia,
e sendo selvagem e rebelde é que todos os sentimentos mais puros se revelariam,
apesar de a sombra ombrear os passos, mas de que me valeria a selvajaria, a
rebeldia, não fosse a presença da sombra a ombrear-me os passos, mas não sei
justificar e elucidar os contrários e adversidades, quem sabe o caminho da
consciência, e é nisto em que acredito e creio.
Falo com
paixão, é verdade, e quem sabe esteja realizando algo que esperava com
veemência e ansiedade, apesar de ser tão formal, de ser tão pudico nalguns
valores e virtudes de homens célebres. Mas naturalmente sei a minha arte:
inclusive, impensável e ininteligível, seria supor e desejar que não a
soubesse, sem ela ser-me-ia impossível de todo estar falando neste estilo, às
vezes às avessas, vezes por outras às re-versas, com tanta finesse, portador de
um veneno sem precedentes, os encômios satisfazem a todos os sabores e
paladares, dependendo dos desejos de cada um, seus achaques e pitis, suas
mazelas, não me esqueço do outro lado da moeda. Os olhos são de lince.
De algum
outro modo, pareceria que me entrego por curiosidade, as dúvidas seriam
traidoras, talvez por costumes, seria enfadonha esta entrega, dúvidas
traidoras, certezas superficiais acerca das nuvens que cobrem os céus de toda a
humanidade, das experiências que edificam as realizações, embora os seus
revezes e antemãos. Uma paixão louca pode justificar as quimeras e fantasias
deléveis, mas não justificam o mais importante de tudo, e que muitos, aquando
não olham de soslaio e se afastam, olham de longe temerosos e indecisos, com a
hospitalidade do sorriso mesclado de dúvidas e mais dúvidas. As paixões loucas
podem justificar o erro, aquando este é por inteiro incontestável, os fatos e
acontecimentos não podem mentir, trapacear, aquando este não é dúvida do engano
e do fracasso.
Não me ando
a seduzir há muito. Além de outras coisas... não sou homem quem afasta as
experiências vividas em detrimento de uma única, isto movido por interesses
próprios e mesquinhos, de me sentir mais confortável neste mundo, diante do
mundo, no meio dos homens, das coisas, dos objetos. Além de outras coisas,
creio que a consciência que se me revelou da profundidade disto de não me andar
a seduzir há muito explica o passar todo o dia de ontem deprimido, e para
conseguir não me entregar ao completo torpor, pus-me a jogar paciência com um
velho baralho que encontrei nalguma de minhas gavetas na biblioteca de minha
alcova, um pequeno móvel em que guardo os apenas vinte e sete livros que tenho.
Seja então este o início de outros risos e ouros ao longo do caminho do campo
que decidi sim trilhar. Isto me parece melhor que uma paixão desinteressada e
sincera, em que, aliás, e de outro modo, poderia ser internado nalguma Casa
Verde, não acredito.
Não me
admira, isto é uma verdade incontestável, haver tanta sinceridade, o pleno
desejo de ouvir... Ah, sim, seria até ininteligível, não revelar o sonho que
tive esta noite, ficar-se-ia a criar hipóteses sobre hipóteses acerca de algo
que tenha gerado este conhecimento tão profundo, e que, em verdade, tenha
dúvidas atrozes e dolorosas da veracidade deste conhecimento por se encontrar
envolvido em cinismos, hipocrisias – não fosse um lugar-comum, de péssimo
gosto, dizer que em verdade uma selva de pedra, o lugar-comum está na citação
da novela da autora Janet Clair, Selva de Pedra, muito embora haja alguns
valores indiscutíveis nela.
Sonhara que
no interior de mim lia algo, as palavras, reconheci como se todas elas
constituíssem uma canção. Aliás, surpreendi-me, dizendo: “Há uma canção nestas
palavras. Há ritmo, há melodia, há arranjo”. Não me admira, pois, que ainda
desta lembrança de haver uma canção nas palavras que lia, difícil não perceber
e perscrutar uma perturbação em todos os sonhos, e que o primeiro clarão da
aurora, atravessando os vidros da janela da alcova, alumiasse o meu rosto, tão
grave e plácido anterior à depressão, a calma antes da tempestade.
Seria até
não assumir as palavras que digo a mim próprio, enquanto sentado à varanda de
minha casa, deitado a uma rede, fumando um cigarro, cofiando o bigode, um hábito
que adquiri. Não me admira que não tenha dúvidas acerca da veracidade, o que
escondem estas palavras às avessas, inclusive desde o início, aquando poderia
haver dito o comum “selvageria”, dizendo “selvajaria”, e compreendo que haja um
verniz de celebridade no seu uso, se não me esqueço de que a selva de pedra não
teria de todo um lugar-comum, pois se harmoniza bem com o meu caráter e
personalidade desde toda a eternidade.
Fecho os
olhos, cerro os ouvidos, e, se em todo o caso este verniz de celebridade que
acrescento sou importuno, devendo continuar a falar em voz quase inaudível com
absoluta atenção se alguém não vá perceber esteja conversando sozinho, amanhã
não haverá quem não saiba que converso sozinho, e todas as galhofas far-se-ão
públicas e notórias, não o deve à vontade, mas à situação, porque em tais
circunstâncias nem todo o engenho de Voltaire pode fazer um homem interessante.
Enfim,
jamais fui homem quem imaginariamente haja negligenciado isto: o homem trabalha
sem raciocinar, é o único modo de tornar a vida suportável.
Sou propenso
que toda esta fala se fundamenta neste lema que adotei em vida, desde a
mocidade, nesta idade em que os espíritos jovens são uma extraordinária vocação
para o seu tabernáculo, o de imbecis. Trabalho sem raciocinar. Por que me
arriscaria a uma vida insuportável, problemas de toda a ordem envolvidos com
dúvidas de toda a ordem, uma vida por demais esquisita e indecorosa? Não há
motivos para isto.
À parte
todos os senões, desde o de que é preciso coragem para ser feliz, e não sou
homem corajoso, aventureiro, e, aliás, muitas vezes até me pergunto acerca da
veracidade de minha selvageria, não seria apenas imaginação de minha parte;
desde o de fuga, uma conduta de má-fé, mais precisamente a falta de responsabilidade
com quem represento e sou neste mundo.
Entretanto,
pareço indiferente aos sentimentos que inspiro – não haveria modo de não sê-lo,
pois que as dúvidas todas que pairam sobre esta fala são traidoras. Se não
indiferente, não seriam dúvidas, mas distúrbio de personalidade, as palavras
dizem uma coisa, ele é bem diferente disto, delas, no caso. Deste modo, sendo
sim indiferente aos sentimentos que inspiro, obedeço a um lema não menos que a
disposição do espírito. Pois que conheço e sei a fundo a retórica da paixão,
não a emprego sem uma parcimônia, que me parece uma inteligência razoável.
Nada
dissimulo, não revelo os sentimentos ou desígnios, não hesito. Deixo
transparecer no rosto o que sinto no coração. Ah, sim, poder-se-ia dizer seja
um espírito compulsivo com estas palavras, e não negligencio esta dimensão, o
senão está justamente que me aproveitei dele com sapiência e sabedoria,
sublimei-o, um caminho de realizar os sonhos mais íntimos. Mas jogo com as
cartas na mesa sem previsão nem cálculo. Expansivo e discreto, entusiasta e
refletido, possuo estes contrastes aparentes, que não são mais do que as
harmonias do meu caráter.
Haveria quem
não pensasse, se estivesse ouvindo este monólogo, que uma consciência assim não
daria o seu troco, o seu retorno não seria uma depressão, um momento próprio de
pensar, de investigar, de fazer o inventário, saber o porto a que me destino
eu. Pela manhã de hoje, sábado de um final de semana prolongado, ontem fora o
dia da Proclamação da República, coloquei um short branco, uma camisa esporte
de seda espantada, chinela de dedos, sentindo muitíssimo bem, consciente de
minhas realizações. Os meus defeitos nascem de minhas qualidades. Sou crédulo à
força de ser confiante, ríspido com tudo o que me parece vil ou fútil. Tenho a
imaginação quimérica, às vezes – o coração adocicado, a inteligência austera,
mas compenso estes defeitos, se o são, por qualidades sedutoras e raras.
Os olhos
estranhos buscam esconder o segredo; muito embora, e afianço ainda que não
dissimulo coisa alguma, não sabia de que segredo se trata, se é que se trata de
algum, visto que nestas palavras de um monólogo, e mesmo em quaisquer outras, a
distância entre as palavras e os sentimentos são bem consideráveis. Acho-me
perfeito demais. Demais, que razão haveria para esconder tão misteriosamente
dos olhos dos outros, que razão haveria para não revelar, uma coisa que deveria
e não tardaria a ser pública? Pode ser que me engane, mas creio que há nesta
cabeça muita imaginação e imaginação criativa.
Olho,
digamo-lo assim, por baixo de minhas pálpebras.
#RIODEJANEIRO#,
20 DE MAIO DE 2019#
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