JUNHO DE IN-VERSOS E ESPERANÇAS GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA
Será morrer
retornar à vida de antes da vida? Será que à vida de antes ser é retornar à
morte?
Não vos
estou a implorar que me respondam, isto me faria a felicidade, prazer,
far-me-ia saltitar e dançar, com espontaneidade, baladas, polkas, fados.
Rogo-vos um único instante, e vida plena, em que vida e morte, tempo e
eternidade, ajustem-se. Rogo-vos amor, que, sendo desejo, é fome de comunhão.
Enquanto a
harmoniosa lira, a lira sagrada faz ressoar as sacras melodias que vão unir-se
aos meus solenes arrebatamentos, compraz-me rejeitar as leis humanas que,
in-versos e esperanças, sejam a alma delirante e o espírito insensato, sejam a
alma e o espírito em uníssono profanos, hereges, onde flautas e violinos,
tamborins e cavaquinhos enchem o ar de barulhos e marulhos, engolfando,
envelando o silêncio do sentido oculto que tem uma intensidade, a tensão fantástica,
esplendida, mágica do silêncio, quero os ventos do silêncio, similar aos pelos
de ovos, ventos não habitam silêncios, em ovos não há pelos, são lisos.
Feliz o
homem que procura longe dos homens as delícias da solidão e o verde das árvores
que ornamentam algumas ruas e praças da cidade. Chamo feliz ao homem cuja vida
é afagada, dia após dia, na sabedoria e inteligência.
A linguagem
altiva não convém aos débeis, o estilo austero, a alteridade das metáforas e
metafísicas não é aconselhável aos alucinados. Evito a prolixidade: não há quem
a suporte mais, até parece que impinjo todos a ouvi-la até não mais poderem. A
minha voz deve afetar a ousadia e o desplante deve ler-se no meu rosto: a
fronte modesta, os olhos tranqüilos. Prolixo com empáfia e certa dose de
sarcasmo: o que cumpre fazer, a obra em mãos, o prazer da criação, está
realizado, sendo-o, a cada obra começa a existência.
Prefiro,
para me salvar, de uma reflexão profunda e de um olhar penetrante que nenhuma
embriaguez possa turvar e mergulhe nos abismos, até negligenciando as súplicas
de junho, estas que logo se esvaecem na poeira nítida e nula dos dias, estas
que ditam a minha felicidade, a vida nova que se anuncia transparente aos olhos
sensíveis de outras paisagens e cenários. Não me parece que bem necessito de
uma idéia que me salve, que me eleve além desta atmosfera que se me revela a
todo tempo, quer na alcova, quer nas tabernas sombrias de alguns becos, idéia e
atmosfera que mudam de face em átimos de segundos e ecoam no sem-tempo.
Ergo os
olhos solícitos às estrelas que velam, lá em cima, e que protegem os infelizes
mortais que, dirigindo-se aos seus semelhantes, deles não obtêm a mínima graça
que aos olhos sensíveis desperta os corações.
O Criador
concedeu a todas as criaturas o sonho natural de Ser, o desejo de ouvir-se Ser,
na mais sublime harmonia de Ser que existe em sintonia com a natureza
particular de cada uma.
Há apenas
uma imagem sem jaça refletida no espelho, a verdade é a melhor medida de todas
as faces. É seguir novos caminhos, jeito novo de caminhar, encontrando novas
linguagens; à semelhança de todos os criadores, enfastiei-me das línguas
antigas, das palavras escaldadas.
Em direção
ao infinito, águas re-colhem de vida o húmus de recordações simples que preencheram
os vazios esplendorosos do olhar ensimesmado e triste por cima dos
acontecimentos inenarráveis, indescritíveis. Rumo ao eterno, águas acolhem dos
prazeres a alegria de instantes, a paz de entregas e mortes, desejando a
felicidade que afago no íntimo.
Resta-me
erguer uma taça ao som de silêncios e vozes que percorrem o espírito, desejando
o paladar da alegria. Música do fim, a alegria sutil desde o fundo do dia, o
abismo do século, desde o silêncio do nascimento, um silêncio longo, feito de
chuva de perto e ao longe, algazarra desvarida e varrida da solidão e do
crepúsculo da cidade esquecida em solidões, do cerco à volta do espaço para
além.
De onde me é
tão familiar converter imagens em verdades originais das coisas, com a
cristalina eternidade a envolver-me, e com a fria alegria, eterno riso divino,
sentir ao redor rumor de vozes e risos, a maresia do mar degustá-la no cheiro,
no perfume que exala, cheiro de mar, de compassos de dança, de resplendor de
todos os olhos acesos. A verdade singela, pura, inocente, no entanto, tem
sempre a aparência ambígua – um assobio, um murmúrio de águas vivas, ruído de
fonte ou de cascata.
A vida toda
está aqui, na linha inexistente da separação que une, do divórcio que des-liga
e des-algema a des-união. Um projeto de visão isola-se-me nítido na memória,
por isso desencadeio o combate, sereno e destemido, a dureza solar da verdade
nítida. Recupero a felicidade simples, fria de estar, alegria intensa e nula.
Daí, no
deserto inóspito de mim ter eu a glória de perder-me em pensamentos felizes por
as imagens haverem criado raízes. Quero viver, não sei viver, por isso, anônimo
e encantado, escrevo para me pertencer, o que soube o perdi, o que senti já o
foi, maldito e des-encantado, canto e uivo na colina dos efêmeros e volúveis a
balada, lavrando perquirições secretas e res-postas rituais, místicas, míticas,
causos de uma sabedoria, a própria palavra derradeira que não é nunca mais eu,
a pedra angular do mundo, da terra. Se não entrar no jogo das quimeras e da liberdade,
perderei a carruagem da jornada da própria vida, quero a volúpia da paisagem e
do panorama, do cenário assimilar na memória...
O coração de
um homem digno, de conduta ilibada, é uma tumba feliz onde cumpre a caminhada,
onde vai desenvolvendo os passos em direção ao longínquo sem-tempo, onde cumpre
o destino com êxtase e euforia.
Se de onde
sinto os in-versos e esperanças de junho, desato a observar todas as coisas que
me rodeiam, todas as nuanças e veredas, todas as vertentes e miragens, que,
felizmente, me pude furtar à coragem e esperança, de novo a vibração guarda um
sabor úmido a carne que não esquece, a humanidade que não finda, a compaixão
que não se esvaece, me não pude furtar à ousadia, nada e vazio são o não-lugar
onde tudo vai existir.
Há um
silêncio profundo. Calmo... tudo calmo... silêncio fundo como um abismo. É
noite, não custou muito a chegar como é da natureza das tardes de junho. Do
lado de lá da janela, nem mesmo os pequenos vagalumes enfeitam estas noites.
Nada de brilho. As forças da natureza: o vento parece não mais existir. Nem
chove. Poderia ouvir a chuva caindo no telhado.
O que fazer?
Esta é a pergunta de meu coração. Corrói-me a fome por dentro – quer a todo
custo sair para fora, habitar o mundo, onde se anunciou ainda pequena,
crescendo ao passar dos segundos e minutos, não lhe parece nada agradável
continuar. Às vezes, tenho de segurar o ímpeto de não pensar na emoção e na
expectativa quando deixar os dias passarem solenemente, a ousadia de não pensar
o pensamento que pensa pensando, des-algemando-me das coisas do mundo.
O silêncio
sucumbe à resistência heróica dos murmúrios, lamentos. Quem dera pudesse ora
responder a alguns questionamentos que foram sendo elaborados no espírito,
questionamentos percucientes, elencados na alma, investigados os sêmens e a
germinação ao longo das andanças! Quem dera pudesse responder a algum
discernimento entre o que antes estivera com tanto êxtase desejando expressar,
a felicidade que me habitava, e o que ora estou com tanta decepção dizendo, os
murmúrios, lamentos que me perpassam desde que não mais pude reter nas mãos
feita concha a volúpia da felicidade, enovelaram-se em inversos e esperanças.
Ser o
não-ser que sou, se for o caso, a angústia diante do absurdo. À medida que esta
se dissipa também o malefício desvela o segredo de uma fascinação diante do
sentido; fascinação relativa ao fato de uma natureza ser dada aparentemente,
isto é, ser um modelo de inteligibilidade, sabedoria, contra o qual virão bater
e dissolver-se todas as representações humanas de intenção e de finalidade, de
lento fogo em perpétua metamorfose, começo de vislumbrar coisas e cositas.
Efetivamente,
se é mentira ou verdade que a filosofia, literatura, tradição, o cânone sejam
inicialmente medicina, meio dentre outros de se curar a angústia, também é
verdade que a catarse possa ser concebida conforme duas grandes desordens de
interpretações ou intenções: acalmar devolvendo o sentido, ou acalmar
retirando-o completamente.
Viver só,
como se pudesse viver não o vivido, mas o não vivido, o não escrito. Viver só,
lembrando-me de que ainda não é hora de in-versos e esperanças, porque se os
registro para não serem lidos, sem me arriscar à morte derradeira, para
fazer-me na impossibilidade, uma vez que tudo é impossível, des-lembro-me,
olvido-me a começar da vida, das cositas dos tempos e dos ventos, a existência
começar a existir é quimera presente, é utopia preemente, a existência será
longeva pois que cada instante é...
#riodejaneiro#,
30 de maio de 2019#
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