ALMA QUE SOLETRA EQUILIBRIOS E VERBOS GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA
O mundo é
ignorante para tantas coisas. Que sabem os homens de nosso tempo da miragem que
é oásis de alegria, da alma que soletra equilíbrios e verbos, da vela do lado
de fora cujas chama e luz observam alguém dentro do seu quarto, alcova ou
escritório, do olhar da lua reclamando por uma canção, de Deus derramando sobre
o universo todo seu amor sobre os bons e sobre os maus?
Talvez algo
saibam, mas as vozes custam-lhes a surgir, as palavras mais ainda, ou talvez
não esteja com isto relacionado, mas simplesmente nada sabem, não sabendo, o
que poderão dizer. Para quem as palavras jorram na fonte originária do rio de
águas límpidas, saem de modo fácil, não lhes interessa nem um pouco isto que é
miragem que é oásis de alegria, da alma que soletra equilíbrios e verbos,
interessam-lhes unicamente rasgar as sedas e, de quando em vez, os verbos. Os
homens de nosso tempo não sabemos nada disso, o que isto quer dizer, se
interessam pelas suas conquistas, aquisições, seus bens materiais, econômicos,
e isto nem de longe lhes interessa.
Observo e
vejo as noites sem conversas na varanda; outrora, foram conversas eufóricas,
apaixonadas, em tom bem alto, e, às vezes, não respeitava a sua vez de replicar
ou somente de falar, ouvindo-se muitas vozes de imediato, sendo até impossível
distinguir a razão e os motivos de estarem tão apaixonadas estas conversas, o
que motivou esta toda paixão.Talvez fosse a hora de uma dança ao ritmo de uma
balada, mas não necessitavam disto, as palavras fluíam livres e espontâneas.
Agora, não existe uma única voz, um único sussurro, o som ínfimo da respiração
de alguém. Ninguém há na varanda.
Até a lua
nasceu por cima do telhado e a varanda não recebe a sua luz, permanece na
escuridão, embora a claridade da noite. Acaso existe aqui uma intenção de
sarcasmo, não o sei, não pensei nisto, mas num passo de mágica surge livre,
talvez por ouvir de longe uma música que ouvia, isto teria influenciado, não
era deste tempo das vozes de pessoas reais na varada, não olhava alguma
varanda, a varanda era de minha infância, em minha residência. Creio que seja
“Mother”, Pink Floyd. Tenha surgido o sarcasmo. Compreendo que nisto não haja
nem uma pouca sombra de sarcasmo, mas tive desejo de apresentar algo sem
qualquer sentido, a fim de mostrar que não pode haver qualquer sarcasmo em a
lua haver nascido por cima do telhado, nem sempre seria assim, nalgum tempo
iria incidir-se na varanda, iluminando-a de todo. É que me lembrei de quando
todos se despediram, a lua estava por cima do telhado, fora a última vez em que
todos estiveram reunidos, de vez em quando alguns apareciam, outros não, até
que ninguém mais apareceu.
O restinho
de café ficara no bule lá no fogão. Na medida em que a conversa ia continuando,
as euforias, os êxtases, as paixões, era necessário um gole de café para ainda
mais incentivar, estimular os espíritos para a conversa, para a demonstração de
seus sentimentos e paixões, para a anunciação de suas verdades, para a
revelação de seus espíritos. Resta um pouquinho apenas de café no bule, frio,
pois que o tempo passou, ninguém mais precisou tomar o café nos ínterins das
conversas, nem mesmo necessitou de jogar o resto fora, fazer outro, café frio é
simplesmente intragável. Ninguém mais voltou àquela casa para as conversas
eufóricas, extasiantes. Ninguém mais.
Escuto
canções, enchem o escritório, gotejam em ritmos e melodias de chuva, como se o
céu soubesse executar a lira das saudades e ausências. Há um nó górdio na
garganta, o coração parece sem alimento. Lembrou-me de minha preferência pelas
jabuticabas, pelas tardes, quase ao começo da noite, sentado à sombra da
jabuticabeira, encostado ao seu tronco, vendo o rio de águas límpidas, as águas
que são sempre outras no ponto em que os olhos estavam fixos... A delicadeza da
vida me fez partir num tempo em que as jabuticabas estavam prontas para a
colheita.
Quem haverá,
se é que alguém há, que ande pelo quintal dizendo que já não caminho mais nele,
não me sento à sombra da jabuticabeira, não ando sem rumo para cá e para lá,
mas nalgum lugar estou e, quem sabe, esteja bem e lembrando-me das tardes,
quase ao início da noite? Talvez não haja ninguém que o diga, há somente quem
se lembre, e este alguém sou eu próprio, e este quintal só existe na minha
imaginação.
Para o
equilíbrio são necessários zelos, esmeros, de minha parte. Tenho que purificar
o cálice de água, antes de a tomar, erguer o templo, antes de nele viver, e, ao
caminhar, descobrir que não venho para rastejar, muito embora o tenha feito,
mas isto no início, no êxtase das primeiras conquistas, das primeiras
percepções de todas as estradas, de todos os caminhos: é bem para além das
arribas que as “coisas” acontecem, que as coisas anunciam e revelam vida.
Ninguém mais
existe nesta residência, fora vendida, segui as estradas, felizmente que um
tempo é somente memória, o pior da memória é que o tempo a transforma em
imaginação, este tempo das conversas na varanda é apenas uma lembrancinha muito
íntima, muito deliciosa que me perpassa por inteiro.Se agora me lembro disto,
bem não o sei explicar, talvez seja a chuva que caíra pela madrugada, e eu,
enquanto fumava um cigarro sentado à mesa da cozinha, comecei a observá-la.
Ironia isto
de estar a me referir acerca de um tempo de minha vida, e, lendo, não se é
possível detectar o tempo, eis um segredo que não consigo de modo algum
desvendar, bem acredito que isto é um estilo de revelar a esperança. Nalgum
futuro, poderei perceber que não é mais apenas a esperança, de revelar a
esperança, a fé, a busca, o sonho, as realizações, os encontros...
Vejo surgirem
das montanhas, dos interiores, das colinas e vales, imagens de homens trazendo
em mãos boquetes de rosas para esse tempo.Conversam, como se já fossem íntimos,
como se já conhecessem desde a eternidade.
Interessante
isto: em primeira instância, não há mais as conversas apaixonadas,
altissonantes, na varanda. Nela, reina um silêncio profundo. Ao longe, surgindo
das montanhas, interiores, colinas e vales, os homens conversam, como se fossem
íntimos, como se já se conhecessem desde a eternidade. Trazem nos olhos a
esperança há tanto guardada. Trazem no peito a fé há tanto envelada. Trazem na
alma e no espírito a misericórdia e compaixão há tanto esquecidas. Conversam,
como se já se compreendessem e entendessem. Escuto os risos, que enchem a
tarde, quase início de noite.
O que será
que trago dentro de mim? Quais lembranças têm o poder de mexer no meu presente?
Será a lembrança de estar sentado à sombra da jabuticabeira, recostado ao
tronco? Será a recordação de na varanda as conversas terem sido altissonantes,
eufóricas, apaixonadas? Quais lembranças e recordações me levam para uma
janela, fazendo com que o olhar se perca em além montanhas?
Há épocas da
vida em que o passado fala alto, faz calar tudo ao redor, o peito pleno e
absoluto de passado, de tempos idos, de outroras de idéias e pensamentos. É
como se invernasse tempo adentro. A vontade é de caminhar à beira do rio de
águas límpidas, em direção à sua fonte originária, em tarde alta numa lua
nascente...
Se acredito
que existe uma outra vida a ser merecida além desta, não posso viver sem
buscá-la, sem desejá-la, sem ter vontade dela. Neste caso, em tudo que vivo,
devo levar em conta a busca, a reflexão, a contemplação.
Amando, as
angústias se retraem. Sinto-me bem, à vontade, o amor me tranqüiliza sem
perceber, sem falar nem fazer nada de especial, simplesmente estando no peito,
disponível. Com o amor descobri as contemplações serenas. Amizade mesclada com
desejo. Ternura mesclada com vontade dele .Não sinto necessidade de um retiro,
para enxergar mais claro dentro de mim próprio. Sei que o amor habita em meu
coração e graças a ele estou bem melhor.
Às vezes,
quando fico triste, basta-me pensar nisto que me habita, basta sentir as
sensações todas que me perpassam a alma, basta sentir os sonhos que fluem
livres e espontâneos, basta ouvir as muitas vozes, para sentir a tristeza
dissolver-se numa chuva simples e terna.
#riodejaneiro#,
24 de maio de 2019#
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