MÚSICA ÁS CINZAS E OSSOS GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA
Estive
jogado – ou deixei-me estar jogado? - na cadeira de sofá, tendo cotovelos
apoiados nos braços, cigarro, que acabara de acender, entre os dedos, os
primeiros indícios de cinza sendo apresentados na extremidade, após a brasa,
pensando dar continuidade noutro artigo à idéia do carroceiro de colocar varal,
com cenoura dependurada, à frente da carroça.
Em horas
soltas, fico a imaginar a razão de a cinza do cigarro não se apresentar antes
da brasa, e sim, após; creio que deveria ser antes, pois que é a brasa que vai
consumindo o fumo e não a cinza. Pensamento de quem não tem nada a fazer, gasta
horas com futilidades.
Fora idéia
genial a do carroceiro, e são idéias geniais que fazem nascer outras. Vivo à
procura delas: amassar barro não faz estilo, de enxada no ombro sair a capinar
quintal de casas de família muito menos faz parte de mim, habita-me. Sinto-me
alguém de asnice sem limites, e o pior é tomar o tempo dos leitores.
Faz longo
tempo não ligo o som, ouvindo músicas, enquanto escrevo, crio idéias, recrio
situações e circunstâncias. Antes de me deixar estar jogado na cadeira de sofá,
liguei o som, escolhendo música que aprecio.
Não creio
que tenha relação com a idéia genial do carroceiro de colocar varal à frente da
carroça com cenoura dependurada. O fato de ligar o som se relaciona com a
inspiração. Deixei a música tocar, joguei-me na cadeira de sofá, acendi o cigarro.
Olhei a
fumaça esvaecendo-se no ar, primeiros indícios de cinza sendo apresentados.
Perdi-me inteiro, olhando a fumaça, cinza. Desvencilhei-me do mundo e das
coisas, se é que seja possível assim me expressar. São necessárias situações
para haver possibilidade de escrever.
Tinha
escrito a respeito da atitude do carroceiro, a de colocar varal à frente da
carroça, cenoura dependurada. Não respondi se a atitude dele fora para que o
asno não mais empacasse em horas impróprias, quando precisava entregar frete
com urgência - fizera-lhe perder clientes. Se a intenção, ao invés de tornar o
asno eficiente, fora a de fazer com que os homens questionassem o fato de que
corremos rumo a nós mesmos, e somos, por tal razão, o ser que jamais pode ser
alcançado.
Retornar a
escrever seria bastante fastidioso, para alguém ler; alguém poderia dizer não
tinha outra coisa a ser escrita, estava sem inspiração, não tivera outra idéia.
Se era intenção de originalidade, já a tinha alcançado, outra escritura poderia
ser até pior. Deveria procurar outra idéia.
Ao retornar
ao mundo das coisas e dos objetos, tendo-me abstraído de tudo, percebi que o
cigarro estava quase no filtro, mínimo da cinza havia caído, era cigarro de
cinza. Como o cinzeiro se encontra ao lado da cadeira de sofá, fora-me
suficiente jogar a cinza, espremer o toco no cinzeiro. O título da escritura
estava em letras garrafais, esperando ser desenvolvido.
Percebi que
não havia suscitado, no artigo anterior, o asno ter estado com sérios problemas
de alimentação, não queria saber de comer. Tivera a intuição de comprar comida
especial em estabelecimentos de veterinária. Nada fazia com que comesse. Amava
o asno - tantos anos de trabalhos juntos. Dera-lhe possibilidade de
sobrevivência por mais simples que fosse, tivesse sido por estes longos anos.
Andava triste com o problema do asno não estar se alimentando.
Isto
acontece com os seres humanos. Trabalham, trabalham... Cansados, chegam a casa
e não têm fome de alimento nem a outra, a fome das intimidades. Estão
estafados. Deitam e dormem, não por sentirem sono; por estarem cansados,
estafados. Dirigem-se à farmácia e compram remédio para abrir apetite. Alguém
da família, preocupado com os íntimos, leva-lhes ao médico.
O asno
estava cansado de trabalhar. Desde as cinco horas da manhã até por volta das
sete da noite, trabalhando, trabalhando, puxando fretes pesados. Precisava
comer. Continuasse sem, morreria, e ele, o carroceiro, não encontraria outro
asno tão eficiente.
Tivera,
então, esta idéia original de colocar varal com cenoura dependurada à frente da
carroça para lhe despertar a vontade de comer. Vendo-a, sua fome seria
despertada. Faria esta experiência. Um modo de descobrir se a idéia surtia
efeito seria prestar atenção se o asno estava correndo mais que o normal, pois
que, sentindo fome, faria os possíveis e impossíveis para alcançar a cenoura.
Verificado isto, na hora do almoço, era só colocar a comida que comprara.
A questão
seria se não verificasse que o asno corria mais que o de costume, vendo a
cenoura à frente. O que estaria acontecendo com o asno? Talvez fosse o indício
de que os dias estavam contados, trabalhara muito, envelhecera. Estaria já
morrendo? Os homens dias antes de morreram sentem profundamente a presença da
morte. Não podia ser. O asno não podia morrer. Se ele morresse, não mais
carregaria fretes daqui para ali, de lá para acolá. Aposentaria a carroça.
Talvez encontrasse outro jeito de trabalhar, de garantir a sobrevivência.
Na infância,
fora engraxate. A caixa de engraxate estava no quarto de bugigangas. Estava
velho. Para garantir a sobrevivência, voltaria à infância.
Se o
problema do asno era de não estar comendo, a inspiração de colocar varal à
frente da carroça, com cenoura dependurada, fora a de despertar nele a fome,
não sei bem explicar, mas o fato é que a carroça continua correndo pelas ruas
da cidade.
#RIODEJANEIRO#,
18 DE MAIO DE 2019#
Comentários
Postar um comentário