DE MISTÉRIO E RESPLENDOR GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA
Essas
palavras me surpreendem, e pondero me não será possível...
Quem sabe
fosse dizer “não me será possível realizá-las”? Não posso afirmar o seja, pois
no pequeno movimento da cabeça, no sentido de apanhar o cigarro que se encontra
no cinzeiro, esvaeceu-se num passo muito mais do que de mágica o que havia
pensado. Resta-me o mais plausível, que é encarar o gesto de olhar no cinzeiro
a presença do cigarro como algo irrefletido, brusco, desses que me são mais que
comuns em se tratando de cigarro no cinzeiro.
Determino
que não irei por todo o tempo buscar a palavra que me surgiu de imediato à
pronúncia em silêncio, o esforço seria em vão, e não é isso o que estou a
intencionar fazer. Desde sempre ouvi que se esquecemos o que iríamos fazer,
falar, é só voltar atrás que a lembrança surge. Por vezes, acontece; por vezes,
não.
A essas
palavras todas, desde quando o termo me escapara, encontrando-me agora com o
cigarro entre os lábios, que se esforçam por contribuir com algum auxílio para
a lembrança, não se movem as outras que a antecedem, iniciando com possível,
até essas, a leitura da direita para a esquerda. Não insisto, receoso de se
esvaírem também, não havendo mais qualquer possibilidade de algo pensar.
Difícil isto de pensar sem as palavras, difícil também sentir sem as efusões do
coração e alma em uníssono – será que alguém pensa sem palavras?
Receoso de
que se esquivem ainda mais, as outras palavras que antecedem ao termo que se
esvaiu, ou, levado pelo constrangimento de haver deixado escapar, devido ao
movimento de olhar para o cinzeiro à busca do cigarro, continuo o fluxo das
palavras que me vão surgindo e, assim, podendo continuar a pensar, enquanto
deitado na rede na sacada de minha residência, nessa tarde de sábado, num
estiar da chuva que se prolongou por uma semana. Não está frio demais, é um
frio que deixa sensações amenas no corpo. Encontro-me sem cabeça, de shorts,
descalço.
Observando o
silêncio, e possivelmente compreendendo que não me seria possível avançar sem o
auxílio destas outras palavras, respiro de um modo um pouco mais forte do que
me é natural. Mais uma vez, e porque me coloco quase defronte a lâmpada que vem
da janela aberta da sala de visitas, imagino o silêncio ao longe, na área
esverdeada, são as plantações, capim e outras plantas, algumas medicinais,
assim o creio, ao longo das serras.
Não, não
posso dizer que compreenda, pois na verdade isto me parece o fruto de... Há um
eco, um estremecimento que me denuncia uma origem antiga e, quem sabe, real do
esquecimento das palavras em horas que mais necessito delas – mas como traduzir
exatamente este monólogo interior entre o que foi perdido e o que vai nascendo
a todo segundo, e que, menos do que um fato lógico, exprime um estado de
assentimento que me une às palavras que nascem, não pelo entendimento, mas por
um prazer que me perpassa as zonas opacas de meu conhecimento.
Há, é certo,
uma nuança de angústia, inexplicável, e, por vezes, chego a sentir certo
esforço de minha parte de não a deixar vir à tona – refiro-me à angústia. Certo
esforço em estar dirigindo essas palavras banais que servem às relações
humanas, como se retivesse a angústia para que consiga dirigir palavras aos
homens, enquanto estou pensando, deitado à rede na sacada de minha residência.
Em verdade,
surgiu a angústia antes ou depois de haver esquecido o termo para continuar o
período que se esboçava em minha mente? Não saberia responder. Quem sabe
tivesse de mergulhar em águas profundas para o encontro com a verdade, a
angústia haver surgido antes ou depois?
É noite. No
escuro, presto atenção ao ruído do relógio de parede da sala de visitas, desses
antigos que se ouve o movimento do pêndulo por toda a casa, como se marcasse os
momentos de uma ausência da lembrança, o que proporcionou à perspicaz palavra
esvaecer-se mais do que num passo de mágica.
Pensara que
não iria me determinar a lembrar o termo esquecido, continuo sendo capaz de nem
ao menos me preocupar com isto, faço disto a pedra angular de um pensamento sem
ter havido uma palavra antes que me desse o impulso para uma reflexão.
Lembrou-me ora de que, estando encostado à pia da cozinha, enquanto tomava uma
dose de café para fumar, pensara comigo: “nem sequer, de longe, posso imaginar
que poderiam ser outros os sentimentos que nos uniam ao abraço”. É que havia
algum tempo não nos encontrávamos na rua.
Que há de
falso nessas palavras, que existe em seu fervor que não consiga me comunicar
nenhum entusiasmo? Não importa que haja esquecido o termo, é até melhor que me
haja dele esquecido. Necessitava de uma âncora, de uma amarra em terra firme,
já que tudo me fugia diante dos olhos, hostil, enquanto olhava a serra ao
longe, desde a monotonia de uma cidade do interior num sábado ao iniciar da
noite, apesar dos esforços, até a lembrança de fatos antigos, do encontro com a
amiga, que pensara sufocar no fundo da consciência, e que a cada minuto,
poderosos, ressurgem em meu pensamento e até mesmo – por que não dizer? – em
minha carne.
Decerto, é a
minha casa, com essa sacada, colunas, quartos, banheiros, cozinha. Se algo
essencial fora subtraído dela – a alma, talvez – nem por isso se modificou sua
fria estrutura de tijolos e cimento. Às vezes, vago pelas salas vazias,
sentindo que o ar se torna irrespirável, e digo a mim que não importa que me
vejam, nem que pensem coisa alguma a meu respeito. Importa fugir, salvar-me, pois
tudo o que me cerca traduz silêncio, solidão, e tudo o que ainda subsiste em
mim de instintivo refugia-se na única coisa que não me deixa soçobrar: a
recordação.
Se é que se
pode acreditar, o que estivera a pensar, enquanto encostado à pia da cozinha,
tomando um gole de café para o cigarro, era a solidão, era o silêncio. Acredito
que, se não houvesse esquecido o termo, ainda não me recordo dele, não me teria
sido possível mergulhar neste estado de espírito de que fui tomado desde o
amanhecer.
Quem não
conhece a solidão não pode saber o que é esse esvaziamento do ser, essa
ausência, esse silêncio de palavras que não significa angústia, mas o sossego
de dimensões sensíveis e espirituais, e que apesar de tudo surgem nos primeiros
minutos da noite de sábado.
Sim, as
estrelas brilham – mas é como se o mundo não existisse mais para mim, e as
coisas que vejo e me cercam sejam apenas coisas aí, sem nenhuma realidade
positiva.
O silêncio é
tão grande que se ouvem as folhas tocadas pelo vento.
#riodejaneiro#,
26 de maio de 2019#
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