AS ESTRELAS VELAM O OSSUÁRIO DA TERRA GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA
"O
desejo de amor só vive de entrega, onde têm raízes a iluminação e a redenção,
cujos frutos são os sonhos que alimentamos e AFAGAMOS..."
“... porque
a sabedoria abriu a boca aos mudos, e tornou eloqüente a língua das crianças”
(Sabedoria,
10,21)
A face da
serra, voltada para mim, ilumina-se agora toda, branca e solene.Como um olhar
gravado de cansaço, as estrelas velam o ossuário da terra, o profundo silencia
o que me submerge. Calado, ouço o que me segreda a água – esta que cai a todo
instante lá fora, regando os jardins de rosas brancas, descendo as ruas
seguindo o seu destino, tudo se destina a algo, não tenho comigo nada que
contrarie esta verdade, deixando-as lavadas de todo o lixo que os transeuntes
deixam nelas, enquanto andam daqui para ali, com seus afazeres e obrigações,
[jardins de rosas brancas, vermelhas, amarelas, no tronco da mangabeira,
orquídeas lilases], neste segundo em que, de costa, sentado em minha cadeira de
balanço, busco escrever este momento.
Letras de
solidão e sombras.
Quem sabe
devesse eu tecer algumas considerações que penso e sinto serem primordiais no
sentido de tornar lúcido o que dentro trago em mim, o paradoxo, que, por vezes
não encontro modo algum de definir, as situações indecorosas e inconseqüentes
em que me envolvo, muitas vezes tendo de calar-me, nada dizendo, deixando-me
exposto a todos os ventos e sibilos deles de entre as serras e montanhas. Há
quando penso comigo que questiono a natureza da arte, expressá-la de modo
exemplar e único, num estilo muito particular e singular, tendo então de
carregar a tinta no que há de contraditório, sem senso, quem sabe assim
atingindo o efeito pretendido, o que requer submissão às constantes análises
sobre a própria produção. A idéia assume o papel de um motor que faz a arte.
Escrevo
absolutamente de memória, - procuro, principalmente, por emoções que provocam
não somente sentimentos puros, mas também os que buscam uma sensação nova,
intrigante, complexa, multifacetada, dilacerada, ambígua, e, ao mesmo tempo,
tênue -, sem documentos, sem material que me ajude a recordar. Há na minha vida
acontecimentos que me estão sobremodo presentes como se acabassem de acontecer;
mas há lacunas e vácuos que só posso preencher com o auxílio de histórias tão
estranhas quanto a lembrança que delas me ficou.
E, em me
referindo ao ambíguo, não posso deixar de registrar, ainda que penso não
devesse estar tecendo tais considerações, para que irão servir, pergunto-me,
angustiando-me, pois que não saberia responder por elas. O ambíguo se me
apresenta num campo aberto de sentidos, revelando ou sugerindo diversos
significados, às vezes até opostos, sem confirmá-los jamais, se o fizesse,
creio, perderia a sua originalidade pois que intencionam ser uma imagem do
mistério. Como o objeto ambíguo aponta aspectos e valores múltiplos,
perpetua-se o equívoco, que não se extingue, mesmo quando, por um instante,
penso que encontrei o sentido verdadeiro.
Na minha
opinião, a ociosidade não é um flagelo social menor do que a solidão. Nada
diminui tanto o espírito, nada engendra tantas ninharias perniciosas, intrigas,
aborrecimentos, mentiras do que viverem pessoas eternamente fechadas umas
defronte das outras numa sala, reduzidas, como único ofício, à necessidade de
tagarelar constantemente.
Sartre
afirma que a fenomenologia do ser humano, isto é, a descrição de como se
manifesta e de como funciona o ser humano, reside em revelar que ele não é um
ser em si, mas que se abre sempre para o outro, que se abre ao mundo, que se
abre à totalidade. Esta é a condição humana básica. Mas ele se recusa a aceitar
que esta abertura tenha um objeto.
Um colóquio
mantido desde há dias, cuja aparência ou cujo destino, sempre que a água me
confia uma boa nova, entreolhamo-nos ambos, assim, com pensamentos id-ênticos,
contentes de termos recebido a mesma resposta à mesma pergunta, e nem sabemos
em palavras dizer. Tenho de prosseguir trabalhando o fio tênue de água que
escorre na vidraça, tecendo sempre mais de teia na obra, esse fiozinho frágil,
único, todo dia, toda hora, perdendo e retomando o fluxo de sonhos, idéias,
lembranças, para adensá-la enfim numa suave melodia, em que, ao final, as horas
tristes e compridas são agora leves e prazerosas; os olhos não tiveram de
desaprender de chorar, se porventura choravam antes. O tempo desata de imediato
todas as saudades e ressurreições. Diminuir-se-ia a emoção, decerto se
anularia, se as idéias visassem a uma demonstração.
O mais não
digo para não dar a esta página um aspecto misterioso, místico, enigmático, mas
posso imaginar, na dobra do lençol sinto os dedos leves tocarem-me como tocava
o piano, tu tocavas “Canção Agalopada”, e te sentias volúvel e susceptível, tu
tocavas para ti e para mim. A alegria sutil e perspicaz desde o fundo da
madrugada, desde o silêncio que projeta as imagens até ao limiar de sua
evid-ência e também de sua contingência.Como um olhar gravado de cansaço, as
estrelas velam o ossuário da terra, o profundo silencia o que me submerge.
Deus tem
pleno sentido, Deus só tem sentido existencial se for resposta à busca radical
do ser humano por luz e por caminho a partir da experiência de escuridão e de
errância, de solidão e sombras. Ou simplesmente pela experiência iluminadora de
sentido que deriva da vida, da majestade do universo, da inocência dos olhos da
criança.
Deus olhou
suas criaturas e com divino e paternal cuidado constatou que a solidão não lhes
faria bem, não realizaria suas vidas. Olhou-as com um olhar preocupado,
sentimento de alguém que só quer o melhor para elas, pois na vontade divina não
cabe a solidão. Con-templo agora nós, geração marcada por estar assim, tão só.
Mergulho em alguns temas procurando respostas... Vejo a solidão com três faces:
a primeira, espiritual. Quanta gente só, diante do mistério, diante do
inefável, diante da Vida. Não escuta Deus, não fala com ele, não o encontra,
não o pensa, e ainda tem a petulância de ser ateu, o maior inconsciente é
aquele que negligencia a sua inconsciência. Falar de Deus os homens somos
capazes mesmo sem palavras, mas falar com Deus é necessário haver palavra que
possa Ele ouvir, e esta só poderá ser dita através do Amor e da Compaixão. Que
solidão terrível, esta: a criatura desencontrada do seu criador, semente sem
campo para germinar, alma que ainda não encontrou o caminho da própria casa.
Não sei
mesmo se vocês os leitores já passaram pela situação de ouvir alguém agradecer
ao outro por ele existir. Nossa!... É uma experiência sem limites. Às vezes,
digo à minha esposa: “Que bom que você existe, meu amor!...” E sinto bem fundo
a não presença da solidão em mim, da sombra em seus olhos a perguntar-me de
meus verdadeiros sentimentos por ela.
Estendo-me
ao longo do que dentro trago em mim. Amável faceirice substitui a ternura. Acho
que nunca me esforcei tanto por desejar e querer a vida, senti-la-sendo em mim,
ouvi-la, dizendo suas palavras de sabedoria e conhecimento; por agradar–me nem
nunca fiquei tão contente comigo mesmo. Posso ocultar-me na luz de um abat-jour
aceso e fazer de mim, de minhas próprias desgraças, infortúnios, infelicidades,
e alguns momentos de alegria, júbilo e glória, um modo de descobrir-me,
revelar-me, enfim, de ser-me. Posso expressar-me com empáfia e sabedoria, posso
oferecer a Éblis uma gota de lágrima por estar feliz e contente com o
conhecimento adquirido de quem sou, e pela indiferença da oferta o demônio
imundo não irá se insatisfazer.
Certa vez,
Camilo Castelo Branco disse: as almas infelizes envelhecem cedo. Esta é uma das
maiores verdades que conheço. Como é grande a força da tristeza, da desolação,
do medo! Como ela nos envelhece! Marca nossos olhos com sombras frias, encurva
nossos ombros, estica a corda da vida, anda-se nela como se a qualquer momento
pudesse se romper...O desejo de amor só vive de entrega, onde têm raízes a
iluminação e a redenção, cujos frutos são os sonhos que alimentamos e
AFAGAMOS,, e quem a outrem, que en-vela e re-vela, não poderá, Senhor, alguma
vez, desalgemar de mim as mãos rápidas de gestos, deixando-me-ser aos olhos e
ouvidos atentos e á minha nítida simplicidade de Alma?
#RIODEJANEIRO#,
20 DE MAIO DE 2019#
Comentários
Postar um comentário