SORUMAS ADORMECIDAS DE RANCORES GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA
As medidas
humanas, não se podem superestimá-las. Vejo em miniatura as coisas pequenas da
vida e continuo a ver em tamanho natural as grandes, por ingenuidade ou
respeito pelas convenções. Eis o incólume segredo, insofismável mistério,
in-audito enigma. Por que não vejo o tamanho natural das coisas? Solucionar a
questão torna-se difícil.
Não sei é
definir com categoria, se não é o inverso que se apresenta aos olhos, as coisas
grandes da vida em miniatura, e as pequenas em tamanho natural. Se não é o re-verso
que se pres-ent-ifica à língua e seus trajeitos e movimentos, as coisas
naturais tornam-se de tamanho incalculável. Pode ser que a reverência e a
miopia exerçam forte influência na visão, e para que sejam vistas realmente
haja necessidade de reverter os estados psíquicos.
Reverencioso
e míope (uma coisa devido à outra), arregalo os olhos diante da série de
colossos mais ou menos míticos que os homens erguem ao longo do caminho para
terem uma impressão melhor de si mesmos. Os vivos, sempre baixos demais sobre
suas pernas em liberdade, têm necessidade de crescer à sombra dos mortos. Em
contrapartida, minhas gesticulações de homem podem passar por interessantes
sobressaltos.
Resta-me
descobrir a miséria das lendas, esse entrelaçado de imponderáveis e de
improvisações, ambíguo tecido de banalidade em que a Fortuna recorta suas mais
belas formas, a Sorte arremata a barra dos Agouros. Eis a questão: por que me
interessaria descobrir essas misérias? Talvez o interesse não seja de
descobri-las, mas recortar as belas formas da Fortuna e, com engenhosidade,
traça-las com espírito sério, o mesmo que contribui para as grandes
transformações, mudanças, o homem reconhecendo os seus valores mais profundos e
essenciais.
A vida
futura, quê enigma! E ninguém a isto pode responder! Não ouso pedir a quem quer
que seja que acredite em mim, mas asseguro, da maneira mais solene, que não é
por leviandade que falo agora, essa idéia da vida de além-túmulo me emociona
até o sofrimento, até o espanto e os rancores.
Não é preciso
ser livre para ter coragem? O Verbo-de Ser Livre é colocar a liberdade em
questão, não expô-la nas prateleiras de livrarias a esmo, ter cor-agem de
enfrentar a verdade. Não me ad-mira poucochito que seja que minha alma, após
sair do corpo, olhará o meu cadáver, e levarei comigo uma tristeza de não mais
habitar no mundo. Não desejava deixar o mundo, sabia inevitável. Eis a questão
da morte colocada sobre a mesa. Incomoda-me sobretudo isto. Mas será
inevitável.
Ouvira,
ainda na tenra infância, que haver nascido é aprender a morrer passo a passo, e
cada passo dado tem por finalidade e objetivo a construção de valores que
justifiquem e expliquem a minha presença no mundo. O modo de superar a morte é
construir a vida, e esta são valores, estes que despertam os outros para o
sentido da vida. Aprendi, então, a viver sob a sombra da morte, obcecado com os
valores.
Quem sabe
para compensar o que estavam a ensinar-me sobre a vida, a morte, esta ser uma
conseqüência natural da primeira, disseram-me que para ser homem de valor
indiscutível era necessário plantar uma árvore, escrever um livro, ter filho.
Assimilei a idéia. Fizera as três coisas com amor e seriedade, era a minha
salvação.
Ao longo da
vida, armazenei inúmeros rancores, ressentimentos, ódios por me haverem
recusado oportunidades que com esforço e muito trabalho proporcionar-me-iam o
sentido da vida. E o temor de morrer sem nada haver construído, sem mostrar as
idéias que nortearam a minha caminhada, as profundas preocupações com o destino
do homem, perseguira-me sem descanso algum. Pensava comigo, após a minha morte,
o que diriam os homens, conhecidos, amigos, inimigos, indiferentes: “Viver
tanto para nada. O que deixou ele? Coisa alguma? E tinha muitos dons que outros
teriam sabido que rumo dar a eles”.
Por anos a
fio... De repente – essa idéia não procede muito, pois nada acontece num passo
de mágica – algo modificara, reconhecera os dons, soubera dar-lhes vida e
sentido, mas permanecera a morte. Morrerei, sem dúvida. Às vezes, a morte não
me assusta, não me angustia, não me desespera: algo natural. “Para morrer,
suficiente estar vivo”, é o que penso. Noutros momentos, indigna-me isto de ter
de morrer.
Asseguro que
tudo isto provém a princípio do temor, inspirado pelos fenômenos grandiosos da
natureza, mas que nada existe. Grosso modo, não é absolutamente o temor ao
homem, aquilo cuja diminuição se poderia desejar: pois esse temor obriga os
fortes a serem fortes, ocasionalmente temíveis. O que é de temer, o que tem
efeito mais fatal que qualquer fatalidade, não é o grande temor, mas o grande
nojo ao homem: e também a grande compaixão pelo homem.
Nojo e
compaixão! Que paradoxo! Tenho nojo das atitudes de não, as invejas, despeitos,
arbitrariedades e gratuidades de toda espécie, interesses particulares e
imediatos... sobretudo dos intelectualóides de plantão, intelectuais na fase de
Residência... Ao mesmo tempo, a compaixão por não saberem muitas vezes que agem
deste ou daquele modo, são inconscientes, a sociedade lhes pervertera. Não têm
culpa, não são responsáveis.
Pois bem!
Penso eu, acreditei toda a minha vida; morrerei e não haverá nada e somente “a
relva brotará sobre o túmulo”, como se exprime um escritor. É horrível! Como
recuperar a fé?
Quem para
farejar possui não apenas o nariz, mas também os olhos e ouvidos, sente, em
quase toda parte aonde vai atualmente, algo semelhante a um ar de hospício, a
um ar de hospital, de um porão onde as coisas mofaram, o cheiro intragável.
É certo que
ousei, inovei, resisti, desafiei o destino mais que todos os outros homens
reunidos: eu, o grande experimentador de mim, o insatisfeito, insaciado, que
luta pelo domínio último com a natureza e os deuses.
O sol
progride para o horizonte. Poucas nuvens, flutuando no céu, recebem os
primeiros raios de luz e lançam o brilho dourado nas janelas de todas as casas
da rua. No chão do escritório, estende-se um tapete, primitivamente de rica
textura, mas agora surrado e desbotado pelo longo uso que lhe transformou a
aparência brilhante num tom indistinguível.
#riodejaneiro#,
31 de maio de 2019#
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