#AFORISMO 30/COMO É INSIDIOSA A NATUREZA PROFUNDA DA ALMA!# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO
Como
é insidiosa a natureza profunda da alma!
Só
agora chego a com-preendê-la por inteiro, só agora chego a con-templá-la em
suas nuanças de imagens e sentidos, por vezes obtusos, por vezes ridículos e
insossos. Até agora ninguém adivinhou de quem é que eu gosto; eu é o que
descobri. Não estou fazendo nenhuma piada, não tenho intenções jocosas com a
jocosidade da existência humana, apenas para justificá-la ou ironizá-la através
de termos e expressões indecentes e imorais, categorias e conceitos pernósticos
e safados.
Os
homens de ciência escrevem asneiras, afirmando que eu gosto disto ou daquilo.
Pois bem, gosto unicamente do Diabo. Se não, vejam sobre quem assesta o
binóculo, sentado num camarote de primeira fila. Pensam que é sobre um homem
casmurro, de correntes de ouro, ostentam uma bela cruz de ouro? Nada disso.
Olho é para o Diabo que fica atrás de mim ou se me esconde no casaco, nos
bolsos mais íntimos deles. Ainda agora o Diabo me fez um sinal com os dedos.
Vai ajuntar-se comigo, vai mesmo.
Tudo
isso é ambição e provém do fato de haver sob a úvula uma vesícula e, dentro
desta, um vermezinho do tamanho de uma ponta de alfinete.
Apanho
da pena.
O
homem, fora.
Fora
das muralhas do exílio.
Tumbas
a brasas eriçadas esgalgam ódios últimos, sorrindo fúnebres as derradeiras
lembranças. Covas a chamas esfoladas esganiçam vinganças. Goles tirados a tempo
curto removem possibilidades cuja força é ser efêmera. Sepultura íngreme cobre
de nada as hipocrisias primeiras, ironias retiradas a esmo, cinismos
re-postulados, a falsa modéstia é nonada absurda a copos emborcados. Sete
palmos as cinzas esfalpadas abrem letras que esmiúçam tentáculos. Medusa tece
pedras cruas cujo olhar fundamenta o barro nu de nossas ansiedades. Esfinge
elenca mortos vítimas de sua charada das andanças ec-sistenciais.
Compreendo
a estranheza. O exílio não existirá sem o corpo. No entanto, constitui um
impasse. Impasse para o infinito. Viver o imortal. Pensava que as muralhas
fossem a liberdade – nem mesmo o desejo de atingi-la, alcançá-la.
No
exílio, sou ser sem sentido. Fora, a ausência de sentido é o sentido da
ausência. É a mãe que está distante do filho, mesmo com ele no útero; longe
dele, embora o cordão umbilical não tinha sido extirpado. Está à distância
dele, após o cordão umbilical haver sido cortado.
Descobrir
a liberdade. Exteriorizá-la no mundo.
Caixões
esmorecem tintas que apagam a incólume memória de anos rasgando a seda presa no
fio oblíquo de fumaças. A cal cofia ambíguas vestes de linho, o medo de terras
recalca o andar cambaio. O ressentimento de tijolos pisa os pés descalços. A
amargura de cimento ressoa o silêncio.
O
mundo é o exílio. Pensava encontrar um lugar em que descansar os ossos. A
liberdade é para não estar fora do mundo. Livre, cadáver de uma perdiz ou de um
faisão abatido por caçador furtivo. Todas as possibilidades são no sentido de o
corpo estar estendido num fosso ou por trás de uma moita, os joelhos dobrados,
os cabelos sujos de terra.
A
existência procura inserir-se na morte para não se extinguir. A tristeza
resultante da depressão é muito mais que um tipo de emoção centralizada apenas
e exclusivamente na psique: afeta todo o corpo. Ela é sentida tão agudamente e
causa tanta dor quanto um apêndice supurado – talvez mais.
Maçanetas
driblam cinzas a erguerem caixões em memórias transmudadas a nada. Chave
ludibria corpo que some em gavetas a encravarem testemunhos inconscientes.
Trancas aglutinam ossos mutilados, nonada a ermos paladares do eterno. Buraco
destrinça carne tirada a lâmina afiada, caindo de mares a hipotenusa da
angústia, cateto da depressão. Frestas limpam nervos que escavoucam a cal
deitada em pás medíocres. Bebida esmorecida no copo mítico de todos os nadas e
mortes. Pés já reconhecem a espessura e longitude das sepulturas amontoadas em
calçadas e passeios.
Vida.
Reconheci nela natureza inalterável desde o primeiro toque, com que podia
afirmar, firmar pacto tão perigoso e tão seguro que se faz com um elemento:
pode-se confiar no fogo com a condição de saber que sua lei é morrer ou
queimar. Visões. Escolhas. Tudo constitui amadurecimento. Passar a ter sentido,
exótica perspectiva. Ter-me-ia rejeitado com horror, se houvesse percebido nos
seus olhos o brilho cuja ausência a faz morrer. As qualidades de frieza,
recusa, renúncia, fizeram-na amar-me. Mudança. Agora que me afasta, despe-se de
suas hesitações uma a uma, com a espontaneidade de um viajante transido que se
despoja ao sol, de suas roupas molhadas, e apresenta-se diante de mim nua como
mulher alguma jamais o fez. Estiolam vestígios sem deixar portas semi-fechadas.
Coisas não vistas antes são claras.
(**RIO
DE JANEIRO**, 11 DE JULHO DE 2017)
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