À LUZ DE IAWEH E CRISTO - ENSAIO DE EXPERIÊNCIA MÍSTICA N´AS PALAVRAS DE SARTRE. MANOEL FERREIRA NETO: ENSAIO
LITERATURA, FILOSOFIA E ENGAJAMENTO - PARTE II
O escritor faz as palavras, não as lê; a leitura
reclama atitude e posição de conhecimento completamente diferentes com relação
às palavras. Assim, o escritor não pode escrever para si mesmo. Ele necessita
de um leitor, para quem escreva. A literatura exige “o esforço do autor e do
leitor [...]. Não existe arte senão para e por outros” .
Concordamos com que ler e escrever são atos livres
à medida que esteja em causa referência à obra como efeito comum de ambos. Se
eles, num sentido mais amplo e absoluto, são livres e novos. Eis algo que tem
de ser fundamentado numa análise mais profunda. Da mesma forma, se é verdade
que a obra de arte requer duas liberdades colaterais interligadas para
simplesmente existir, não se segue que a liberdade seja o objeto de toda obra
escrita, ou de toda arte; nem tampouco se segue, pelo fato de a escrita exigir
um veículo e uma superfície, que o objeto do escrever seja a inscrição.
Desde o início, a obra de Sartre caracterizou-se
por esforço consciente para combinar, aderir, comungar filosofia e literatura a
fim de intensificar os poderes de persuasão, demonstração, práxis das idéias e
pensamentos. Não estando aderidas a serviço de transformações e mudanças
individuais, sociais e políticas, que sentido teriam? Nenhum.
Hoje em dia, penso que a filosofia é dramática pela
própria natureza. Foi-se a época de contemplação da imobilidade das substâncias
que são o que são, ou da revelação das leis subjacentes a uma sucessão de
fenômenos. A filosofia preocupa-se com o homem – que é ao mesmo tempo um agente
e um ator, que cria e representa seu drama enquanto vive as contradições de sua
situação, até que se fragmente sua individualidade, ou seus conflitos se
resolvam. Uma peça de teatro (seja ela épica, como as de Brecht, ou dramática)
é, atualmente, o veículo mais apropriado para mostrar o homem em ação – isto é,
o homem ponto final (negrito de Sartre). É com esse homem que a filosofia deve,
de sua perspectiva própria, preocupar-se. Eis por que o teatro é filosófico e a
filosofia, dramática .
Diante das exigências da classe verdadeiramente
oprimida, as liberdades defendidas pelo escritor aparecem como formais. Estas,
o proletariado já possui e vai percebendo que elas servem mais à mistificação
do que à emancipação. A questão de fundo, que a princípio nem o proletariado
nem o escritor podem perceber, refere-se à relação um tanto obscura que as
reivindicações materiais possuem com a exigência universal do fim da exploração
do homem pelo homem.
Para que houvesse convergência entre o apelo do
escritor à liberdade do outro e as reivindicações especificas da classe
oprimida, seria preciso que ambas as partes se desse conta de que a exigência
universal de realização da liberdade está, de forma diversa, implicada na
defesa da liberdade abstrata, por parte do escritor e na luta pela melhoria
material da existência por parte do proletariado. Essa homogeneidade só
aparecerá a partir de uma visão adequada da relação entre história concreta e
totalidade.
No período histórico que vai do levante de 1848 a
1914, o escritor vive concretamente a sua situação marginal, recusando a
ideologia passada e a ideologia presente. Como a defesa da literatura deixou de
coincidir com os interesses da burguesia, o escritor tem única bandeira, a
defesa da literatura pela literatura, a reivindicação de uma autonomia que
formalmente ela já possui.
A literatura, inteiramente absorvida pela
descoberta de sua autonomia, torna-se o seu próprio objeto .
Rompe seus antigos limites, experimenta novas
técnicas, avança: mas não tem como extrair suas normas estéticas da natureza de
um conteúdo que ela não consegue determinar. Caracteriza-se pela recusa da
transitividade e exaure-se na negatividade. Aparentemente o escritor rompeu com
o único público que poderia ter, a burguesia. Entretanto, embora já não escreva
para a burguesia, é ela que o lê. Essa contradição entre as instãncias
subjetiva e objetiva passa então a integrar a resposta à questão: para quem escrever?
O escritor assume subjetivamente que escreve para si e para o absoluto e de
fato objetivamente escreve para a burguesia: é ela que o sustenta e decide
quanto à sua glória ou ao seu ostracismo.
O abandono efetivo de uma classe só acontece se o
individuo for capaz de vivenciar internamente a pertinência a outra classe. O
escritor do século XVIII de algum modo havia conseguido essa vivência interna
da burguesia e da nobreza, mas o escritor do século XIX vive a sua
marginalidade fora desse espaço entre classes. Por este motivo é que ele
escreve como quem não tem para quem escrever. A solidão cultivada e ostensiva é
a estratégia de dissimulação subjetiva da sua condição contraditória, e a
eleição do absoluto como destinatário é a face objetiva dessa mesma
dissimulação.
A aristocracia do espírito deve ter os seus
direitos e, tal como no caso do nobre de nascença, eles são herdados
diretamente de Deus. A improdutividade, a relação perdulária com os bens, o
parasitismo, a gratuidade da vida, todas essas atitudes antiburguesas são
cultivadas pelo escritor sem que por isso ele se oponha efetivamente à
burguesia, reconhecendo-a como classe opressora.
Para Flaubert, o burguês é vil, mas os
revolucionários da Comuna são cães raivosos. Essa superioridade gratuita que o
escritor ostenta é para ele o sinal do heroísmo do gênio; para a burguesia
trata-se de algo engraçado e inofensivo. Dessa maneira, a burguesia apropria-se
até da gratuidade, que parecia ser o último refúgio da literatura autônoma. É
como se o instinto burguês de utilidade encontrasse até mesmo um modo de
utilizar a inutilidade da literatura. Isso acontece à medida que a obra inútil
serve ao repouso do espírito utilitarista.
O desencantamento do escritor do século XIX provém
do seu falso encantamento com a universalidade abstrata. A compreensão da
essência da literatura deveria levar a entender que é possível escrever para
todos os homens se a literatura puder atingir a totalidade histórica dos
homens, isto é, a universalidade concreta, socialmente configurada. Essa
situação só existiria na sociedade sem classes, portanto não se trata de
esperar da literatura existente que chegue a esse tipo de interação com a
totalidade. Trata-se de redefinir, numa sociedade de classes, qual é o público
com o qual a literatura se deveria comprometer historicamente no século XX.
A posição de Sartre seria mais adequadamente
descrita dizendo-se que não se pode abordar consistentemente o fato histórico
na sua relatividade senão assumindo uma postura resolutamente metafísica; e não
se consegue equacionar verdadeiramente os problemas metafísicos a não ser
incorporando-lhes a condição humana em sua totalidade.
Poderíamos dizer que o núcleo organizador dessa
confluência é a liberdade: o homem se define metafisicamente pela liberdade ao
mesmo tempo em que a exerce historicamente. De modo que tratar a liberdade na
história sem pressupô-la metafisicamente é renunciar a compreender-lhe o
sentido; e entender a liberdade metafisicamente sem considerá-la na história é
cultivar uma abstração. Sendo assim, a literatura, ofício e apelo humanos, não
se realizaria plenamente em sua humanidade se deixasse de compreender-se na sua
historicidade e em seu caráter metafísico, inseparavelmente. De fato, as
grandes questões que a literatrua deve responder se inscrevem numa tarefa:
Essa tarefa consite em criar uma literatura capaz
de reunir e reconciliar o absoluto metafísico e a relatividade do fato
histórico, e que designarei, à falta de outro nome, como literatura das grandes
circunstâncias.
(**RIO DE JANEIRO**, 26 DE JULHO DE 2017)
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