#ATEÍSMO, ABSOLUTIZAÇÃO E NIILISMO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ENSAIO
DEUS
ESTÁ MORTO - CAPÍTULO V............
Devemos
considerar também que Nietzsche diz que o Cristianismo veio ao encontro das
necessidades e do nível de inteligência das massas religiosas do Império que
acreditavam em Íris, Mitras e Dionísio, ao encontro da “grande mãe”, e ao
encontro de todos aqueles que reclamavam uma religião que lhes pudesse
alimentar esperanças numa vida futura, religião de sacrifício e mistério,
lendas sagradas e redenção, ascetismo e “purificações”, e de hierarquia.
Partindo
deste mesmo homem, deparamo-nos com a ilustre santa mentira, que é esta força
criadora de um Deus que escolhe os sacerdotes, delegando plenos poderes aqui na
terra. Esta força também conheceu um além da vida, uma vida eterna, tendo a
alma como algo imortal; a consciência do bem e do mal, atribuindo ao sacerdote
como sendo uma espécie de sacrário de Deus, onde Deus fala por meio dele; e,
por fim, a moral, como uma força transformadora e, ao mesmo tempo, manipuladora
da razão. Também temos, em última instância, as promessas de salvação e
felicidade consideradas como verdades estabelecidas.
Nietzsche
observa e chega à conclusão de que toda essa reforma moral tem um preço muito
caro para a humanidade. Na verdade, leva o homem ao desmoronamento de si, pois
não há mais aspiração ao progresso; o homem já é determinado, atingindo sua
mais drástica mutilação.
Com
esta crítica, pretende ir além e descobrir a origem desses valores para que
possa criticá-los em suas bases. Sendo assim, afirma a morte de Deus, aliás,
protagonizada pela própria sociedade que, aos poucos, foi se libertando das
garras daquele sobrenatural fruto de sua própria intenção.
Num
aforismo sobremodo conhecido, Nietzsche conta o estranho apólogo de um “louco”
que vai gritar no mercado, trazendo uma lanterna acesa em pleno meio-dia:
“Procuro Deus, procuro Deus”. Quem é este “louco” (toll) que repete o gesto bem
conhecido do filósofo cínico Diógenes, que procura “um homem”, também ele com
uma lanterna acesa? Com efeito, não é um “demente”, mas um extravagante (em
todos os sentidos do termo) como era Diógenes, ou ainda “tolo”, como se dizia
na Idade Média, um fraco de espírito, ou ainda a criança do conto de Andersen
que ousava dizer o que todo mundo via, que o rei estava nu. De que país e de
que tempo é este cínico? “Como estavam lá reunidos muitos daqueles que não
acreditavam em Deus, ele soltou uma gargalhada”. Talvez se trate dos
“libertinos”, dos livres-pensadores tão numerosos desde o século XVIII. Aliás,
ficamos sabendo no fim do aforismo que este extravagante vai até às igrejas
entoar um Réquiem aeternam deo. Não resta dúvida de que este novo Diógenes
poderia ser contemporâneo de Nietzsche.
Para
onde foi Deus? – grita ele. Já vou dizer-lhes! Nós o matamos – você e eu! Somos
todos assassinos! Mas como fizemos isto? Como chegamos a beber o oceano até a
última gota? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte inteiro? O que
fizemos desatando a cadeia que ligava esta terra a seu Sol? Para onde vai ela
agora? Para onde nos arrasta seu movimento? Longe de todos os sóis? Não somos
precipitados sem fim? Para trás, de lado, para frente, em todas as direções?
Existe ainda um em cima e um embaixo? Não somos errantes como num nada
infinito? Não sentimos o sopro do vazio? Não se tornou ele mais frio? Não faz
ele noite e sempre mais noite ainda? Não temos que acender lanternas já antes
do meio-dia? Não ouvimos ainda nada do barulho dos coveiros que erram a Deus?
Não sentimos nada ainda da decomposição divina? – os deuses também se
decompõem! Deus está morto! Deus continua morto! .
Para
Nietzsche, a sutileza do povo judeu é tomar partido pelos instintos de
decadência, não se deixando dominar por ele, mas utilizando-os como
instrumentos contra o mundo.
O que
o povo hebreu promove é a desnaturalização dos valores naturais. Seu Deus da
Justiça é um Deus sob condições: ele é um instrumento nas mãos do sacerdote,
que então interpreta toda fortuna como um prêmio, toda desventura como castigo
por uma desobediência a Deus. Agora, sua moral já não é mais expressão das
condições de vida e de crescimento de um povo, mas se torna contrária à vida.
Toda
fortuna como prêmio, toda desventura como castigo... Nessas condições, o que é
a moral judaica, o que é a moral cristã? É o acaso que perde a sua inocência; é
a desventura travestida pelo pecado; é o bem-estar considerado como perigo,
tentação; é o mal-estar fisiológico envenenado pelo remorso. Os sacedotes
judeus foram os artífices dessas invenções; eles transferiram o passado de seu
povo para o campo religioso, como incomparável desprezo pela realidade histórica.
Não há
interpretação teológica alguma da morte de Deus que seja possível, mesmo por
intermédio de uma dialética de tipo hegeliano. Este grito “Deus está morto” não
pode fazer pensar nos deuses da Antiguidade capazes de voltar à vida de
diversas maneiras, nem principalmente no Deus cristão que morre na cruz e ao
qual não poderíamos, sem grave blasfêmia, admitir por hipótese um odor de
decomposição.
Que
angústia e que confusão do pensamento provoca o desaparecimento de um Deus que
assegurava a ordem cósmica, que não era apenas o Deus dos sacerdotes, dos ritos
e das superstições, mas também o Deus dos filósofos que conferia um sentido ao
universo, à Terra e seu Sol, e às verdades eternas sua garantia divina.
Nietzsche
partilha aqui a opinião, já comum entre os “filósofos” do século XVIII, de que
as crenças religiosas persistem por muito tempo depois que os espíritos lúcidos
retiraram todo seu fundamento. Schopenhauer havia julgado inevitável esta
persistência, sem dúvida benéfica para a manutenção da paz social. Deveríamos
então entender a morte de Deus como uma constatação histórica em substituição
ao debate clássico sobre as provas da existência de Deus? Bastaria levar em
conta o desaparecimento progressivo da fé naquilo que foi a cristantade, o recuo
do poder da Igreja nos Estados europeus. Deus está morto porque o ateísmo
doravante não tem mais necessidade de argumentos.
A
questão da morte em Schopenhauer não é tão simples como o próprio Schopenhauer
a apresenta, muitas vezes com o intuito de substituir a consolação religiosa
pela consolação filosófica. Por um lado, o ser humano é o único ser vivo que se
espanta com a sua própria existência, um animal sem dúvida, mas um animal
metafísico. Por outro lado, a individualidade desempenha no ser humano um papel
determinante, análogo ao da espécie no animal, e sobre este último ponto a
doutrina de Schopenhauer permanece bastante incerta.
Com a
razão, o questionamento do homem sobre a existência de todas as coisas e sobre
a sua própria existência. Deste modo, a morte, por uma conexão necessária com a
razão, veio a ser a inspiradora da religião e da filosofia, com a dupla
possibilidade de cegueira e de lucidez que isto supõe. Com o conhecimento da
morte, esta certeza apavorante que nenhum animal conhece, desenvolve-se um
paradoxo, causa de muitas confusões.
Com
efeito, não é da razão ou do conhecimento que pode provir o tremor da morte. Muito
pelo contrário, uma tradição sapiencial mostra que, aos olhos do pensamento
racional, esse temor não tem fundamento. O apego à vida não é de per si nem
racional nem fruto de raciocínio: surge do mais profundo do nosso ser, animado
por um querer cego. Noutras palavras, é a parte imortal do nosso ser que faz a
morte temível; e é a parte mortal que, na verdade, não a teme.
Todas
as convicções da Filosofia das Luzes encontram-se radicalmente recusadas. Os
“sem deus” (Gottlose) não são menos crentes. Não há razão para dar lugar a uma
fé ao lado da racionalidade científica como a de uma “religião natural” que o
século XVIII havia tentado definir. Nenhum “deísmo” à maneira de Voltaire que,
em sua recusa de toda revelação, quase só retém em sua religião a existência de
um Deus criador e juiz, e duvidosamente a imortalidade da alma. Nenhum “teísmo”
à maneira de Rousseau que continua a declarar-se cristão, afirma seu respeito
pelo Evangelho quando concorda com a razão e a religião natural e gostaria de
“unir a tolerância do filósofo com a caridade do cristão” .
Mas o
anticristianismo de Nietzsche não admite nenhuma concessão, nenhuma
conciliação, nenhuma “racionalização” dos dogmas. É a filosofia cristã como um
todo, já denunciada por Schopenhauer, que é apenas fantasmagoria:
Nem a
moral nem a religião, no cristianismo, têm algum ponto de contato com a
realidade. Nada senão causas imaginárias (“Deus”, “alma”, “Eu”, “espírito”,
“livre-arbitrio” – ou também “cativo”); nada senão efeitos imaginários
(“pecado”, “salvação”, “graça”, “castigo”, “perdão dos pecados”). Um comércio
entre seres imaginários (“Deus, “espíritos”, “almas”); uma ciência natural
imaginária (antropocêntrica; total ausência do conceito de causas naturais),
uma psicologia imaginária (apenas mal-entendidos sobre si, interpretações de
sentimentos nas agradáveis ou desagradáveis – dos estados do nervus
sympathicus, por exemplo – com ajuda da linguagem de sinais da idiossincrasia
moral religiosa – “arrependimento”, “remorso”, “tentação do Demônio”, “presença
de Deus”); uma teleologia imaginária (“o reino de Deus”, “o Juízo Final”, “ a
vida eterna”). – Esse mundo de pura ficção diferencia-se do mundo sonhado, com
enorme desvantagem sua, pelo fato de esse último refletir a realidade, enquanto
falseia, desvaloriza e nega a realidade. Somente depois de inventado o conceito
de “natureza”, em oposição a “Deus”, “natural” teve de ser igual a “reprovável”
– todo esse mundo fictício tem raízes no ódio ao natural (- a realidade!-), é a
expressão de um profundo mal-estar com o real... .
(**RIO
DE JANEIRO**, 10 DE JULHO DE 2017)
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