À LUZ DE IAWEH E CRISTO - ENSAIO DE EXPERIÊNCIA MÍSTICA N´AS PALAVRAS DE SARTRE. - MANOEL FERREIRA NETO: ENSAIO
LITERATURA, FILOSOFIA E ENGAJAMENTO - PARTE IV......
É preciso entender que a recusa de “oferecer os seus serviços” nesse
caso nada tem a ver com a autonomia da literatura no sentido abstrato. É
exatamente a ética do engajamento que impede esse tipo de alinhamento
ideológico, que seria apenas o inverso simétrico do alinhamento com a
burguesia. O “exercício honesto do ofício literário” é um compromisso
histórico, não um serviço. Ora, tal como a burguesia, o máximo que um partido
pode aceitar do escritor é o serviço, e ainda assim, quando o serviço é
livremente prestado, o partido sempre desconfiará de quem o presta. Pois a
liberdade de aderir é também a liberdade de criticar, e o dogmatismo ideológico
é levado a valorizar a primeira e execrar a segunda, o que faz do escritor
sempre um tradior em potencial. Na verdade, a ideologia oficial sempre
desconfia da liberdade, e, nesse sentido, observa Sartre, os partidos
comunistas, que em princípio lutam pelo poder, comportam-se de maneira idência
àqueles que já estão no poder. Assim, a doutrina marxista degrada-se antes
mesmo de ser desgastada como ideologia institucionalizada: a planta seca antes
de dar frutos.
Poder-se-ia aqui indicar Lesky, em sua tentativa de encontrar um
estatuto para o trágico, uma interpretação percuciente de “o trágico, tanto na
obra de arte quanto na vida, suscita identificações, por isso nos interessa,
afeta e incube”. A filosofia, de acordo com a idéia de Sartre, suscita
responsabilidade, engajamento, busca de fundamento, revelando-a,
desmistificando-a – é também responsabilidade do escritor, filósofo
desmistificar-se a fim de construir o seu fundamento, fundamentar sua liberdade
- seguindo o seu encalço nas relações do indivíduo, processo histórico, a
personalização.
O propósito que se encontra por trás desse método resulta da convicção
do autor de que, contra o poder dos mitos predominantes e dos interesses
estabelecidos, a força da razão analítica é impotente: não se substitui uma
realidade existente, firmemente enraizada, “positiva” (no sentido hegeliano)
pela mera negatividade de dissecção conceptual.
Para que a arma da crítica possa ter êxito, precisa estar à altura do
poder evocativo dos objetos a que se opõe. Para que a faca destrince a carne do
pescoço, é preciso ser pontiaguda, estar mais que afiada para contornar as
agulhas, e o açougueiro ter habilidade e engenhosidade com os olhos e a mão.
Eis porque
[...] o verdadeiro trabalho do escritor engajado é (...) revelar,
desmistificar, e dissolver mitos e fetiches num banho ácido crítico (negrito
nosso) .
Essa imagem demonstra a “eidos” do empreendimento.
Com a imagem da “faca”, podemos, com engenhosidade e arte, compreender o
que é isto, a responsabilidade do historiador. Súbito, sente-se viva e forte a
sensação de se estar nas trevas, aquela necessidade de detalhes e pormenores,
às vezes perdidos, tornando inda mais necessário investigar, buscar a luz nas
trevas, os contornos e estratégias, as perspicácias de intuição e observação,
as destrezas de compreensão e entendimento .
É para evitar a opção pela “fria isenção”. O que está em jogo é a
ofensiva geral contra as posições bem fundadas do bem-estar confortável, quer
se apresentem como a “cumplicidade do silêncio”, ou sob qualquer outra forma.
Sartre deseja sacudir-nos, e encontra modos de atingir a meta, ainda
que, no fim, seja condenado como alguém sempre em busca de escândalos. Os
escândalos não são vistos pelos olhos do outro? Um olho manda o outro à merda,
a tensão é necessária. É sempre mais simples tachar alguém – digamos, menor
esforço – de escandaloso, polêmico, etc., etc., do que pensar com seriedade
sobre o que está sendo dito e os propósitos da fala.
O outro ponto, a preocupação com a totalidade é igualmente importante.
Sartre insiste em que a beleza da literatura está em seu desejo de ser tudo, de
açambarcar o mundo e as coisas, ser testemunho da realidade, das contradições e
dialéticas – e não numa busca estéril da beleza. Apenas um todo pode ser belo:
os que não conseguem compreender isso – o que quer que tenham dito – não o
atacaram em nome da arte, mas em nome de seu compromisso particular.
O modo por que Sartre se torna filósofo moral “malgré lui” fundamenta-se
na caracterização do presente como totalidade inerte: um mundo morrendo de
velhice, uma época de “revoluções impossíveis”, disseminando e intensificando o
sentido de paralisia até mesmo pela consciência de “cataclisma” como única
forma viável de mudança.
Como pode a proposição abstrata “um futuro bloqueado continua sendo um
futuro” negar efetivamente tal tipo de depressão e de destruição? Apenas se
dele se fizer um absoluto categórico que necessariamente transcenda toda
temporalidade dada, por mais sufocantemente real que seja. Quem é o sujeito
desse “futuro bloqueado”?
Se é o indivíduo, a proposição é óbvio falsa: o futuro bloqueado para o
indivíduo está inexoravelmente bloqueado. Por outro lado, se o sujeito é a
humanidade, a proposição é absurda: a humanidade não pode ter um “futuro
bloqueado”, a não ser bloqueando-o para si sob a forma de suicídio coletivo,
caso em que não há futuro, bloqueado ou não – e, neste caso, de fato, nem a
humanidade.
Paradoxalmente, o significado existencial (não-tautológico) da
proposição produz-se pela fusão do indivíduo com o sujeito coletivo. Seu
significado não é, assim, o que literalmente sugere (uma tautologia ou, quando
muito, uma banalidade, idiotice), mas o significado funcional de uma negação
radical que não pode apontar para forças históricas palpáveis como portadoras
de sua verdade e, por isso, deve assumir a forma de imperativo categórico: o
dever moral.
Interessante observar é que a tradição histórica da moral é constituída
ao longo do processo histórico da humanidade. A partir da pedra basilar do
existencialismo, “a existência precede a essência”, o pro-jeto projeta o
futuro, a moral.
A filosofia moral está implícita em todos os seus estudos, como ponto de
vista positivo do futuro, que assume a forma de negação radical, embora incapaz
de identificar-se com um sujeito histórico. Este conceito leva-nos de imediato
à pedra angular da filosofia sartreana: a existência preceder a essência,
fundamentando-a.
No sentido de expressar sua filosofia moral latente de forma plenamente
desenvolvida, coisa que procura fazer seguidas vezes, teria de modificar substancialmente
a estrutura de sua filosofia como um todo, inclusive a função, dentro dela, do
dever moral categórico. Essa modificação, porém, deslocaria exatamente o dever
moral na estrutura de seu pensamento.
Desse modo, só pôde produzir sua Morale deixando de ser filósofo moral.
Curioso!... isso explica porque seus esforços conscientes, visando a
transcender posições anteriores, resultam na reafirmação mais enérgica possível
daquelas como a pré-condição necessária do “impossível empreendimento” em que está
envolvido: a dedução de uma filosofia moral socialmente orientada a partir da
estrutura ontológica da práxis individual.
Em se tratando do desenvolvimento de um escritor, o fator essencial é a
maneira como reage aos conflitos e mudanças do mundo social em que está
situado. Ensinar ao leitor não haver esperança de sobrevivência humana, se ele,
o escritor, não estiver disposto a dizer o que acontece, a engajar-se, a ajudar
a construir a esperança, dando-lhe um fundamento. Do mesmo modo, como Nietzsche,
ser impossível fazer uma crítica ácida a Deus, ao cristianismo, se não a está
fazendo à luz do Deus vivo, real.
Isso pode ser discriminado em dois elementos básicos: sua própria
constituição (estrutura de pensamento, caráter, gostos, personalidade) e o grau
relativo de dinamismo com que as forças sociais da época se confrontam
mutuamente, arrastando-o de modo ou de outro para dentro de seus confrontos.
Descrever os intercâmbios entre um escritor e sua época em termos de
“rupturas” é, na melhor das hipóteses, extremamente ingênuo em ambos os casos,
pois nem o desenvolvimento sócio-histórico nem o individual caracterizam-se
apenas por “rompimentos”, mas por configuração complexa de mudanças,
continuidades. Há sempre mudanças sob a superfície de continuidades, e algumas
básicas persistem, por mais radicais que sejam os rompimentos em determinadas
regiões.
Uma sociedade compõe-se de múltiplas camadas de instrumentos e práticas
sociais coexistentes, cada qual com ritmo específico próprio de temporalidade:
fato que acarreta implicações de longo alcance para o desenvolvimento social
como um todo.
A estrutura de pensamento de um indivíduo forma-se em idade
relativamente precoce, e todas as modificações subseqüentes, sejam grandes ou
pequenas, só podem ser explicadas como alterações da estrutura original, ainda
que a distância transposta seja tão grande quanto a que vai do “leite à
pimenta”.
Sartre pode dizer que L´Idiot é um livro, não de homenagem, mas de ódio
a Flaubert. Pode dizer que Flaubert é o seu “contrário”, o “exato oposto” de
sua “própria” concepção do escritor, encarnação de um “ideal formal” detestável,
nas antípodas do que ele é. Pode dizer: é a continuação de As palavras; um
epílogo imenso, mas necessário; Poulou - assim era chamado por seus familiares
– ainda a persegui-lo e que é preciso acabar de se curar; a mesma “profunda e
muito antiga conta” a acertar, “no interior da literatura”, mas também no
interior de “si próprio”, com o objeto ideal literário; a continuação da mesma
guerra; desmontar a marionete, quebrar as peças uma a uma, pisoteá-las.
O fato é que ele o escreve. É um livro magnífico, maravilhoso, em seu
aspecto estético, embora não tenha sido preocupação dele; é, inclusive, sob
muitos aspectos, a grande obra, a conjunção de talentos e dons, Marx e Freud
misturados, Proust reencontrado, sua Moral enfim realizada, sua Política, Arte
poética, o mais bem-sucedido de seus romances.
Em termos da dimensão estética, Herbert Marcuse, mostra que o fato de
uma obra representar verdadeiramente os interesses ou a visão do proletariado
ou da burguesia não faz dela verdadeira obra de arte. Esta qualidade material
pode faciliar o seu acolhimento, pode torná-la mais concreta, mas de modo algum
é constitutiva. A universalidade da arte não pode radicar no mundo e na imagem
do mundo de uma determinada classe. A arte visiona uma humanidade concreta,
universal, que não pode ser personificada por uma classe particular, nem mesmo
pelo proletariado, a “classe universal”.
(**RIO DE JANEIRO**, 28 DE JULHO DE 2017)
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