ATEÍSMO, ABSOLUTIZAÇÃO E NIILISMO# - GRAÇA FONTIS: ESCULTURA/Manoel Ferreira Neto: ENSAIO
DEUS ESTÁ MORTO - CAPÍTULO XVI..........
Não devemos entender o estado religioso e artístico exaltado como os
próprios extáticos religiosos e artistas se compreendem, como mediadores de
grandes verdades ocultas.
Especialmente no cristianismo, existe a tendência de sentir-se pecador.
De onde vem esse sentimento, o que está por trás dele? É espantoso que o ser
humano se considere nada e pior do que realmente é. A religião grega antiga não
atribuíra ao homem esse denegrir de sua percepção de si mesmo. Ao contrário: à
medida que os deuses dividiam com os seres humanos suas virtudes e pecados,
todos podiam se sentir desonerados. Os seres humanos até faziam espelhar nos
deuses o lado escuro de sua natureza.
O “cristianismo” – algo que ninguém deve confundir com a figura
histórica do Cristo. Porque em sua origem, antes de sua apropriação pelo
espírito judaico, o cristianismo era outra coisa. O cristianismo primitivo, diz
Nietzsche, nega a Igreja, a insurreição de Cristo foi contra a Igreja judaica,
contra a casta sacerdotal. Originalmente, a “boa nova” era precisamente a de
que não há contradições: o reino dos céus pertence aos fiéis, a fé não é algo
conquistado, mas existe desde o princípio. E essa fé não se encoleriza, não
censura, não se defende, não empunha a espada. Ela também não se “demonstra” com
milagres, com prêmios ou com promessas – e muito menos com as Escrituras. Essa
fé nem sequer se formula, ela se vive.
O Jesus histórico, tal como Nietzsche o descreve no aforismo 32 de O
anticristo, já era quase um “espírito livre”: ele recusa todo dogmatismo. Esse
“simbolista” está fora de todo prejuízo eclesiástico, fora de toda religião, de
toda idéia de culto. Ele nunca pensou em negar o mundo, nem sequer suspeitou o
conceito eclesiástico de mundo. O Cristo histórico desconhece as idéias de
culpa, castigo e recompensa. Ele abole qualquer relação de distância entre Deus
e o homem e é precisamente esta a “boa nova”: a felicidade não é prometida, não
está sujeita a condições. O resultado é uma nova prática. O que distingue
primitivamente o cristão não é uma fé, mas outro modo de atuar, que prescinde
de uma doutrina judaica da penitência e da reconciliação.
Humano, demasiado humano responde à indagação pela origem do sentimento
de pecado, e na obra futura de Nietzsche essa resposta será sempre variada. Ela
diz: o cristianismo foi originalmente uma religião de pessoas que viviam em
miséria e opressão, que não eram nobres e por isso não pensavam em si mesmas
como seres nobres, uma religião de pouca auto-estima. O cristianismo
enchafurdava os seres humanos definitivamente na lama profunda, na qual já
estavam enfiados.
Quando se compreende como “o pecado chegou ao mundo”, ou seja, através
de erros da razão, em virtude dos quais os homens entre si, e mesmo o
indivíduo, se consideram muito mais negros e maus do que são de fato, então
todo este sentimento é muito aliviado, e os homens e o mundo aparecem por vezes
numa aura de inocência, de forma que o indivíduo se sente profundamente bem. Em
meio à natureza, o homem é sempre a criança. Esta criança tem às vezes um sonho
pesado e angustiante, mas ao abrir os olhos está sempre de volta ao Paraíso .
Nesta obra, nos pensamentos sobre arte, fica especialmente nítido o que
Nietzsche quer dizer quando no prefácio chama sua experimentação com o
Iluminismo de gesto e olhar iconoclasta em retrospectiva. Até meados dos anos
setenta, Nietzsche chamara a arte de a “verdadeira atividade metafísica”, e
agora entra no seu templo com a força da vontade de lucidez e descrença.
O artista sabe que a sua obra só tem efeito pleno quando suscita a
crença numa improvisação, numa miraculosa instantaneidade da gênese; e assim
ele ajuda essa ilusão e introduz na arte, no começo da criação, os elementos de
inquietação entusiástica, de desordem que tateia às cegas, de sonho atento, como
artifícios enganosos para dispor a alma do espectador ou ouvinte de forma que
ela creia no brotar repentino do perfeito. – Está fora de dúvida que a ciência
da arte deve se opor firmemente a essa ilusão e apontar as falsas conclusões e
maus costumes do intelecto que o fazem cair nas malhas do artista .
Goethe pertence a um gênero de Literatura superior às ´literaturas
nacionais´. Assim, não está em relação viva com sua nação, e a novidade ou a
caducidade não o afetam. Só viveu e vive, todavia, para poucos. A maioria não é
mais que uma fanfarra de vaidades que cada tanto se faz o mar mais além das
fronteiras da Alemanha.
Diz Nietzsche que Goethe, em seus poemas, descuidou dos alemães, porque
desde qualquer ponto de vista estava muito acima deles. Goethe concebeu um
homem forte, culto, hábil em todas as atividades corporais, refinado em si
mesmo e respeitoso de si mesmo, capaz de atrever-se a sentir alegria pela
amplitude e riqueza do natural, pois tinha forças suficientes como para exercer
semelhante liberdade.
Ele espreita seu próprio entusiasmo e alimenta a suspeita de que nele
possivelmente se escondem um pensamento impreciso, sentimentos nebulosos,
fraquezas e mistificações de toda sorte.
Continua vivo em Nietzsche o projeto de Goethe e Schiller a respeito do
que deve ser a obra de arte moderna e da importância de uma reflexão sobre a
Grécia para repensar o mundo moderno. Com eles, o jovem Nietzsche também se
sente como um pensador que pode entender melhor sua época por meio da Grécia
antiga.
Isso não significa que Nietzsche aceite os dados iniciais do problema,
isto é, a caracterização da Grécia pela serenidade, como se os gregos tivessem
sido exclusiva ou essencialmente apolíneos. Criticando os pensadores que
tiveram essa visão do problema, Nietzsche relacionará a serenidade como um
aspecto mais profundo da Grécia: o dionisíaco. Se, então, ele critica o que
pensadores como Winckelmann e Goethe disseram da serenidade grega, é por
considerar que a Grécia só pode ser pensada a partir do fundo asiático do
dionisíaco, que não teria sido levado em conta por eles.
Essa busca de um outro princípio constitutivo do mundo grego não é,
porém, uma originalidade de Nietzsche. É, como temos visto, uma constante em
toda a interpretação da Grécia desde o nascimento do trágico, isto é, da
interpretação filosófica ou ontológica da tragédia como apresentando uma visão
trágica. A continuidade de Nietzsche com a reflexão sobre o trágico que o
antecedeu está no fato de sua estética ser uma metafísica que interpreta a
tragédia a partir da dualidade de princípios. O que talvez explique a crítica
violenta que os filólogos lhe fizeram na época da publicação do livro, a ponto
de, no ano seguinte, ele ter ficado praticamente sem aluno a quem ensinar.
A valorização metafísica da tragédia grega, que teria sido invalidada
pelo racionalismo socrático, do qual a modernidade é mais uma metamorfose do
que uma crítica radical, implicará que a imitação dos gregos só pode ser, para
Nietzsche, um renascimento de uma arte dionisíaca. O aforismo 16 do livro diz
que o renascimento da tragédia é uma das “bem-aventuranças para o ser alemão”.
O aforismo 19 prevê que “tudo o que chamamos agora de cultura, educação,
civilização terá algum dia de comparecer perante o infalível juiz Dioniso”. E o
aforismo 23 termina dizendo: “Se o alemão olhar, hesitante, à sua volta, em
busca de um guia que o reconduza de novo à pátria há muito perdida, cujos
caminhos e sendas ainda mal conhece – que ele ouça o chamado deliciosamente
sedutor do pássaro dionisíaco que sobre ele se balouça e quer indicar-lhe o
caminho para lá”.
O verdadeiro indivíduo está entre um Deus que teria de ser pensado como
liberdade absoluta e um autômato, que seria o produto do princípio fatalista. O
indivíduo não deve nem se curvar para um deus nem para a natureza, não deve nem
se volatilizar nem se coisificar.
Passado um século e alguns anos, no entanto, o que vemos nítido e
transparente parece ser o equívoco da “afirmação” nietzscheana: “Deus está
morto” – embora haja de se considerar que a filosofia de Nietzsche não tenha
sido compreendida e entendida, prevaleceram o preconceito e discriminação, o
que até o presente dificulta bastante a contemplação e conhecimento; em
verdade, o que Nietzsche realmente critica é a absolutização de Deus.
Deus, hoje, está no “menu” de todas as filosofias, teologias, no “menu”
de todas as mesas. O Deus de Jesus é amor. O Deus que Jesus prega, o Deus que
Jesus é, é Amor. Se lhe não servirem o verdadeiro Deus, ao homem, o que pode
ele esperar de seu pão de cada dia, e neste sentido, a busca de fundamento de
Deus, de Sua eterna generosidade, compaixão, solidariedade, amor puro, cabe ao
homem aceitar ou rejeitar, mas com a perspicácia de ouvir ambos os lados, de
conhecer as religiões, buscar a “adesão” ao que amadurece, torna o conhecimento
a pedra angular de nossa VIDA , habitando-lhe o espírito e alma, a FÉ. O
conhecimento das religiões, a vida e vivência, a experiência da busca da VIDA,
significa desejar a verdade com autenticidade. Se lhe servirem isto no cardápio
que é oferecido, reconhecer significa antes in-vestigar.
(**RIO DE JANEIRO**, 25 DE JULHO DE 2017)
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