*ZERO DE ÂNGULO OBTUSO* GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: SÁTIRA ***


*ZERO DE ÂNGULO OBTUSO*

GRAÇA FONTIS: PINTURA

Manoel Ferreira Neto: SÁTIRA

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Só sei de mim, só sei de mim, só de mim sei...

Se de mim não soubesse, de que saberia?

De quem sabeira, não soubesse de mim?

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Sou um objeto perdido.

Sou um objeto sem destino.

Sou um objeto nas mãos de quem?

De Santo Agostinho?

De São Paulo?

De Dom Sigaud?

Um objeto a ser burilado, afiado?

Tornando-me um santo no futuro?

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Não me refiro à inspiração que é graça especial inúmeras vezes acontece aos que lidam com arte. As coisas mais sublimes de tudo o que é reconhecido bom, quer seja obra, ação, ser humano ou natureza tenham sido até este momento, para a maioria e mesmo para os melhores, algo oculto e encoberto, secreto e envelado, o que se encobre para mim, encobre-se a mim, alfim! Terei de viver mais uma vez, inúmeras vezes mais, esta mesma vida, como a que vivo agora e vivi, nada haverá de novo nela. Minha sina mais secreta sarapalhou-se no bosque de uma ilha onde teço a liberdade, o amor. O que me vem ao pensamento, o que preenche o vazio atrás dele, e no coração me dói: carvalhos tem que desabar, enquanto o junco se abaixando espera passar o vento forte da intempérie.

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Sou zero de ângulo obtuso.

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Julguem tais palavras simplesmente "dramalhão", desejo de chamar atenção, ser digno de pena, dó, comiseração, sensibilize os corações piedosos, humanos. Haja até quem, inspirado em mim, de imediato, jogue todos no meu saco de batatas, dizendo que somos todos "zero de ângulo obtuso", o que vou discordar plenamente, pois a consciência do zero é minha, o ângulo obtuso é também meu, conforme a perspectiva com que analisei, conforme as verdades da vida vividas e analisadas que fui acumulando, os juízos que me habitam. Terei de dar satisfação a quem por ser zero de ângulo obtuso? Não é da alçada de quem quer que seja.

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Sou o único "zero de ângulo obtuso" – até para enfatizar poderia dizer ser eu o exclusivo “zero obtuso de ângulo”, aí não haveria como negligenciar a importância que dou a isto de ângulo obtuso de zero ser eu. Não o digo para defender a minha diferença entre todos os homens, afirmando assim a minha personalidade, caráter, a minha identidade. Digo-o apenas para ser sincero e verdadeiro comigo mesmo. Posso não haver sido homem digno, honesto comigo no concernente a ter dado rumos virtuosos à vida, destino pelo menos plausível, mas aprendi no de-curso e per-curso a ser verdadeiro comigo próprio. Não importa o que fiz de mim, importa o que faço agora de mim. Tomei a decisão peremptória e radical de tomar outras trilhas, mudar de estradas, à busca de minha dignidade, fazer jus às palavras de alguém querido e amigo "A vida tem muitas coisas lindas e maravilhosas para ser vivida". Vou rasgar os zeros na jornada, desfiar os obtusos zeros, expender os ângulos obtusos do zero, instituir outros ângulos de posturas e condutas.

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Se a preocupação não estivesse com tanta preguiça à semelhança de um ébrio, guinando à esquerda e à direita, andando e parando, resmungando palavras pelas metades, ameaçando o céu com os olhos mortos e brilhosos, dar-me-ia uma lágrima para escorrê-la pela face, todo entregue à nobre e áspera função de descrevê-la neste momento.

#RIO DE JANEIRO(RJ), 25 DE MAIO DE 2020, 11:48 a.m.#

 

 

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