ATRÁS TUDO FICA LENDÁRIO GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: AFORISMO ****


ATRÁS TUDO FICA LENDÁRIO

GRAÇA FONTIS: PINTURA

Manoel Ferreira Neto: AFORISMO

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A cena é de uma fazenda situada num vale, a treze quilômetros de qualquer cidade, seja ela agradável de se viver, seja como a maioria, um inferninho com todas as suas letras cursivas ou góticas. Não é um vale muito grande, apenas três quilômetros de extensão e dois quartos de quilômetro de largura. Sua principal característica é que todas as famílias ali residentes formam uma comunidade familiar, comunidade de princípios os mais lídimos, atitudes e ações as mais circunspectas, respeitadoras dos dogmas e preceitos religiosos, tementes a Deus, dessas que todos conhecemos e são mais ou menos interessantes.

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As montanhas são montanhas reais(aliás, não fossem reais, como poderia senti-las?), com aproximadamente dois a três mil pés de altura, e a choupana é uma verdadeira choupana, não (como a de um autor de imaginação fértil, sedento das maravilhas dos dons e talentos, faminto por atingir, alcançar a pureza do cenário) uma choupana com garagem para dois carros de passeio. Deixemos que ela seja uma choupana azul, recoberta de trepadeiras floridas, assim escolhidas por ter uma sucessão de flores viçosas em suas paredes, lindas ao alvorecer umedecidas do orvalho da madrugada, que se incrustam pelas janelas durante todos os meses da primavera, verão e outono – começando pelas rosas de maio e terminando com jasmins.

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Façamos, contudo, que não seja primavera, nem verão e nem outono – mas inverno, e do mais severo e radical, para dormir sejam necessários dois cobertores e dois edredons. Esse é um dos principais pontos na ciência da paz e da tranqüilidade. E fico sobremaneira surpreso – atrás da surpresa não há senão a surpresa – ao ver as pessoas não se aperceberem disso e considerarem motivo de exaltação e júbilo, de alegria e excitação, quando o inverno se vai, ou, quando estiver se aproximando, esperar que não seja tão severo, apenas um friozinho agradável para despertar um sono mais tranquilo, as batidas do coração suaves e serenas, a alma em pleno idílio com as contingências, a alimentação mais saudável e gostosa.

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Eu, ao revés disso, peço todos os anos que caia geada, tempestades que os céus possam nos oferecer. Certamente, todos conhecem o inusitado prazer e satisfação de uma lareira no inverno, velas às cinco horas da tarde, acompanhadas de um chá com pães de queijo, bolinhos de chuva, quentes tapetes, uma bela mão para servi-lo, janelas fechadas, as cortinas caindo em amplos drapeados sobre o chão, enquanto o vento e a chuva estão enfurecidos lá fora...

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A vida passada misturou-se-me com a futura – há conversa múltipla e ambígua, há monólogo polêmico e contraditório, e qualquer coisa indivisível que a atravessa em zigue-zague e é a minha voz. E houve no meio do salão de fumo, na choupana, um ruído, onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de paciência (e, de repente, a vida fica muito mais extensa, tão extensa que, atrás, tudo fica lendário. Lendário?! É um termo estúpido. De que outro poderia utilizar-me e traduzir com eficiência as intenções e interesses?)

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Todos estes detalhes são de uma noite de inverno, numa choupana, numa fazenda situada no vale, que deve ser familiar a todos quantos nasceram em regiões altas. É evidente que muitas destas ternuras, delicadezas, como os sorvetes tomados por uma criança, pedem uma temperatura muito baixa para serem produzidas: existem frutas que não podem amadurecer sem uma tempestade. Até me dou muito bem com a chuva, desde que chova a cântaros, trovões e raios sucessivos, pois alguma parte de minha natureza faz com que eu tenha necessidade disso, do contrário sinto-me enfastiado, entediado, uma ojeriza sem qualquer medida e peso, sinto-me enganado: já que serei obrigado a gastar dinheiro no inverno, com carvão, velas e muitos outros artigos que faltam até mesmo a um cavalheiro, quero pelo menos que seja um bom inverno. Quero um inverno londrino para os meus bolsos, ou russo, onde cada homem divide com o vento norte a propriedade de suas orelhas.

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Em verdade, sou tão epicureu nessa questão que não consigo saborear plenamente uma noite de inverno se já passou há muito a noite de São João – a noite de São João é a mais longa do ano. Ou é a de São Pedro? – e o tempo começa a degenerar a caminho das aparências da primavera. Não, o inverno deveria estar separado, por densas paredes de noites escuras, de toda luz e brilho do sol. Das últimas semanas de setembro, precisamente a semana de 25 em diante, até o dia de Natal, assim é a estação da alegria e da satisfação. Pois o chá, seja em que estação for, apesar de ridicularizado por aqueles cuja sensibilidade é naturalmente grosseira, ou se tornaram assim por beberem vinho e não serem sensíveis a um estimulante tão refinado, será sempre a bebida do intelectual.

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Não há qualquer necessidade de sentir-me confuso, perder a cabeça, sentir-me solitário, aliás, sou homem feliz por esquecer as horas todas, por ter todo o tempo do mundo. Acalmo-me, bebo um copo d´água, bebo-o lentamente, aprendo a respirar, a dominar as emoções. Sento-me por um segundo, olho ao redor a serra das águias através da janela, expulso a nostalgia, que já não tem direito algum de persistir, desfio as palavras, uma a uma, semeio música entre elas. Com esta terra grudada à sola dos pés, eu, o rebelde que se recusa a ser reduzido à condição de alienado, resolvo os problemas cotidianos e, depois de tudo, contemplo do alto, as serras, que conheço desde o chão até os menores detalhes.

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Sento-me perto das estrelas e estendo os braços como se pudesse tocá-las. Miro o céu, de um lado ao outro, de uma nuvem à outra, com o olhar repleto de luz, o corpo relaxado, a cabeça leve. Salmodio preces que, na verdade, são pedidos precisos, destinados a facilitar o acerto de uma desavença ou a dispensar um pouco mais de felicidade ou riqueza a algum homem necessitado. Aqui, ignoro a própria santidade. Minha felicidade é tão simples. Não sofro muito com minha condição.

Posso imaginar uma choupana com janelas abertas para um campo a perder de vista, um jardim florido, para um horizonte acolhedor, para casas onde a felicidade seja constante, ou pelo menos haja a serenidade dos que sentem orgulho de si mesmos, os que se ocupam em perseverar no melhor de si.

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Paro de sonhar acordado. Jogo as palavras nas dobras de meu diário e depois fecho. O papel fica impregnado do cheiro de incenso. Morte ao cheiro de incenso, que queimo tanto nas festividades quanto nos funerais. A morte finge enviar-me para bem longe dentro de mim mesmo, mas, se me faço vislumbrar novamente os dias iluminados com os seus aconteceres prazerosos, é para melhor poder cobrir-me de terra e trevas.

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Mas agora, para afastar-me das descrições longas demais, apresentarei uma pintora e lhe darei instruções para que acabe o quadro que comecei a pintar. Os pintores não gostam de choupanas azuis, a não ser que estejam sobremaneira gastas pelo passar do tempo; mas, como o leitor já sabe que estamos numa noite de inverno, os serviços da pintora serão necessários para o interior da choupana.

Rio de Janeiro(RJ), 19 de maio de 2021, 10:54 a.m.

 

 

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